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Quem disse que sou VIP?

Quando surgiram essas listas do Twitter1, começou a aparecer na minha página, ops, na minha “Home”, uma breve mensagem que, graças a Deus, já sumiu. O mesmo aconteceu, mais recentemente, com a invenção desse tão chatinho “RT automático”. Dizia a mensagem que eu fazia parte de um grupo destacado para testar o serviço; e esse grupo vinha acompanhado de um adjetivo que minha memória relapsa não guardou: seleto, restrito, exclusivo, sei lá eu. Enfim, querendo me convencer de que sou alguma espécie de VIP2, o Twitter me convidou a experimentar o novo serviço, leia-se, me convidou a servir de cobaia para verificar se um balão-de-ensaio estava funcionando. Dois, aliás.

Eu teria até me esquecido de tudo isso3, se não tivesse sido convidado para almoçar outro dia com meu amigo Germain, aquela figura infinitamente culta, mas que se atira de peito aberto em qualquer idéia, proposta ou projeto que lhe pareça absurda a contento. Estranhei o restaurante escolhido e a oferta de pagar a conta inteira. O homem, afinal, vive do salário melancólico de revisor editorial. Desconfiado, achei melhor pedir um prato menos proibitivo, mas ele meteu o indicador diretamente sobre um salmão com trufas. Diante do pasmo irradiado em meu rosto, ele se riu, mas explicou:

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– Consegui pagar minhas dívidas, mas sobraram uns trocados4 e resolvi te convidar para almoçar. Em sinal de gratidão, porque você não me deixou cair em depressão quando eu estava na merda5.

– Imagine… Mas o dinheiro veio de onde?

– Você não vai acreditar. Recebi o panfleto de um laboratório que oferecia entre 30€ e 3000€ para testes de novas drogas. Adivinhe! Me inscrevi e ganhei o valor máximo, porque testei o remédio menos seguro…

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Tentei chamar sua atenção para o risco que ele tinha corrido, mas o sujeito deu de ombros simplesmente, explicando que teve tremores inabituais na primeira semana, mas que agora já estava bom. E riu. No mais, foi uma tarde em que comemos e bebemos maravilhosamente.

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Unindo as duas novidades, e não posso negar que a experiência de Germain me pareceu sobremaneira assustadora, concluí que havia aí um grande aprendizado retórico, para não dizer político e mercadológico. Já dizia Henry Ford6 que apelar para o racional das pessoas não está com nada, o negócio é atacar as emoções mais básicas, aquelas mesmas do Roberto Jefferson, lá onde somos mais frágeis e desprotegidos. Nessa, a tal “nova economia” está em enorme vantagem sobre a antiga. O mencionado laboratório teve de desembolsar 3000€ para fazer o pobre e endividado Germain de cobaia. O Twitter conseguiu o mesmo efeito sobre mim simplesmente massageando meu ego. Ponto para eles.

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Sei que estou sendo injusto com o célebre miniblog, grande onda do momento. Testar listas e retweets não vai me causar tremores. Vai consumir, no máximo, meu tempo, além de fornecer dados meus para maquiavélicos publicitários e spammers7 obscuros me espezinharem. Mas é que não deu nem tempo de sentir orgulho por fazer parte do tal grupo+adjetivo (alguém lembra o que era?). A verdade é que nem mesmo nesse mini-universo micro-comunicativo do Twitter posso me considerar VIP no sentido em que eles entendem. Entrei no jogo tarde; “sigo” poucos e sou “seguido” por menos ainda; só uso o brinquedo, praticamente, para divulgar linques de coisas que escrevo ou alheias que me agradem (a não ser quando há uma boa piada envolvendo 22 marmanjos atrás de uma bola), e ainda de vez em quando dou umas alfinetadas, como agora. Então, ‘gradecido, mas a que devo tamanha honra? Boa pergunta.

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Sem contar que a própria noção de “escolhido” ou “seleto” me causa, embora não tanto, espero, quanto as injeções de Germain, tremores terríveis. Por dois motivos.

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O primeiro é que tudo aquilo que é verdadeiramente exclusivo, paradoxalmente, gostaria de ser inclusivo. Não, atenção!, a ponto de alardear as próprias qualidades em cartazes e placares mundo afora: uma tal atitude publicitária existe somente para estabelecer uma fachada MMC8 para todas as coisas, enquanto objetos, de forma a esconder as coisas, em si, do mercado que por elas pagará, crendo que terá pago pelo que viu anunciado. Penso, por exemplo, num daqueles sábios do período helenístico, que tenha conseguido atingir a ataraxia, estado máximo da sabedoria para muita gente, sobretudo na Índia e outros cantos por onde se disseminaram as doutrinas de Buda. Certamente nosso sábio em questão sabe que aquilo a que chegou é para poucos. Mas não gostaria ele que fosse para muitos? Estou certo de que gostaria, embora alguém em ataraxia não tenha desejos.

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Penso também em Kant9, suspirando sobre as edições recém-impressas de suas Críticas, constatando que “isto jamais será popular”. E como seria bom se ele estivesse errado! Se todos folheássemos a da Razão Pura, não haveria guerras de religião; se examinássemos a da Razão Prática, não imporíamos, como fazemos hoje até com violência, nossas máximas aos outros; e se ponderássemos sobre a da Faculdade de Julgamento, Faustão e Paulo Coelho ficariam sem público. Portanto, as coisas verdadeiramente exclusivas não se apresentam como tais. Eventualmente, quando podem ser comercializadas, são caríssimas (nem sempre), como determinados vinhos. Mas, ironicamente, o que o faz exclusivo se furta mesmo a quem tem acesso a uma garrafa, se a adquirir em função do valor pecuniário apresentado na etiqueta. E, convenhamos, será um desperdício de boa bebida, escorrendo goela abaixo de um pedante qualquer, com o sabor insosso de um preço.

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Creio que esse primeiro motivo não precise ser mais aprofundado, embora dê ainda para descobrir algumas coisas muito perturbadoras, se cavoucarmos um pouquinho mais. Mas, por enquanto, passo ao segundo motivo: é que a exclusividade, que se apresenta como apanágio dos ricos, na verdade é qualquer coisa de tristemente empobrecedor. A exclusão proposta (e não a inevitável, como no caso do vinho, da ataraxia e de Kant) tem esse pequeno inconveniente, que é o de pressupor um critério, ou um certo número de critérios, de exclusão. No caso, por exemplo, de um condomínio residencial, são, em geral, três ou mais: o custo, os dispositivos de segurança – um tipo de exclusão predominantemente física, mais visível e mais simbólica do que efetiva –, a distância para o centro da cidade. Já no caso de uma casa noturna para mauricinhos, o que se vê são brutamontes à porta, que, sem serem estilistas ou fotógrafos de moda, avaliam roupas, calçados, penteados, bolsas e maquiagem. Sua missão é clara e simples: barrar os inadequados e garantir que, do lado de dentro, haja somente a tal “gente bonita” – através de algum obscuro critério de beleza, que dificilmente dependerá dos traços do rosto ou das formas do corpo.

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Por que me parece que esses dispositivos são empobrecedores? À parte o fato de que enriquecedores certamente não são (ninguém fica mais rico, em nenhum sentido, por calçar a marca correta de sapatos), é porque eles tendem a reduzir àquele único critério toda a dimensão de virtualidade e potencial em que verdadeiramente consiste a vida. E isso, posso garantir, é empobrecedor. Todos que poderiam explorar, se tivessem a oportunidade ou a força de vontade de tomar consciência, aquilo em que suas disposições e inclinações inatas os tornam melhores, mais ricos e fecundos, vêem-se coagidos a canalizar a energia vital para um único sonho de entrar no clube exclusivo.

