Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

Padrão
Brasil, descoberta, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Um repórter, finalmente!

%C3%A1rvores+no+inverno

Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

Padrão
arte, calor, conto, costumes, crônica, descoberta, escândalo, obrigações, opinião, prosa, reflexão, saudade, tempo, tristeza, vida

Ele, um homem sem nome

Escultura+mulher+nua

Pelas cócegas leves que lhe causava o roçar dos pêlos, sentiu a mão que abandonava sua nuca para envolver a curvatura de um seio. Ao contato tão delicado dos dedos, a pele macia cedeu, afundou-se, e o calafrio que disparou por sua espinha a fez apertar os olhos e morder o lábio. Deixou escapar um som abafado. Passou os braços por trás da nuca dele. Pelos cabelos anelados, puxou sua cabeça para trás e assaltou com os seus aqueles lábios escancarados.
O movimento dos dois corpos engatava-se pela harmonia do ritmo. Ele aninhou a cabeça em seu colo, ela apertava com as panturrilhas os rins ligeiramente salientes por baixo das costas encurvadas em sua direção. Sentia como se seu corpo cozinhasse, dois suores se misturando pela fricção, membros que dançavam feito cobras enfeitiçadas. A cada vez que ela expirava, soltava todo o ar de seu interior, e era como se escapasse uma parte de sua alma, vaporosa, à temperatura de ebulição. Passou as unhas, com violência quase descontrolada, pelas costas do homem. Debaixo da pele úmida, a musculatura era tensa, entregue ao esforço de dar prazer. Ele tinha o rosto crispado, rilhava os dentes, grunhia como um urso. Ela teve um acesso de riso, espasmos graves, livres, sem pretensões. Sentia puxões involuntários nos músculos internos das coxas, e seus pés estavam esquecidos, frios, os dedos virados para dentro.
O prazer tomava corpo no passo lento em que os corpos balançavam. Ambos queriam prolongar ao máximo aqueles minutos de simbiose das carnes, sentados sobre um colchão desconhecido, ela por cima, a abraçá-lo com os quatro membros, um limitando o fôlego do outro. Mais cedo ou mais tarde, ela sabia, escaparia de seu bojo um facho elétrico, que apagaria de seu cérebro, por um momento, todo traço de consciência.
Porém, antes que pudesse ser arrebatada pelo orgasmo inevitável, ela percebeu que ele balançava a cabeça com violência, chocando-a contra seus ombros. Seu corpo todo se agitava, tremia, enquanto sua vontade frágil combatia o fluxo que ascendia, de prazer e vida. Foi em vão. Ela sentiu quando, de uma só vez, todo aquele corpo grande, coberto de uma penugem dourada, se deixou relaxar com uma sucessão de espasmos e mais grunhidos nervosos.
Foi impossível evitar o assédio da decepção. Não que o acusasse pela incontinência, mas já antevia a perda da excitação, o amolecimento do parceiro, o final abrupto da relação. Para não terminar o encontro sem o êxtase que merecia, e que chegou a parecer tão próximo, ela seria obrigada a continuar sozinha dali por diante, estimulando o próprio sexo e os sentidos, agarrada à fantasia do que quase havia sido. Não seria uma satisfação tão grande quanto o prazer de ser levada ao gozo pela agressividade habilidosa do parceiro. Porém, se ele não conseguisse evitar de recolher seu estandarte, seria a única alternativa à frustração de não gozar.
Surpreendentemente, ele ainda conseguia. Envolveu sua cintura entre os braços, deitou-a de costas sobre os lençóis e, numa respiração penosa, acelerada, continuou a se movimentar por dentro dela, com afinco redobrado. Não era um atitude natural. Era evidente que, ao contrário, ele obrigava seu corpo a um quase sacrifício, combatendo a tendência fisiológica, que ela bem conhecia, de largar-se e dormir profundamente. Mas ela também sabia que o esforço não daria resultado por muito mais tempo. Se ela não atingisse logo seu próprio ponto de sublimação, ele perderia seu tônus, os órgãos não responderiam e a virilidade de seu membro desmancharia em flacidez. Ela teria de se unir ao esforço do homem para que ele obtivesse algum êxito.
Ela se sentia confusa, mas emocionada. Tocava-a o fato de que ele ainda se preocupasse com a satisfação da parceira, mesmo já tendo obtido a própria. Não é a regra entre os homens, dizia-lhe sua experiência amorosa de quase das décadas. Tratando-se de um namorado, um marido, um amante, o caso seria outro, mas não muito. O homem verdadeiramente amoroso cuidará que seu júbilo não seja solitário. Se também for consciente das volições do amor, tratará de levar a mulher ao zênite do arrebatamento, nem que seja por temor de que ela encontre um outro que o faça.
