calor, capitalismo, centro, cidade, costumes, crônica, descoberta, férias, frança, francês, história, ironia, opinião, paris, passado, passeio, prosa, tempo

A nação e o baile

Pintura de Auguste Renoir retratando o tradicional baile do Moulin de la Galette em Montmartre

Perdoe não fugir do óbvio. Lamento, mas a atmosfera circundante sufoca qualquer esforço de escrever sobre outros assuntos, quando se está na França e o dia é 14 de julho. Comentários superficiais sobre o quotidiano enveredam, sorrateiros, pela descrição das festas públicas; reflexões críticas, analíticas ou cínicas descambam em teses sobre o nacionalismo; nem mesmo trancar-se em casa serve de escapatória, já que o estranho silêncio dos vizinhos e da rua realçam o espoucar distante dos fogos. Portanto, perdoe, curvo-me a comentar as celebrações, debater o patriotismo, invadir os bulevares.

Talvez a tarefa mais difícil, neste caso, seja descrever o perfil do nacionalismo francês e lhe avaliar o peso. Começo por um dos traços mais famosos deste país, que é sua folclórica e quase indevassável burocracia.i Em poucas palavras, explico que a famosíssima, cujo eufemismo mais corrente é Administration Française, nada mais é do que a concretização de uma estratégia de unificação nacional, que viu o dia já na Idade Média.

Se você tem ojeriza a relatos históricos, sinta-se livre para ler apenas esta frase e, em seguida, pular o resto do parágrafo, em que faço com poucas frases um resumo cronológico da burocracia e do nacionalismo franceses, desde o século XIV, com a dinastia Valois instaurando um sistema de administração pública tão eficiente que fez da França o primeiro grande Estado-nação do norte da Europa, até o pós-guerra de De Gaulle e Mitterrand, que recriaram, cada um à sua maneira, o sistema da papelada dos Valois (para controlar ou canalizar a fúria revolucionária das esquerdas), passando ainda pelo trauma sanguinolento da Revolução de 1789, que, em termos formais e administrativos, foi pouco além de uma tradução dos princípios jurídicos, sem alterar lá muito profundamente a estrutura de organização pública do país, dos ideais monárquicos aos republicanos.

Falando em República, eis uma palavra onipresente em jornais, escolas, hospitais, museus, pontos turísticos. Os imigrantes, diz-se, devem aprender e incorporar os princípios da República. A educação não pode ser reformada, para não criar uma cisão lógica entre as gerações da República. O mesmo vale para a ortografia, praticamente idêntica desde que existe a República. Os bombeiros são um símbolo republicano, como a literatura e a culinária. Não são símbolos nacionais ou culturais, mas republicanos, um termo que resume melhor o orgulho e o raciocínio do gaulês.

Em outras palavras, a idéia de República embala todas as vertentes do nacionalismo no Hexágono. E diziam que o nacionalismo morreu. É verdade que um certo nacionalismo parece coisa do passado, aquele que teve, por muito tempo, uma conotação algo militar, freqüentemente econômica, no mínimo belicosa. Esse pensamento parece corroborar-se quando vemos o tradicional desfile da Champs Élysées quase vazio, a fumaça dos aviões com as três cores da bandeira, os tanques um pouco desatualizados, a parada dos veteranos acompanhada praticamente apenas pelas esposas dos veteranos, sem contar os políticos, jornalistas, fotógrafos e um punhado de turistas vindos do interior. Um exército que já não tem muito emprego, mas mantém o ar solene e garboso ao subir a rua íngreme, menos de um mês após ser notificado de que vai encolher em efetivo e orçamento. Nada parecido com as cenas de Elena e os homens, de Jean Renoir, em que as multidões meio embriagadas se acotovelavam para acompanhar a passagem dos bravos heróis da República, pelos idos do século retrasado.

Para sorte dos princípios republicanos, há outras maneiras de sentir-se pertencente a uma nação. O nacionalismo está longe de morto, como se vê em toda parte do Leste Europeu, na recuperação de línguas regionais, na autonomização crescente das etnias. A França talvez seja uma exceção desconfortável, mas, como praticamente tudo neste início de século, algum arremedo de nacionalismo sobrevive transferido para a esfera das relações pessoais. Os dialetos, a música, o futebol, os ídolos, a cozinha, as paisagens.

Tendo em mente essa mudança de perspectiva, torna-se mais fácil a procura pelos franceses que comemoram sua data nacional. Estamos prontos para largar os conceitos históricos e ganhar a rua. A maioria estará deserta, como há de esperar quem viu as filas e confusões nos aeroportos, estações de trem, terminais rodoviários e estradas. Mas o vazio é enganoso. Exprime menos a fuga para o sol e as férias do que o cansaço e a ressaca. Afinal, na última madrugada, todos que não partiram em viagem ficaram acordados.

Jovens e velhos, gordos e magros, moradores e visitantes, todos formaram filas enormes para entrar em algum dos incontáveis bailes de bombeiros que se espalham pelo país. Nessa madrugada, a cada ano, as casernas, quase todas, baixam a guarda e se transformam em discotecas enormes, com vários ambientes, bandas, orquestras, mesas enormes para as famílias, champanhe a preço acessível. A garotada dança ensandecida, os idosos bebem sentados, contando histórias do passado, as moças cravam os olhos nos anfitriões, fardados, musculosos, talvez um pouco sérios demais para um evento tão alegre e que só acontece uma vez por ano. Por algum motivo, as bombeiras fazem menos sucesso com os rapazes, embora muitas também mereçam os aplausos de qualquer marmanjo.

Entre uma música e outra, um excelente exercício de sobriedade é contar o número de bandeiras tricolore em torno do salão. Erguidas em diagonal, dobradas segundo um padrão elegante e antiquíssimo, quietas e alertas em seus postos, elas não deixam esquecer aos foliões que aquela é uma celebração nacional. Jovial, barata, etílica, sem dúvida, mas sobretudo um ritual da unidade do país. Eis a mensagem das bandeiras, dos uniformes e até mesmo da arquitetura. Estáticos e discretos, esquecidos do público, às vezes é assim que os símbolos exercem seu maior poder.

Na história da França, houve reis que subjugaram as províncias impondo-lhes o francês como único idioma, não raro em regiões sem a menor raiz latina, como a Alsácia e a Gasconha. Napoleão, séculos mais tarde, formou o maior exército que o mundo já vira, conquistou a Europa, mudou a mão das ruas, recheou o Louvre, depois caiu em Waterloo. As sucessivas Repúblicas amarraram um cidadão ao outro com os elos, aparentemente inquebráveis, dos formulários e repartições, tarifas e concursos nacionais. De lá para cá, o que houve de constante, nacional e republicano foram os bombeiros, cujos bailes produzem uma expectativa comum a todos no país, jovens e velhos, gordos e magros, moradores e visitantes.

Padrão