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Ao mesmo tempo, lá dentro, todas as relações, toda a tensão intersubjetiva, normalmente criadora e fascinante, está reduzida à obrigação de confirmar, constantemente, o pertencimento àquele enclave, àquele clube tão indistinto, formado a partir de um simulacro de distinção. Se existem macetes para galgar a rocha de algum sistema, seja um partido político ou uma rede social da internet, pode contar com que se transmutem imediatamente em regras, em um conjunto interminável delas: os famosos “do” e “don’t”, “in” e “out”, dicas, aplicativos, cursos… Resultado: de sujeito singular, enriquecido pelas tensões imponderáveis com a infinita multiplicidade de uma vida que poderíamos chamar autêntica, o pobre iludido pela idéia da exclusividade se vê reduzido a indivíduo acorrentado aos tais e tais gêneros a que pertence. Cruz credo, que miséria!

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Certamente não era nisso que pensava o Twitter quando se pôs a bajular seus usuários com uma história de grupo seleto (ou sei lá qual adjetivo). É natural, faz parte do modo de funcionamento daquilo que se convencionou chamar “nova economia”, mesmo sendo, cabe lembrar, uma estratégia que a precede de muito. Mas é evidente que o laboratório de Germain está muito atrasado em termos de retórica mercadológica. Em vez de oferecer remuneração, como antigamente, deveria vender a idéia de que é um privilégio oferecer o corpo às pesquisas médicas. Argumentos copiados da religião provavelmente seriam eficazes – e fica aí a dica.

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Melhor ainda, sem dúvida, seria convencer os consumidores de que é um privilégio, uma oportunidade tomar injeções e pílulas ainda pouco seguras10. Poderiam ser distribuídos convites, bem poucos no começo, depois mais, paulatinamente. Neguinho se estapearia por eles. O slogan teria de repetir que seus amigos vão invejá-lo, porque só você, isso mesmo, você teve o privilégio de experimentar essa insólita substância que não produziu, aleluia, efeitos colaterais em camundongos, porcos e chimpanzés. Faria um sucesso enorme e sairia muito mais barato. Só quem não ia gostar seria Germain, ainda endividado e sem acesso a um bom restaurante.

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1Minha opinião sobre elas é a seguinte, se alguém quiser saber: quanto mais atavios esses programas inventam, menos graça eles têm. Quando a gente começa a escorrer pela peneira de dispositivos que virou a internet, a primeira vítima é nosso engajamento nos serviços. A segunda é nossa “integridade digital”. Mas essa integridade não pode ser pulverizada demais, sob pena de faltar mesmo a substância que escorreria. Por isso, no meio do caminho, o dispositivo acaba sumindo, superado pela indistinção de seus próprios circuitos. Rapidamente tomam seu lugar outros dispositivos mais enxutos e o processo recomeça. Aconteceu com o ICQ, o Skype, o Orkut, o Altavista e tantos outros. Não vai demorar a acontecer, se continuarem nesse passo, com o Twitter e até, pode acreditar, com o Google.

2A saber, Very Important Person, um pleonasmo que engana otários ao redor do planeta, com um amor-próprio tão massacrado que se dispõe a abrir a carteira para qualquer oportunidade de ajuntar um oficioso “VI” ao seu “P” eterno e inalienável.

3Tento não pensar demais nessas pequenas cretinices deste início de século. Senão, correria o risco de acabar como misantropo e eremita.

4Des sous, en tradução mambembe.

5Dans la merde, em tradução literal.

6Ídolo maior entre ditadores alemães da primeira metade do século XX.

7Vou precisar que algum grande pensador, um novo Einstein, me explique qual é a diferença de verdade entre essas duas categorias. Afinal, o spammer nada mais faz do que aquilo que o publicitário gostaria de fazer, se as pesquisas de mercado não mostrassem que é pouco eficaz, ainda que baratíssimo.

8A noção de Mínimo Múltiplo Comum cai como uma luva aqui: carrega tanto a noção de mínimo, para descrever a sofisticação social da mercadoria; quanto a de comum, para explicitar sua dispersão fundamental pelos mercados; e, claro, a de múltiplo, que desmente qualquer ficção de exclusividade.

9Quem o conhece talvez tenha notado minha adaptação um tanto livre de sua estética do desinteresse…

10No século XXI, não há maneira melhor de enriquecer do que convencer os tolos de que são críticos ou jornalistas, publicar suas brilhantes reflexões gratuitamente e encher o alforje com as receitas publicitárias. Todos saem contentes e ainda tem um que sai rico.

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Os oprimidos somos nós. Augusto Boal: 1931-2009

Nem me lembrava de que Augusto Boal estava com leucemia. A notícia de sua morte acabou sendo uma surpresa, e reativou meu estranho gosto pelos obituários. Ainda não vi as matérias da imprensa brasileira sobre a partida do nosso velho mestre do engajamento teatral, e nem sei se devo. Me disseram que, no mais das vezes, foram só notas de rodapé; ademais, já sei que o máximo de profundidade que posso esperar é a constatação de que o Teatro do Oprimido tinha uma inspiração “de esquerda”. E é verdade, claro… até porque só na esquerda se fala em opressão. Os religiosos preferem o termo “exclusão”, e a direita, “marginalização”. Mistérios do idioma…

Opa, nada de digressões. O assunto, hoje, é o Boal, que não era um homem da política, embora fosse politizado e embora tenha sido vereador no Rio. Boal, formado e doutorado em química, era um homem do teatro. Perder-se em considerações sobre suas inclinações políticas, deixando de lado seu teatro, é nada menos do que cretinice. Sendo assim, o que interessa é perguntar: qual é o segredo de seu teatro, que o alçou à história?

Boal fazia parte daquele estranho grupo de artistas brasileiros que vivem um pouco no ostracismo no Brasil, mas são reverenciados no resto do mundo. Não sei se é por causa dos muitos anos de exílio de um sujeito que, enquanto a ditadura não conseguiu metê-lo no pau-de-arara, dirigiu o Show Opinião no Rio, comandou o Teatro de Arena em São Paulo e levou ao palco os textos mais contestadores de Vianinha e Gianfrancesco Guarnieri. Talvez, de fato, sua passagem por Argentina, Peru, Portugal e França, entre outros países, tenha disseminado tantos centros de Teatro do Oprimido por aí, que os brasileiros achem desnecessário comentar.

Pode ser. De qualquer forma, desmistifica aquela velha história de que o brasileiro só reconhece seus gênios depois que o estrangeiro os aplaudiu. Isso só é verdade, digamos assim, quando convém. Contudo, por algum motivo, alguém que vem interromper o curso normal da vida para colocar coisas em questão é qualquer coisa de muito exasperante para o brasileiro. Não convém… e é o caso do Boal; talvez isso explique melhor o silêncio em torno dele. Fico imaginando o que diriam certos articulistas e blogueiros se, no ano passado, ele tivesse ganho o Prêmio Nobel da Paz a que foi indicado.

O fato é que, com o Teatro do Oprimido, Boal foi aquele que conseguiu os melhores resultados, na arte do ator, para uma tendência que permeou talvez todas as formas de expressão artística a partir dos anos 60: sair à rua. Isso não é nada fácil e não deve ser confundido com apresentar-se na rua ou colher material e inspiração na rua, coisas que sempre existiram. Trata-se, na verdade, de introduzir a rua no campo da investigação estética. Por rua, entenda-se vida, porque a rua é o terreno do imprevisível, do anônimo, do fugaz. Justamente onde a vida é menos percebida e, por isso mesmo, mais latente.

Um bom exemplo é o do artista plástico francês Daniel Buren, que emprega sempre a mais banal das estratégias – listas brancas e coloridas ou negras, de tamanho definido e imutável há quarenta anos – para emoldurar as paisagens urbanas. Com isso, o transeunte, o cidadão, é levado por seu próprio inconsciente a se dar conta do lugar em que vive, de tudo aquilo que ele sempre tomou por irrelevante, invisível, indistinto no meio da percepção borrada que todos temos de nossa existência.

Se artistas como Buren transformam a cidade em arte pela introdução de uma moldura, Augusto Boal transformava o cidadão em ator pela reversão das expectativas. Ao mesmo tempo, o gesto simples de inventar situações apenas ligeiramente desviadas do banal transformava os artistas proponentes numa espécie de plateia. Em outras palavras, a separação milenar entre palco e público se desmaterializou pelo abraço de Boal. Um abraço perturbador, mas caloroso mesmo assim.