Mas não era esse, ela pensou, o caso do homem que resfolegava por cima de seu corpo. Seu altruísmo era, sem sombra de dúvida, desvinculado de emoções estáveis. A relação dois dois estava submetida a um contrato rigoroso, em que ficava acordado que não seria mais do que um encontro fugaz, uma noite de prazer sem conseqüências que só teria lugar porque uma atração irresistível os colocara um diante do outro. Um acaso, pois. Que tenham se encontrado, e iniciado uma conversa, durante um vernissage a que nenhum dos dois planejara comparecer. Mas compareceram ambos e, simples assim, travaram conhecimento. Enfeitiçaram-se um pelo outro, e não era efeito do álcool oferecido com fausto, nem de suscetibilidade emocional.
Ele, suprema desgraça, era casado. Eis ali seu anel, que não permitiria uma mentira ou disfarce. Ela, recém-separada, acreditava estar livre do desejo, pelo menos por mais alguns meses. Tomara asco do gênero masculino e vangloriava-se das portas abertas que tinha para cuidar da própria vida. Talvez tenham sido justamente essas barreiras a empurrá-los um para o outro. Como saber? Não seria o matrimônio forte o suficiente para apagar o verdadeiro vulcão de testosterona que corroía as estruturas morais do homem, nem as convicções velariam à percepção da mulher a força telúrica dos olhares penetrantes que ele lhe lançava.
Por longas horas, ainda tentaram conter nas raias da civilização presumida o desejo mútuo que praticava seus caprichos sobre os dois espíritos. Mas não demorou até que algo acontecesse, um resvalar involuntário dos dedos, um ato falho da linguagem, qualquer coisa, e o instinto acabasse assomando à superfície. Ele se apressou em deixar claro que não tinha intenção nenhuma de abandonar sua família, nem ao menos de colocá-la em risco. Ela respondeu que jamais esperaria ou exigiria dele nada parecido. Explicou sua situação, sua misandria recentemente desenvolvida, a repulsa a qualquer forma de vínculo estável com um homem naquele instante. Desse ponto, chegaram a um acordo sobre suas intenções, que lhes permitiria partir para a relação livre sem a perspectiva da culpa ou do remorso.
Não perguntariam um ao outro nem mesmo como se chamavam. Sairiam dali diretamente para um motel, em carros separados, com um intervalo de tempo, após despedidas de naturalidade inquestionável aos demais presentes. Fariam amor, diriam adeus, e nunca mais. O acordo contava com a concordância irrestrita das partes envolvidas. Portanto, ela estava certa de que não seria por efeito de algum sentimento de estima que ele prosseguia em sua insistência de fazê-la gozar.
Seria, pois, uma manifestação de altruísmo, de consideração e respeito. Mas não era o momento de se perder em conjecturas. O fôlego do homem se esgotava. Se ela não conseguisse atingir o orgasmo nos instantes seguintes, todo o esforço seria perdido. Concentrou-se. Reforçou os movimentos, contraiu seus músculos para tornar a fricção mais intensa. Dali a pouco, pôde perceber um latejamento leve, e uma sensação que parecia uma longa nota de clarinete que vibrasse em seu corpo de baixo para cima, da vulva à nuca. Seus músculos contraíam-se e distendiam-se sem um comando seu. Ela conseguira. Queria demonstrá-lo ao parceiro, revelar que seu esforço tivera uma
recompensa digna, que ele poderia baixar a guarda. Gemeu, gritou, enfiou os dentes no pescoço salgado e vermelho do homem, com suas veias e tendões saltados.
Não seria o mais intenso de seus orgasmos, mas o que experimentava era, ainda assim, muito agradável. Foi tomada por uma calma que lhe parecia da amplidão do universo. Suspirou. Sentiu que o corpo do homem abandonava sua posição sobre ela para largar-se, exausto, a seu lado, mas ainda com o braço passando por cima de seu ventre. Abriu os olhos porque sentiu o desconforto do vento frio que ocupava o espaço deixado pelo corpo grande e pesado sobre o dela. Num movimento lento, voltou o rosto para o lado e encarou seu parceiro, que ainda tinha as faces ruborizadas pela força que fizera. Mas já estava adormecido.
Ela continuou observando seu rosto. Prestava atenção na respiração forte do adormecido ainda ofegante, no tronco que subia a cada inspiração e descia gentilmente para expulsar de volta o ar, na expressão de tranqüilidade imaculada. Um novo pensamento a assaltou. Todo aquele sacrifício seria mesmo apenas uma demonstração de consideração? Não teria acontecido algo a mais naquele intervalo de tempo em que estiveram juntos? A atração, ora, não pode ser apenas química. E mesmo que seja, é inconcebível que as ligações químicas de um momento não se reproduzam através do tempo. Os corpos, afinal, são os mesmos.