O oprimido em questão é, sim, em primeiro lugar, aquele que jamais teve voz no teatro, na política, na vida, em lugar algum. Em outras palavras, a imensa população do “andar de baixo”.  Mas não se limita a isso. Num ambiente urbano maquinal e racionalizado, onde o indivíduo está reduzido a um glóbulo vermelho na circulação incessante, cada um de nós é um oprimido. Por mais que falemos, critiquemos, peroremos, somos todos sem voz, como aqueles que Boal queria atingir. Talvez o mais perturbador, nas intervenções do Oprimido, seja essa constatação: o som que sai de nossas bocas no dia-a-dia nada mais é do que a reprodução desse dia-a-dia. Isso, claro, até que sejamos chamados a dar um passo fora da linha.

Levar o teatro para a rua (ou, melhor dizendo, para a vida real) não precisa nem de uma rua. A primeira experiência que levou ao Oprimido foi o Teatro-jornal, que Boal praticava no Arena de São Paulo no início dos anos 70. Para quem esqueceu, jornal brasileiro, nos anos 70, só publicava as notícias que interessavam à ditadura, quando e como lhe interessavam. Dramatizando essas notícias, numa sala de aula, num palco, em qualquer lugar, muito do que elas não diziam vinha à tona.

Depois, com o Teatro Invisível, um peteleco de situação inesperada transforma o espaço-tempo do esquecimento diário num espetáculo de improviso e consciência. Ironicamente, pelo fato de ser invisível, o teatro de Boal tem o poder de tornar visíveis todas aquelas coisas que normalmente não vemos ou não queremos ver. Nesse intuito, assim como para Daniel Buren bastam listas alvinegras, para Boal bastava uma fagulha banal – uma discussão de casal, uma carteira perdida, um pedido de ajuda – e o mundo inteiro se tornava arte, da noite para o dia. Numa metáfora um pouco pobre, Augusto Boal foi o escultor que se despreocupou do velho hábito de talhar o mármore e preferiu esculpir um magnífico pedestal, com que atraiu a atenção para o mundo em que realmente vivemos.

Agora, o pulo do gato: por que será que somos – nós, os brasileiros – sempre tentados a considerar qualquer iniciativa de deslocar o eixo da percepção individual como uma perigosa atitude esquerdista-subversiva-revolucionária? Será possível que toda busca de uma consciência de si e do mundo, fora do quadro corrente das nossas condições de vida, seja um atentado à ordem social? Esqueçamos, por um momento, a posição política que Augusto Boal, de fato, possuía. Será que qualquer indivíduo, sendo levado a olhar para sua vida e seu dia-a-dia de uma outra maneira – e uma maneira produzida pela sua própria racionalidade –, é um candidato a derrubar os fundamentos da sociedade?

É o que parece indicar a desconfiança que muita gente dedica ao trabalho de Boal. Porém, se isso for verdade, nada mais é do que um sintoma de que algo vai mal. Se a ascensão de pessoas comuns a uma compreensão mais autônoma de sua própria existência implica um risco para a sociedade, então essa sociedade é assustadoramente instável. Deve estar assentada sobre bases um tanto frágeis, para não dizer inviáveis. Não precisa ser nenhum revolucionário para se dar conta disso, mas devemos a Boal a possibilidade de constatá-lo. A Boal e, claro, à arte.

Mais sobre Boal e o Teatro do Oprimido:

CTO Rio

Itaú Cultural

Sobre a morte de Boal

Wikipédia (inglês)

Núcleo de TO em Porto Alegre

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Entrevista não de todo impossível

O que segue são as palavras de um jovem do sexo masculino, entrevistado na penumbra, para garantir o anonimato, e com a voz embaralhada eletronicamente, para evitar a identificação. É um depoimento “real”, colhido durante uma entrevista informal sobre as transformações de que a nova geração é, ao mesmo tempo, vítima e protagonista. As declarações foram tomadas em meados do último ano, mas o entrevistado, empregado numa corretora da valores da Bovespa, só hoje autorizou sua publicação, por temor de represálias que não foram especificadas.

* * *

Que jornal você anda lendo?

– Na verdade, desde que saí da casa dos meus pais, nunca assinei um jornal…

– Desculpe interromper: quando foi isso?

– Foi uns… cinco, seis anos atrás. Eu vi que já podia me sustentar, se fizesse alguns sacrifícios, mas minha renda era baixa demais, o aluguel um pouco salgado, e ainda tinha a gasolina, a cerveja… Acho que dá pra dar uma idéia. Não é que eu não gostasse de ler jornal. Ao contrário, eu adorava, lia desde criança, o Kfouri, o Nassif, o Cony, todo mundo. Mas eu precisava economizar e achava que poderia ler os jornais que chegavam no trabalho. Só que… assim…

– Não é a mesma coisa.

– Pois é. Ler em casa, tomando café… poder dobrar, separar os cadernos, sujar o papel de comida… E, no trabalho, você tem que manter uma certa postura, quer dizer… Você está lendo, não é como em casa, porque… Lá, você lê jornal e, no serviço, você lê o que está no jornal, entendeu?

– Em casa você não lê o que está no jornal?

– Não é isso, acho que me expressei mal. Em casa, o jornal é todo seu, mesmo que você divida ele com a família. E é uma coisa só, não é só um monte de notícias e colunas. É diferente, quer dizer…

– Mas as notícias são importantes também, não? Isto é, a informação. Como você fazia para se informar?

– É isso… informação, sim, claro, eu tinha. Eu via o jornal no trabalho e, para as coisas mais especializadas, do mercado, a gente recebe um clipping. Acho que o jornal em si era para saber um pouco do resto do mundo. Futebol, por exemplo.

– E a internet?

– Ah, sim, eu usava muito, claro. Mas ainda não era um substituto para o jornal, como é hoje. Quase não tinha notícia de graça, o pagamento não era seguro, aliás, continua não sendo, e os blogs não eram nada confiáveis.

– E agora…

– Ah, agora a internet é meu contato com o mundo, né? Nem TV, eu assisto mais!

– E você se considera um autêntico representante da “geração Y”?

– Nunca entendi direito o que isso quer dizer…

– A geração de pessoas sempre conectadas, que usam MSN, Orkut, Facebook, iPod…

– Não sei, acho que não. Até que eu não sou tão conectado assim. Acho que, para alguém que acorda todas as manhãs há décadas e vai buscar o jornal na porta, eu devo parecer um monstro informatizado, viciado em internet… Mas não sei, não me sinto assim. Aparece tanta coisa nova na internet, todo dia, que eu me sinto o maior dos reacionários com meu velho e-mailzinho. Nem blog eu tenho! E pior… não escrevo daquele jeito estranho, como se chama, mesmo?

– Mas é pela internet que você se informa, conversa, se diverte…

– Não é bem assim. Eu prefiro mil vezes conhecer gente no bar que na internet. Eu converso pelo Skype e pelo MSN por pura conveniência, isso não quer dizer que seja minha primeira opção…

– Você já fez amizades pela internet?

– Já, muitas! Minha namorada, aliás, eu conheci num fórum de discussão do Iron Maiden.

– Você começou nossa conversa dizendo que gostava de jornais, mas nunca assinou…

– Compro na banca, de vez em quando.

– Quando, por exemplo?

– Quando meu time ganha campeonatos, por exemplo. É uma lembrança que a gente tem que guardar. Não é a mesma coisa imprimir do site, concorda? Ou então, às vezes uma capa me seduz, tipo… quando promete uma série de textos com um tema importante. Aí eu compro como se fosse uma revista especializada.

– E como é essa experiência? Você disse que ler o jornal no trabalho “não é a mesma coisa”…

– É mesmo. Eu tinha mais coisas para dizer sobre isso. Nos fins-de-semana, eu vou almoçar com minha mãe. Família italiana, sabe como é… E então, antes do almoço, eu me sento no sofá e fico lendo o jornal que ela assina. E é nessas horas que eu sinto o quanto é diferente…

– Melhor?

– Não é por aí… é diferente. Às vezes, eu leio versões de jornal na internet que são a edição impressa escaneada. E não é a mesma coisa. Acho que eu já disse que o jornal é uma coisa só… Ele é um corpo inteiro e eu tenho a sensação de que, quando estou lendo jornais, mesmo que eu pule partes, depois volte, pare a leitura de um artigo no meio, quer dizer… o que quer que eu faça, estou com um jornal na mão… Nunca tive essa sensação com notícias que li na internet. No computador, eu sempre busco a notícia individualmente, ou o artigo de opinião, ou sei lá. Não é que seja melhor ou pior, é diferente, só isso.

– Mas você está mais acostumado com…

– O jornal, porque cresci com ele. É verdade, eu me sinto mais confortável lendo jornal, mas não é disso que estou falando. O jornal é cheio de coisas que eu não quero saber, que eu não tenho a menor vontade de ler, não me interessam, mas que estão ali… E mesmo quando eu passo por cima, não olho, enfim, não posso fazer nada contra as partes que não me interessam. Elas existem e pronto. São as partes do mundo que eu não controlo nem de longe, e nem por isso deixam de existir.

– Você se sente mais humilde, é isso?

– Acho que você está colocando palavras na minha boca [riso], mas é isso, uma lição de humildade. Só que o melhor de tudo é que às vezes eu acabo até lendo alguma dessas notícias que não me interessam e eu nunca tinha tido noção do quanto isso é diferente, quer dizer… pra mim é diferente, para os mais velhos é a coisa mais banal do mundo. Quer ver? Outro dia, meu time ganhou um campeonato importante e eu comprei o jornal. Na mesma página que dava notas aos jogadores, embaixo, tinha os resultados do turfe. Eu sempre achei essa palavra engraçada, falando nisso, quer dizer… Corrida de cavalo se chama turfe… Mas olha só que estanho… Eu não sei nada sobre aqueles cavalos, mas só de ver os resultados, números, nomes de puro-sangue, tudo aquilo, comecei a viajar. Fiquei imaginando aquelas pessoas todas, aposentados, desempregados, viciados, todo mundo nos fundos do jóquei, fazendo fila para apostar, rasgando a ficha quando perde dinheiro… E eu nem estava prestando atenção, quer dizer… puxa, entende?

– Mas a net é toda interligada, uma coisa leva à outra…

– Não sei até que ponto tudo é interligado… O que isso quer dizer, “interligado”? Sei lá, só sei que quando quero ver uma notícia, não vou ficar clicando em todas as palavras sublinhadas que aparecem. Olha, não quero parecer nostálgico, mas só vou dizer uma coisa: agora que todo mundo diz que os jornais estão morrendo, eu começo a ter arrependimentos. Se tivesse alugado o apartamento num bairro mais barato quando fui morar sozinho, poderia ter sobrado dinheiro para tomar mais cerveja e, ainda, assinar um jornal e uma revista. Agora é tarde, né? Os jornais vão acabar e, de toda forma, já ficaram tão ruins, não acha? Mas que sinto uma certa pena de não receber aquele resumo do mundo todo dia em casa, pode ter certeza.

– Mas esse resumo do mundo, como você diz, não é uma coisa meio autoritária? Alguém decidiu o que você leria e é isso que você vai ler. A internet costuma ser considerada mais democrática, porque tem a coisa da interatividade…

– Claro, claro, sem dúvida. É uma coisa totalmente diferente. Mas eu confesso que não me sinto capaz de decidir eu mesmo como vou resumir o mundo das notícias. Precisa ter uma formação muito fuderosa para saber escolher por conta própria, quer dizer… Não que isso seja muito diferente de como as coisas eram antes, com os jornais, né? Os donos do jornal escolhem como as coisas vão ser ditas e você precisa ter uma formação muito fuderosa para não cair na manipulação… autonomia não é para qualquer um, né?

– Mas na internet o jornalista não pode só dizer o que quer… O leitor responde, reage, contradiz o autor…

– Você está falando dos comentários das notícias? E dos posts? Tem alguma coisa boa aí?

– Claro que tem, tem coisa muito boa…

– Pode ser. Mas como é que eu vou saber? Entro na página do jornal, tem a notícia, e embaixo tem “dona fulana” e “seu sicrano” criticando as informações do jornalista. Que base eu tenho para julgar? E se o comentarista é muito bom, sei lá, com certeza ele só vai embaralhar mais a minha cabeça, porque ele sabe mais do que eu naquele assunto…

– Mas você não pode negar que isso te abre um campo de possibilidades. Não é só aquela voz única, senhora da razão, disseminando sua sabedoria. Do outro lado, eventuais objeções e emendas vêm à tona muito mais facilmente…

– Não estou negando. Com certeza, não estou negando. Mas continuo achando que só quem tem uma formação muito fuderosa consegue se orientar no meio de tanto debate!

– O que você quer dizer com “formação muito fuderosa”?

– Putz… sei lá. Saber tudo sobre tudo, vai! [riso]

– A possibilidade de todo mundo escrever no seu blog, comentar no blog dos outros, intervir nas notícias dos jornais, nos verbetes de dicionários, nos artigos da Wikipédia, além de poder fazer suas próprias reportagens por podcast, por vídeo à la Youtube, postar as próprias fotos, tudo isso você não acha que torna mais difícil a manipulação da opinião e da informação?

– Olha, você está falando com alguém que trabalhou a vida inteira no mercado financeiro. No meu metiê, a informação pode enriquecer ou empobrecer alguém em poucos minutos. Um telefonema pode derrubar uma empresa, uma frase no Twitter pode arruinar um banco, qualquer boato pode me levar a ter um ataque cardíaco. Eu acho o seguinte: quem tem mãos manipula. Quem tem mãos grandes manipula muito. Não é perfeitamente lógico? Dificultar a manipulação? Só se for mais difícil se afogar no meio do Pacífico que numa pia.

– Mas então nada muda?

– Como não? Sair de uma pia e cair no oceano não é uma mudança? [risos] Agora, falando sério, estou com medo de parecer um conservador renhido nessa história. Logo eu, que trabalho com dois monitores na minha frente, com a cotação de várias bolsas e commodities em tempo real. Já me aconteceu de intermediar uma operação que mudou o controle acionário de uma empresa, tudo bem que mais para pequena, mas foi via comunicação instantânea. Opa, estou na defensiva…

– É uma questão de escala, pelo que entendi…

– Não! Com certeza, não. Se fosse assim, eu acharia que ler jornais e ler o que está nos jornais é a mesma coisa, e ler notícias pela internet, idem. Lembra aquelas imagens dos operadores de bolsa fazendo gestos com a mão, empurra-empurra, segurando um telefone gigantesco no ouvido? Será que é só uma questão de escala que isso exista cada vez menos? Eu acho que não, quer dizer… Olha, se tem uma coisa que eu aprendi vendo as ações mudarem de mão é que nunca, nunca, nunca é só uma questão de escala. Se parece que é só quantitativo, é porque ainda não se chegou ao ponto de sela, quando os sinais se invertem. Sabe?

– Então você admite que é uma revolução.

– Posso perguntar aos universitários? [risos] É uma revolução, OK, mas isso significa que o mundo vai ter que aceitar ficar de ponta-cabeça [N.T.: de cabeça para baixo] por algum tempo. Vai encarar? Daqui a pouco ninguém mais vai sentir saudade daquele jornal inteirinho, cheio de coisas que a gente não queria e não esperava, porque pode conseguir exatamente o que quiser, quando quiser, na internet. Será que só eu vou ser o ultrapassado?

– Bom, toda a geração mais velha…

– Claro, claro, mas você sabe: “no longo prazo, estaremos todos mortos”. Isso, quem disse foi Keynes. Mas eu não sou keynesiano, viu?