Presa pelo braço do parceiro, atravessado por cima de seu umbigo, ela não podia se levantar para ir ao banheiro, como desejava, para limpar-se e tomar uma ducha gelada. Pensou em empurrá-lo, afastar o braço, forçar a saída, mas decidiu deixar os movimentos drásticos para mais tarde. O homem dormia profundamente, ressonava, e o som de seu quase ronco transmitia uma vontade curiosa de também adormecer. Ela acompanhou com o olhar os traços do rosto, as rugas, as pequenas pontas de barba que ameaçavam nascer, os cabelos que já sofriam a invasão de alguns fios brancos e grossos.
Assaltou-lhe uma curiosidade terrível de saber quem era aquele homem, como se chamava, o que se passava em sua cabeça. Para todos os efeitos, era um adúltero. Levou para a cama uma mulher que não é a sua. Mas não parou nisso. Foi até as últimas conseqüências, no esforço de proporcionar-lhe um orgasmo, ainda que tardio. Como seria seu casamento? Terrível? Talvez a mulher não lhe despertasse mais desejo algum, talvez ele não sentisse por ela mais do que uma estima carinhosa e fria. Ou talvez ainda a desejasse como sempre a desejara, mas fosse incapaz de afastar do pensamento as fantasias com outras mulheres. Era um homem, não? E os homens querem todos, por natureza, ser polígamos, não? Eis aí um, deitado ao seu lado, que conseguiu sua pequena migalha de poligamia, sua escapadela travessa e segura, livre de culpa ou medo de revelação, graças a um contrato verbal de cláusulas claras e invioláveis.
Uma escapadela, mas onde o prazer da fêmea não foi negligenciado, nem mesmo pela crueldade que muitos homens manifestam de ignorar as necessidades da parceira apenas para exercer uma forma distorcida de superioridade. Para ela, que tantas memórias ruins carregava dos homens que a haviam amado de maneira insatisfatória, até desrespeitosa, aquele sujeito anônimo era quase um herói. Atravessou sua mente, como um pássaro que ela se apressou em expulsar, a idéia de que era injusto, muito injusto, que ela o tivesse encontrado naquelas condições, e não antes do outro, de todos aqueles outros, e também não antes que ele encontrasse alguma mulher para se casar. Talvez sua vida amorosa tivesse sido mais alegre, quem sabe?
Talvez ele tivesse sido o homem certo. Mas agora já estava perdido. Ela não estava disposta a romper o pacto, correr atrás dele, vasculhar seus bolsos para descobrir seu nome e endereço. Agir assim seria, na sua maneira de ver as coisas, bancar a louca. Isso, jamais. O mero pensamento a perturbava de tal maneira que ela precisou sair dali, afastar aquelas bobagens da cabeça, fugir das idéias que formulava contra a própria vontade. Juntou as forças, empurrou o braço do homem e se levantou da cama, nua, ainda sentindo a umidade do suor, do sêmen e de seus próprios fluidos. Ele, porém, nada mais fez do que se ajeitar de outra maneira, numa posição mais confortável para dormir. Antes de se afastar, ela ainda lhe lançou mais um olhar, num gesto que logo considerou um erro. Ele parecia uma criança, agarrando com ambos os braços o travesseiro, as pernas dobradas, o rosto escondido.
Queria, embora não admitisse, saber tudo sobre ele. Teria filhos? Se tivesse, como seria seu relacionamento com eles? Ela leva as mãos ao rosto, meneia a cabeça, repete para si mesma que não, não, não. Caminha até o banheiro. Qual seria a coisa certa a fazer? Tentar algum movimento, para conduzir a situação ao rompimento do acordo? E se ele não quisesse? Não seria ainda mais doloroso? De repente, ela descobriu que não sabia em que termos ele pensaria nela quando acordasse. Talvez não pensasse em termo algum, desse apenas um tchau cordial, dissesse que gostara muito de conhecê-la, e esperasse dela a mesma postura em relação a ele. Mas poderia, também, acordar arrependido, sentindo-se sujo, um adúltero miserável nas mãos de uma mulher manipuladora. Talvez a tratasse como uma prostituta, ou uma conquista, uma mulher fácil. E essa última hipótese era a menos desconfortável, porque derrubaria no mesmo segundo toda a fantasia que ela construíra em torno dele.
Deu-se conta, então, de que a situação já estava ainda mais longe do que esperava, se estava preocupada com a opinião que ele pudesse ter. Jamais dera importância à opinião dos homens sobre ela. Era uma mulher livre e independente. Quem não gostasse dela, tanto pior. De súbito, havia um homem, um homem sem nome, cuja opinião contava. Era demais para sua suscetibilidade. Sem mais um pensamento, ela correu até o banheiro, fechou a porta e se deixou ficar parada diante do espelho, a cabeça baixa e as mãos agarradas à pia.