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Blood, toil, tears and sweat

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Das outras vezes em que passei a noite em claro desde que vivo em Paris, foi para ver futebol. Ontem, abdiquei de acordar a tempo de ir ao curso de alemão para viver a História in the making. À distância, mas em tempo real, como só nossa era de conexões pode permitir. Olhos inchados, sobre a escrivaninha uma caneca de chá, trêmulo de frio e expectativa, passei horas no portal da CNN, a clicar sobre os mapas dos Estados americanos, vendo a subida dos números, acompanhando os comentários da torcida democrata em blogs e jornais, que, em poucas horas, passaram da apreensão esperançosa a uma torrente incontida de emoção, alívio e orgulho.

Eram quase seis horas da manhã na Europa quando começou o discurso da vitória de Barack Obama, no Grant Park de Chicago. Ohio e Virginia acabavam de revelar sua definitiva mudança de lado. A Flórida estava a caminho. Enquanto esperava a subida ao palanque do presidente eleito, a cobertura da BBC exibia cenas da celebração no Quênia, terra do pai e de muitos meio-irmãos de Barack. Uma multidão cantava e dançava, em meio a declarações de que aquela era uma vitória deles, também, um pouco. E quem haverá de dizer que não era? Comecei a imaginar a expressão de algum redneck do Mississippi que estivesse assistindo àquela cobertura; não sem uma certa alegria sádica, pensei que ele talvez sofresse um enfarte. Pena que só existisse na minha cabeça.

E começou o discurso. O 44o presidente dos Estados Unidos é um pequeno milagre, para não dizer que é um grande milagre. Seu domínio da oratória é raro. Cada movimento de sua cabeça e de suas mãos, cada pausa no meio das frases, cada piadinha que quebra a gravidade da retórica, cada olhar, tudo é tão bem estudado que parece natural. A facilidade de sua expressão é tamanha que faz crer que improvisa. Certa vez, debati com meu pai um discurso de campanha do então recém-escolhido candidato democrata. Ele dizia que não empolgava, eu discordei. Sem falsa modéstia, eu tinha razão. Obama não pode imprimir a suas palavras um tom inflamado, que o associaria mais a Jesse Jackson e a Malcolm X do que a Martin Luther King Jr., cujo famoso discurso do sonho é evocado por dez entre dez comentaristas desta eleição. De quebra, ainda reduziria a percepção de sua distância do belicismo caipira dos republicanos atuais.

Obama, ao falar, inculca no ouvinte os atributos que quer: sereno, culto, preparado, forte, capaz. Sua fala é tão bem controlada que até nos momentos em que deveria perder o controle, não perde. Foi assim quando se referiu a Michelle Obama, “the love (pausa) of my life“, e a sua avó, que faleceu no final da última semana. À parte os agradecimentos, devo dizer que fiquei muito impressionado com a força e a beleza do discurso. Digno de Lincoln, King, evidentemente, e Churchill, também em versão de texto, porque a pronúncia não é nada fácil (se não tiver paciência, pule direto para o último parágrafo, que é o ápice da beleza oratória). Melhor, creio, do que Kennedy. Em política, saber falar é tão importante quanto saber costurar acordos ou administrar a economia. Também nesse aspecto, Obama começa muito bem.

Nem preciso dizer que sou fascinado pela arte da Oratória. Talvez porque eu mesmo falo muito mal: tendo a embaralhar as palavras e perder a atenção do ouvinte. Que dirá de uma multidão… A vantagem de viver no estrangeiro, aliás, é que, com o sotaque, tudo se perdoa. Admiro, até invejo, quem consegue segurar o público só com a força de sua presença e de sua voz. Mais além, a palavra é um dos fenômenos que mais me fascinam. O poder de falar é determinante. É quase irresistível. Apaixona, como se vê pelos olhares vidrados da multidão que segue a voz clara de Obama, como investidores seguem sem pensar as ondas do mercado. A persuasão das belas palavras leva às lágrimas homens feitos, grisalhos, que em teoria viveram o suficiente para não se deixar emocionar e conduzir tão facilmente. Milhares de pessoas abrem mão de sua individualidade para repetir o mantra irresistível da campanha bem-sucedida: “Yes, we can!

A oratória é uma arte perigosa, sim. Basta lembrar de Carlos Lacerda, de Joseph Goebbels, e da seqüência magistral de Júlio César, peça de Shakespeare em que Brutus e Marco Antônio discursam sobre o cadáver ainda quente do líder, e basculam as emoções da multidão romana pela simples potência de suas frases fulminantes. O bardo, com sua visão aguda, não deixa dúvidas: o erro estratégico de Brutus foi deixar o adversário falar; e por último, ainda por cima. O texto dá a entender que a história do Império Romano seria outra sem essa falha.

Mas Obama, como eu já disse, é um milagre. No ponto em que está, já realizou grande parte do que tinha de fazer como símbolo. Imagem do homem negro que supera os obstáculos e consegue unir todas as etnias do país. Encarnação do esclarecimento que esmaga o perigo crescente do obscurantismo. Um bofetão no rosto da tradição racista dos Estados do Sul. Só pelo fato de ter sido eleito, Obama já abalou as estruturas nefastas da desigualdade, embora ela não vá deixar de existir, e forte, mesmo que ele seja reeleito e conduza um governo impecável nos próximos oito anos. Obama já chegou mais longe que o doutor King. E já chegou mais longe que Bobby Kennedy, branco como a neve, mas assassinado sem ter a chance de vencer as primárias democratas.

Porém, há que entender-se que o Barack Hussein Obama que conhecemos já é uma página da história. Acabou. Daqui por diante, teremos um outro Barack Hussein Obama. Um presidente não é um candidato. Não há um inimigo claro, uma chapa John McCain e Sarah Palin, que não representa absolutamente nada em termos governamentais e administrativos, mas encarna com perfeição a política do atraso, a manipulação de emoções patrióticas belicistas, a mentira de um misticismo chinfrim que se faz passar por religião, a estupidez agressiva travestida de honestidade simplória, que obteve dos eleitores do país mais rico do mundo a bagatela de cinqüenta e cinco milhões de votos. Eis o número de americanos que saíram de casa para escolher o absoluto vazio.

Isso já ficou para trás. Obama não é mais um antípoda dessa gente, ele agora é seu líder. Escolherá um ministério, enfrentará uma crise, tomará decisões difíceis. Negociará acordos comerciais com outros países, inclusive o Brasil, e será duro nas negociações, como espera seu eleitor. Será criticado por jornalistas e zombado por comediantes, como todos os presidentes de todos os países, salvo, no máximo, as piores ditaduras. Ele deixará de incorporar a esperança. Passará a representar um país. Sua oratória será fundamental nessa nova etapa de recessão e guerra, mas não será tudo. A grande, a verdadeira vitória que o novo presidente americano pode obter é outra:

Quando criança, eu vivia num subúrbio de Washington, D.C., e na minha turma da escola havia um único garotinho negro, de cujo nome já me esqueci (como, aliás, de todos os outros coleguinhas daquele tempo). Em várias aulas, a adorável professorinha, Ms. Flannery (engraçado, do nome dela, não esqueci!), se esforçava por nos fazer entender a importância da igualdade e o absurdo da discriminação racial. Certo dia, recebemos como dever de casa inventar uma história que envolvesse outros alunos da turma. Na que escrevi, todos os meus amigos eram abduzidos por alguma força inexplicável e se transformavam em pessoas más, muito cruéis. Eu seria o único a resistir e teria de salvar todos os demais. Um verdadeiro herói americano, digamos assim. Mas mudei o enredo. Achei, veja só, que estaria agindo como um racista se incluísse o colega negro na lista dos maus. No texto final, então, nós dois lutávamos lado a lado pelo triunfo do Bem. Ninguém jamais soube por que fiz a alteração. Meu colega ficou lisonjeado. Se fosse no Brasil, tenho certeza de que passariam a me olhar torto, com o tradicional “sei não”…

Contei esse episódio para chegar à vitória que Obama ainda precisa conquistar, nos quatro ou oito anos em que ocupará a Casa Branca. Ele terá triunfado se ações ingênuas como a minha se tornarem obsoletas. Se ninguém comentar uma decisão do presidente fazendo menção à sua cor. Se não pegarem mais leve, nem mais pesado, porque ele “é negro”. Se concordâncias e discordâncias passarem por cima do fato, como se fosse um detalhe. Ironicamente, o maior feito de Obama terá sido transformar sua grande diferença em qualquer coisa de corriqueiro.

É claro que não vai acontecer. Quinhentos anos de discriminação racial, escravidão, segregação, preconceito, não vão ser apagados por um ou dois mandatos. Mas já terá sido um ganho enorme se, no mundo inteiro, pessoas que sempre enxergaram a si próprias como inferiores por causa de sua pele puderem ter espaço para se impor como cidadãos plenos. Daqui por diante, todas as crianças, de todas as cores e etnias, do mundo inteiro, vão nascer e crescer com a imagem de um presidente americano que não é branco, não é W.A.S.P (OK, Kennedy era católico). Para essas crianças, a idéia de que o negro possa ser inferior ao branco não fará sentido. Eis a vitória que Obama terá de cavar enquanto estiver trabalhando no Salão Oval.

Estou convicto de que a madrugada fria que passei diante do computador e da televisão é algo que vou contar para meus netos. Valeu a pena.

PS: Sobre as eleições propriamente ditas, em português, recomendo os óbvios Biscoito Fino e Pedro Dória, além do excelente blog de Argemiro Ferreira. Para algumas frases bem escolhidas e traduzidas para nossa última flor do Lácio, recorram ao Animot. Para quem gosta de sarcasmo irrefreado, O Hermenauta.

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arte, barbárie, cinema, frança, francês, imagens, ironia, modernidade, opinião, prosa, reflexão, reportagem, tempo

Houellebecq e sua ilha

Acabou de sair por aqui um filme dirigido por Michel Houellebecq. Fiquei curioso para vê-lo, embora a somatória de todos os trechos seus que li não dê um livro inteiro. E não li por birra, simplesmente. Sempre tive a impressão de que seu jeito polêmico era forçado. A antipatia é uma das estratégias de marketing mais exploradas pelos autores hodiernos, não me pergunte a razão. Temendo que minha opinião sobre o escritor contaminasse minhas impressões sobre sua obra, me abstive de abrir um volume de Houellebecq. Mas fui ver o filme, graças a uma promoção de início de outono que atirou lá para baixo o preço dos ingressos de cinema em Paris. Passamos a tarde inteira de domingo entrando e saindo de salas de exibição, numa maratona que começou com uma comédia musical americana e terminou com uma ficção científica metida a conto filosófico. Se o sentido tivesse sido o oposto, talvez tivéssemos dormido melhor, mas o fato é que fechamos a noite com as imagens desiludidas de A possibilidade de uma ilha (La possibilité d’une île).

Em poucas palavras, o que para alguns é fundamental, mas para mim não tem importância alguma: o filme é bom? Não chega a ser. A ironia amarga da prosa de Houellebecq mal dá o ar de sua graça, assim como a condensação do tempo e da identidade individual, pedra de toque do livro que deu origem ao filme. As personagens não têm carisma, ao contrário do livro, em que mesmo o grande líder religioso é um cínico desiludido. (Antes que me pergunte como sei disso, se não li o livro: folheei-o.)

Agora que estou livre da obrigação de avaliar o filme, posso entrar nos assuntos muito mais interessantes que ele pode gerar. Em primeiro lugar, fico imensamente feliz de saber que ainda é possível fazer filmes assim. Uma linguagem longe do convencional, longos planos e pausas, atores imóveis, ângulos oblíquos, cortes inesperados. Como nos bons tempos do cinema. É verdade que, apesar das entradas quase gratuitas, a pequena sala estava praticamente vazia. Não mais de oito pessoas, enquanto no tal musical americano (muito divertido, por sinal) saía gente pelo ladrão de uma sala muitas vezes maior. Mas isso não quer dizer nada. Bem ou mal, Houellebecq conseguiu dinheiro para adaptar seu próprio livro da maneira como bem entendesse, e isso é sinal de que ainda existe alguém disposto a investir nas empreitadas arriscadas. Certo dia, alguém deu uma soma considerável na mão de Fellini para ele imprimir no celulóide seus sonhos absurdos. Não sei quem foi o empresário visionário, mas garanto que ficou rico. Tampouco sei quando surgiu o consenso de que o público é formado única e exclusivamente por gente sem imaginação e dopada pelas fórmulas consagradas de Hollywood. Só sei que é uma lástima.

Mesmo não sendo o caso de Houellebecq, existe uma legião de cineastas cheios de boas idéias e muito talento, jovens, arrojados, inventivos, sedentos por uns caraminguás para rodar o primeiro longa. Esse pessoal não é invenção minha, qualquer festival de curta-metragens revela um caminhão de gente interessante. Entre eles e as obras-primas da próxima geração, o único obstáculo é o investidor, que precisa perder o medo do fracasso, para aprender a apostar no longo prazo. Foi assim que os empreendedores do passado ficaram ricos; não foi pela repetição temerosa de velhas fórmulas cansadas e disseminadas ad nauseam.

* * *

Agora, ao segundo ponto que eu gostaria de levantar. Dizem que Houellebecq tem uma personalidade desprezível. Eu não teria como avaliar. Mas é certo que uma das coisas interessantes sobre sua obra literária é a dificuldade de distinguir o que é opinião sua e o que é pensamento das personagens. Os protagonistas de seus livros costumam ser pessoas vis, baixas, rasteiras, vulgares, cínicas, inescrupulosas e por aí vai. Mas a tinta consegue, com o concurso de uma certa habilidade estilística, misturar os traços de forma tão indiscernível, que idéias e conceitos passam por entre os dedos do julgamento, como areia fina. É Houellebecq o racista, ou seu herói? Autor ou personagem, qual é o cretino? São exemplos das discussões que os literatos gostam de ter a respeito do escritor.

Pois bem, acontece que o próprio escritor resolveu colocar na tela um de seus livros. Deve ser o sonho de muitos artistas, imagino. É muito raro que um filme seja melhor do que o livro de que é adaptação, a não ser nos casos em que o texto original é um romance de quinta, e a resultante cinematográfica, uma obra-prima. É o caso de Psicose, por exemplo. No mais das vezes, vale mais a pena perder uns dias sobre o papel do que um par de horas diante da tela. Logo, o melhor é criar algo inteiramente diferente do original, que não possa ser comparado a ele, que provoque no máximo uma ligeira reminiscência.

É que, dizem, uma imagem vale por mil palavras. Eu estaria mais inclinado a considerar que uma imagem vale por uma imagem; uma palavra, por uma palavra. São linguagens que atingem campos diferentes da nossa sensibilidade. Uma cena não é o mesmo que a descrição da cena, nem é o mesmo que sua representação. Assim, alguém que assista a um filme com a cabeça de um leitor está fadado a não compreender absolutamente nada do que tem pela frente.

É nessa distinção que Houellebecq entrega o ouro. A grande vantagem do texto escrito é que, embora demore muito mais tempo para ser absorvido do que o visual, deixa sempre um espaço enorme para a imaginação. Por mais detalhada que seja uma descrição, ela não entrega pronta a figura descrita, como acontece na tela. Determinadas idiossincrasias do autor conseguem manter-se veladas, se for essa sua intenção. A imagem exige cuidados maiores. A escolha dos atores tende a reproduzir os mecanismos inconscientes de quem os escolheu, e no caso de A possibilidade de uma ilha, o diretor é o próprio escritor. Paisagens, cores, cortes, tudo isso é parte do discurso, tanto quanto vírgulas, parágrafos e capítulos no romance original. É possível ler através desses detalhes.

Não sei como explicar, para alguém que não o viu e provavelmente não o verá, o que o filme deixa revelar, provavelmente sem querer. Chego a imaginar, também, que posso ter projetado minhas próprias opiniões sobre a obra; isso não é de todo impossível. Mas, ressalvas à parte, o tom decadentista de Houellebecq parece desnudar-se inteiramente. Revela-se, como eu desconfiava, forçado. Tive a impressão de que o autor não acredita em seus próprios argumentos.