Quando reergueu os olhos, não reconheceu imediatamente o próprio rosto. Estranhou os olhos entristecidos, a boca, as faces. Encontrou uma marca de expressão em que jamais reparara, e que concluiu ter surgido poucas horas antes. O tempo não perdoa. Ela estava ficando mais velha, sentia-se assim e sua imagem reproduzia o que sua imaginação formulava.
Perfilou-se diante do espelho. Seu corpo ainda era atraente? Talvez jamais o tivesse sido, e os homens que se aproximavam dela o fizessem por compaixão ou, pior, porque não eram capazes de conquistar mulheres mais belas, perfeitas, com curvas traçadas a compasso e sem os pequenos defeitos que lhe saltavam aos olhos. Seus seios lhe pareceram desalinhados e acanhados. Havia uma acumulação de gordura logo abaixo do umbigo, que a fazia sentir-se barriguda, e que não ia embora por nada neste mundo. As nádegas não eram mais tão redondas quanto um dia chegaram a ser. Era impossível disfarçar as concavidades de celulite e os pontos vermelhos de irritação da pele. Que espécie de homem largaria a esposa por uma mulher assim?
Uma certeza se formou em sua mente. “Não sou sedutora, não sou sedutora”, pensou em voz alta, sussurrando no tom de uma sentença de morte. Escapou-lhe o fato de que, poucas horas antes, seduzira aquele mesmo homem que dormia na cama do quarto. Mas sentia-se tão feia e desprovida de encantos que a memória quase se apagara de sua mente. Ele estava ali por alguma espécie de acaso. As ondas de seus cabelos castanhos, que costumava cultivar como uma arma de feminilidade agressiva, traduziam para ela, naquele momento, apenas falta de escova. Passou a mão pelo rosto, e ele lhe pareceu menos liso do que se lembrava.
Percebeu que seus pensamentos a traíam, influenciados por uma perturbação que a ocupara sem motivo, que ela não merecia, mas de que tinha consciência. Revo
ltou-se. Aquilo não poderia continuar assim. Abriu a torneira, molhou as mãos, mergulhou o rosto bruscamente na água fria. O corpo inteiro estremeceu. Tomou ar, estufou o peito. A verdade, disso não tinha nenhuma dúvida, era que não queria alterar o curso de sua vida. Tinha a obrigação de impedir qualquer movimento que a conduzisse nessa direção. Estava decidida: não permitiria que um homem desconhecido lhe negasse o direito de conduzir sua própria vida da maneira como tinha planejado.
Abriu novamente a porta, com o máximo possível de cuidado para não fazer barulho. O homem ainda dormia, e não precisava se preocupar com que ele acordasse: seus roncos cresciam em intensidade, o que era mesmo um bom sinal, uma vez que ela tinha horror a homens que roncam. Pé ante pé, ela buscou suas roupas, espalhadas pelo chão e por cima da cama. Por sorte, nenhuma debaixo do corpo adormecido. Vestiu-se sem olhar para a pele fresca do homem estirado tão perto. Retornou ao espelho, ajeitou-se inteira, os cabelos, o vestido, a maquiagem. A beleza era um componente inseparável de seu amor-próprio.
Ainda sentia no corpo os resquícios do prazer do homem, que a obrigaram a estancar o dilúvio com um papel dobrado. Aquele elemento viscoso de memória quase a abalou, mas sua força de vontade era maior. Tomou sua bolsa, verificou por alto que não deixava nada para trás, atravessou a porta e foi até o carro. Desceu as escadas sentindo o incômodo do sêmen rebelde, mas ignorou-o com galhardia. Deu a partida com um suspiro de alívio e, na saída do motel, fez questão de pagar a conta inteira, como uma última forma de afirmar seu poder individual.
Tomou a avenida no rumo de sua casa. Precisava dormir, não sem antes tomar um último drinque. Mas a determinação que a conduzira para fora do quarto se esvaecia paulatinamente, à medida em que os quilômetros avançavam e a história ia ficando para trás. Não conseguia mais escapar ao ponto mais profundo de sua veleidade: precisava telefonar para a melhor amiga, contar-lhe do ocorrido, de tudo que pensara, do que se passara em seu interior. Sem tirar a mão esquerda do volante, esticou a direita para o banco dos passageiros, abriu a bolsa e a vasculhou em busca do telefone celular. Era uma bolsa pequena, mas seus dedos não topavam com o aparelho. Irritada, ela esvaziou o conteúdo da bolsa sobre o banco. Ele não estava lá.
Percebeu a ironia do fato. Riu, depois sentiu o sangue subir à cabeça. Quase causou um acidente quando golpeou o painel do automóvel. Depois, acalmou-se e riu novamente. Disparou um ligeiro palavrão, suspirou e mordeu o lábio. A vida, pensou, é isso aí. E prosseguiu no caminho para sua própria casa e sua própria cama.
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