A desolação que as paisagens deveriam transmitir parecem estar só na reiteração dos horizontes calcinados, enfileirados sem sentido, incapazes de tocar o espectador. A acidez do protagonista, interpretado por Benoît Magimel (que já encarnou Luís XIV), parece vir mais de sua fisionomia peculiar do que de sua postura diante dos fatos que presencia.

A heroína silenciosa, cujo clone vagueia por terras inóspitas após o desaparecimento da humanidade, faz um esforço enorme para expressar seu desespero. Mas não é fácil, sobretudo se comparamos sua situação à do clone do protagonista, que passeia em filosofices verborrágicas por campos e vales, acompanhado de um cãozinho muito simpático. Não estou querendo corroborar a idéia de que Houellebecq seja racista por fazer cair repetidamente sua protagonista negra, seminua, ao chão de um deserto, sem lhe dar ao menos uma fala para mostrar seu trabalho de atriz, enquanto o rapaz esbelto, louro e culto paira sobre a desgraça humana com um belo terno negro e um cajado, falando sem parar. Mas é difícil entender por que tanta desigualdade, mesmo depois que acabou o sistema capitalista.

Não quero demover os amantes da literatura de uma ida ao cinema para ver A possibilidade de uma ilha. Pelo contrário, apesar de todos os defeitos que eu acreditei encontrar no filme, o fato de que ele exista é um acontecimento a ser aplaudido. Ademais, para quem gosta mesmo de livros, de Houellebecq ou não, é uma oportunidade rara ver como um autor adapta sua própria obra para a tela.

PS: Para quem lê em francês, eis uma discussão interessante sobre o filme.

E outra aqui, indicação de Bruno Carmelo.

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crônica, descoberta, ironia, passado, prosa, reflexão, tempo, trabalho, transcendência

Anátema

Imagine esta circunstância sobrenatural: se aproxima de você uma entidade misteriosa, digamos, um anjo, e lhe estende umas folhas de papel. Você toma o volume e se põe a ler. Tem uma certa dificuldade em entender o que está escrito, mas aos poucos vai juntando os cacos para decifrar o documento. São as linhas gerais de uma personalidade. Meia dúzia de frases explicativas, um diagrama das leis que regem o sistema de convicções, uma tabela com o índice de respeito aos princípios, um gráfico com a taxa de desvio da norma (auto-imposta) e, ao final, o histórico das reorientações de conduta, organizado em tópicos.

Você chega ao termo da última página. Leu tudo, porque não quer ser desrespeitoso com um enviado dos céus, mas não entende por que lhe entregaram um relatório tão detalhado sobre a alma de algum desconhecido. Uma pessoa que, coitada, recebe impulsos e sofre influências de todos os lados, respeita mas critica tudo em que jamais acreditou, deseja o que despreza, desconhece o que quer, faz perguntas a si própria e se perde nelas, sem que a resposta ao menos seja de seu interesse. Um espírito que age segundo certezas perdidas no inconsciente, enquanto as idéias que profere mal tocam suas emoções, mas não entende por que continua comendo quando quer emagrecer, por que entra em brigas quando bebe, por que não consegue largar o emprego e partir para aquele safári na África.

Não que a mente dos outros seja desinteressante, mas, convenhamos, você pensa: quanta indiscrição!

Confuso, mas ainda em deferência ao ser de pura razão que tem à sua frente, você ousa lhe perguntar o que é aquilo. No tom mais suave que consegue, é claro. O anjo sorri, como sempre sorriem os anjos, a crer nos relatos, e responde: és tu, cabra. Impossível, você pensa. Mas emudece. O anjo repousa o sorriso, que não seria de bom tom sorrir tendo à frente um mortal perplexo. Confere se não há mais questões e, finda a missão, parte em silêncio. Os anjos, bem se sabe, dizem somente o necessário. Está no manual.

E você segue no mesmo lugar, sentado ao meio-fio, melhor lugar possível para se entregar ao exame de um material tão perturbador. Aquilo ali é o esclarecimento de todo o seu ser, trazido por um enviado de Deus, mas não tem jeito de você se reconhecer na papelada. Vem a aflição. Um aperto. Será verdade? É, ora, porque tem de ser. Mas como, cadê, nada ali parece bater, é um disparate. Talvez o tal anjo seja um gênio maligno, destacado para enganá-lo. Talvez seja um sonho. Aquele não é você, você que se conhece, você que vive à sua própria volta o dia inteiro. Nas linhas, aqui e ali, um ponto que coincide, nada de mais. Uma idéia do passado, mas que já foi. Manias difíceis de sufocar, mas superadas eventualmente. Pensamentos repetidos e vícios de linguagem que, no fundo, é verdade, você tem, pensando melhor.

Detalhes, detalhes, se desse para contar com eles, a vida seria impossível. E, no entanto, são eles que começam a se encaixar. E mesmo assim, é bastante aleatório. Uma coisa que virou outra, a metamorfose de uma crença, a fusão de um par de sonhos, o abandono involuntário de um trajeto. O que está aqui, na primeira página, bate bem com uma passagem da penúltima. Juntos, os dois trechos explicam um terceiro, perdido nas notas de rodapé. Uma frase que não tem sentido, ah, mas tem, é só reler em seguida a esta outra, que também parecia não dizer nada. Cáspite! Você não se conhece.

Nos anexos, trechos inteiros de pensamentos, desses em que você se perde durante as caminhadas no calçadão. Que escândalo: no mesmo dia, pior, na mesma manhã, você fez a descoberta da escalação ideal para o seu time. Mas são escalações diferentes, e você nem percebeu. Mas como nenhuma delas coincidiu com a do técnico, não houve problema em considerá-lo um incapaz, principalmente depois da derrota contra um time mais fraco. Consta também uma paixão fulminante pela responsável do atendimento, já esquecida, e um tanto improvável. Como se apaixonar por aquela mulher desprezível, sem graça, artificial, interesseira, carreirista e acima do peso? Só pode ser mentira. No entanto, está ali e ponto final. Como também está a vez em que você votou contra seu grupo, traidor, só de birra. E o episódio da doença fingida, para não passar por covarde diante de um lutador mais forte, mais treinado e, ainda por cima, desleal.

Raio de anjo! Por que essa tortura? Você azeda, se revolta, levanta de um salto, determinado a esquecer que tudo isso aconteceu, acordar do pesadelo, tocar sua vida. Que os deuses, seja lá quem forem, saibam que você é humano, é imperfeito, tem o direito de mudar e cometer deslizes, cair em contradição, mentir sem querer, ser honesto mas sucumbir a tentações. E que não venham lhe causar amargura e angústia de novo, à toa desse jeito! Dado o recado, você parte, batendo os pés. Mas, veja só, não rasga o documento, não atira no lixo o resumo de sua vida, não queima seu passado impresso. Leva-o na mão, enrolado como um diploma, até chegar em casa e se atirar no sofá.

* * *

Sei de pelo menos um psicólogo que vai ler este texto. E ele há de exclamar diante da tela: céus, o rapaz está fazendo uma auto-análise em público! E já que vou ser desmascarado de qualquer forma, então admito, não tem jeito, é mesmo algo assim. Pelo menos, tive o bom senso de esconder as idéias debaixo de uma alegoria, soterradas pela metáfora. Digo isso para provar que não pirei, nem andei experimentando substâncias pesadas antes do tempo.

Por outro lado, se não recebi a visita de anjo nenhum (ainda bem), recebi um comentário de um texto muito antigo, vindo de um desconhecido. Se não me entregaram uma folha de papel, mil perdões, é uma metáfora ordinária para a tela do computador. Se não estava escrita minha vida inteira, estava, sim, uma fração de um eu que deixei escapar, que ficou para trás enquanto eu tinha olhos, braços e pernas voltados só para novos eus desconhecidos. Ganhei deste lado, perdi daquele. Deixei de ser idêntico a mim mesmo.

Que importa, é o que acontece com todos. Muda-se tanto, que não dá mais nem para identificar um eu original com quem se poderia ser idêntico daí por diante. Mas é terrível ser confrontado com a encarnação de uma parte do próprio espírito (e é precisamente isso que um texto é). Outro estilo, outro tom, outro tema. Quase, poderíamos dizer, outro autor.

Daí advém toda sorte de questionamentos. Esquecemos os ganhos, damos atenção demais às perdas e nos deixamos asfixiar pela nostalgia de qualquer coisa de muito indefinida. A pergunta vem sem ser chamada: o que quero de mim, para mim, como mim, é aquilo ou é isto? Ou seria ainda uma terceira coisa? Por que não posso manter aquele ritmo, aquele estilo, aquela mente, e apenas enriquecê-la com esta?

Nada fácil ser fiel a si próprio! Em meus devaneios, desvio o foco para este blog. Relendo seu título, penso no que me motivou a batizá-lo assim. Foi há dois anos. Que nome teria o blog se fosse começado hoje? “Para ler sem olhar” é que não seria, pensei, numa tristeza inopinada. Tenho olhado tanto para aquilo que leio… Seria de um cinismo repulsivo renomear este espaço tal e qual. A leveza que me pautava, implodi-a. Quis ganhar musculatura, ganhei foi peso. Estrangulei o último lirismo que sobrevivia nesta prosa e deformei a tal ponto meus parágrafos que quem me conheceu naqueles tempos, hoje atravessaria sem um relance o meu caminho.

Maldito anjo desconhecido, que se meteu a exumar idéias que enterrei sei lá onde. Você me paralisou, roubou meu fôlego e meu apetite. Não posso nem desejar sua morte, seu imortal, mas posso me recusar a encarar as verdades que me trouxe. Se, pela marcha fatal da vida, me é vetado falar como me apetece, meu protesto será o silêncio embirrado.

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Brasil, crônica, escândalo, ironia, lula, opinião, Politica, reflexão

O cartão nosso de cada dia

Cart%C3%B5es,+muitos+cartoes
Às vezes é difícil justificar, mesmo explicar, minha política geral de sensatez. Mas estou contente com ela, tem funcionado, está ótimo. Um de seus princípios mais elementares, por exemplo, é a proibição de entrar na corrente das discussões sobre os escândalos periódicos da política brasileira. Longe de ser um atestado de alienação, a estratégia está calcada em motivos muito concretos. Em primeiro lugar, estou fora do país: não tenho meios, nem paciência, para acompanhar de perto o desenrolar de cada novela de Brasília. Depois, porque não sou, nem pretendo ser, alguma sumidade em análise política e, no meu entender, não há campo pior para a ingenuidade do que esse, embora seja impossível navegar por blogs e jornais sem tropeçar num ingênuo. Também, porque há gente que faz isso muito melhor do que eu, e os que fazem pior, o fazem com uma tal autoridade que chega a confundir. Por último, é tanto escândalo, que um blogueiro pode acabar passando a vida inteira sem comentar outra coisa e, ao termo de seus dias, já nem se lembrará mais o que queria dizer todo aquele barulho.

Felizmente, minha política cerceadora é razoavelmente malemolente, bem à brasileira, flexível, contornável. Em resumo, deixa uma porta aberta para as disposições em contrário, e nem por isso deixa de se pautar pela sensatez irrestrita. Sendo assim, em casos particulares minha consciência pode admitir um escândalo político como tema, conquanto seja só um trampolim para reflexões de outra natureza. Por “outra natureza”, expressão vaga como ela só, tento traduzir desde um nível maior de abstração – discussões conceituais, digamos – até um problema que abarque os aspectos mais concretos de nossa existência nacional.

Feitas as explicações, mãos à massa. Esse último episódio, o dos cartões corporativos, pode ser muito útil para que nós, os brasileiros, compreendamos um pouco melhor nosso próprio espírito nacional (ethos, diria Norbert Elias). Aplicando minha política de sensatez, temos que:

1) Sobre a ilegalidade ou, se preferir, a imoralidade dos saques e compras com dinheiro vivo cujo proprietário legítimo é o Estado brasileiro, creio não haver muito mais a discutir. De fato, esse dinheiro tem sua origem em impostos e lucros obtidos com a venda do combustível caríssimo da Petrobras. Em resumo, é nosso, não deveria ser usado por amigos dos amigos de quem ocupa o palácio.

2) Cidadãos com muito gosto e pouca compreensão para a política andam aventando a possibilidade de remover o presidente, como conseqüência das denúncias e da próxima CPI que há de atrair os holofotes. Ora, não precisa ter grande vivência em Brasília para saber que isso é mais do que improvável: um evento do porte de um impeachment não é jamais o fruto de considerações éticas ou legais. É sempre, invariavelmente, uma decorrência do jogo político. Mas hoje, não interessa a ninguém, na política brasileira, tirar Lula do poder, ao contrário do que pensam certos comentaristas que vivem com a cabeça nas nuvens. A exceção talvez seja o Rodrigo Maia, filho do prefeito, que parece mais preocupado em colocar a cabeça fora d’água do que em navegar com sabedoria pelos canais do poder. Ou seja, tampouco é assunto.

Sobra o fato em si, e o que ele nos diz sobre nossa forma brasileira de agir. Dediquemo-nos a isso! Um dos traços mais interessantes do governo Lula é o caráter profundamente corriqueiro de seus vícios. As gafes, os escândalos, as pequenas atitudes muito vergonhosas em que cai o presidente parecem, às vezes, de naturalidade e inocência atrozes. Bebedeiras, pronúncia falha, assessores que usam o dinheiro público para gastos pessoais. É menos agressivo, porém mais ofensivo, curiosamente.

Parece que grandes desvios, negociatas e crimes do gênero são mais dignos da sujeira típica da política. Relevamos, para não dizer que perdoamos. Mas há algo profundamente incômodo nesses pecadilhos vulgares em que a atual gestão do nosso Estado é mestre. (Não estou dizendo que são os únicos que ela comete, bem entendido. A existência de pequenos delitos não exclui a grande sujeira, o mensalão está aí que não me deixa mentir.)

Existe um estranho, mas evidente, desequilíbrio nas nossas reações. Tão estranho que merece ser explicado. Eis minha proposta, nessa nossa investigação informal: graças às falhas do PT, estamos descobrindo o quanto são erradas atitudes que, normalmente, não temos vergonha alguma de tomar nós mesmos. A dos cartões é só a mais banal. Quantas vezes o brasileiro não vai a jantares de negócios e, pelo fato de poder usar dinheiro da empresa, não o próprio, aproveita para tomar vinhos mais caros até do que a casa em que vive? Em viagem, quantas vezes o brasileiro não saca, do cartão da empresa, os euros com que passeará na Champs-Élysées? E quantas vezes ele sentirá remorso por isso?

Talvez esse seja o ponto mais positivo de ter na presidência um sujeito que não recebeu a menor preparação para agir como um estadista (tempo para isso não lhe faltou, aliás). Lula e seu entourage cometem erros impensáveis numa equipe alinhada como a de Fernando Henrique (o presidente, não o goleiro). É vergonhoso, é terrível, mas tem seu lado bom. Expõe nossos próprios pequenos erros. A candura com que Lula reagiu à descoberta de que “isso não se faz” chega a ser emocionante. Assim como nós, brasileiros, quando avançamos os sinais vermelhos, damos “um jeito” de conseguir alguma coisa e passamos por cima da lei e da ética, não temos a menor idéia de que agimos de forma condenável. “É normal, ué!”

Os vícios do governo escancaram os nossos. Viva! Pelo visto, o Estado reflete a alma de seu povo, como já preconizava o decano Platão. Resta saber o quanto isso vai nos atingir. Não tenho grandes esperanças. Estou convencido de que vamos nos ater à etapa de lançar pedras contra as vidraças do Planalto. Resguardado, naturalmente, que não resulte em nada: imagine se, daqui a vinte anos, um garoto pergunta ao pai, para um trabalho de História na escola, por que o presidente Da Silva foi afastado do cargo, e o pai, em pleno gesto de apanhar o cartão da empresa para pagar alguma conta pessoal, lhe responde: “porque fez o que estou fazendo agora”? Que situação desconfortável! Pensar em mudar a atitude do povo inteiro é uma temeridade. Melhor pensar em outra coisa.

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