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Quem disse que sou VIP?

Quando surgiram essas listas do Twitter1, começou a aparecer na minha página, ops, na minha “Home”, uma breve mensagem que, graças a Deus, já sumiu. O mesmo aconteceu, mais recentemente, com a invenção desse tão chatinho “RT automático”. Dizia a mensagem que eu fazia parte de um grupo destacado para testar o serviço; e esse grupo vinha acompanhado de um adjetivo que minha memória relapsa não guardou: seleto, restrito, exclusivo, sei lá eu. Enfim, querendo me convencer de que sou alguma espécie de VIP2, o Twitter me convidou a experimentar o novo serviço, leia-se, me convidou a servir de cobaia para verificar se um balão-de-ensaio estava funcionando. Dois, aliás.

Eu teria até me esquecido de tudo isso3, se não tivesse sido convidado para almoçar outro dia com meu amigo Germain, aquela figura infinitamente culta, mas que se atira de peito aberto em qualquer idéia, proposta ou projeto que lhe pareça absurda a contento. Estranhei o restaurante escolhido e a oferta de pagar a conta inteira. O homem, afinal, vive do salário melancólico de revisor editorial. Desconfiado, achei melhor pedir um prato menos proibitivo, mas ele meteu o indicador diretamente sobre um salmão com trufas. Diante do pasmo irradiado em meu rosto, ele se riu, mas explicou:

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– Consegui pagar minhas dívidas, mas sobraram uns trocados4 e resolvi te convidar para almoçar. Em sinal de gratidão, porque você não me deixou cair em depressão quando eu estava na merda5.

– Imagine… Mas o dinheiro veio de onde?

– Você não vai acreditar. Recebi o panfleto de um laboratório que oferecia entre 30€ e 3000€ para testes de novas drogas. Adivinhe! Me inscrevi e ganhei o valor máximo, porque testei o remédio menos seguro…

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Tentei chamar sua atenção para o risco que ele tinha corrido, mas o sujeito deu de ombros simplesmente, explicando que teve tremores inabituais na primeira semana, mas que agora já estava bom. E riu. No mais, foi uma tarde em que comemos e bebemos maravilhosamente.

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Unindo as duas novidades, e não posso negar que a experiência de Germain me pareceu sobremaneira assustadora, concluí que havia aí um grande aprendizado retórico, para não dizer político e mercadológico. Já dizia Henry Ford6 que apelar para o racional das pessoas não está com nada, o negócio é atacar as emoções mais básicas, aquelas mesmas do Roberto Jefferson, lá onde somos mais frágeis e desprotegidos. Nessa, a tal “nova economia” está em enorme vantagem sobre a antiga. O mencionado laboratório teve de desembolsar 3000€ para fazer o pobre e endividado Germain de cobaia. O Twitter conseguiu o mesmo efeito sobre mim simplesmente massageando meu ego. Ponto para eles.

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Sei que estou sendo injusto com o célebre miniblog, grande onda do momento. Testar listas e retweets não vai me causar tremores. Vai consumir, no máximo, meu tempo, além de fornecer dados meus para maquiavélicos publicitários e spammers7 obscuros me espezinharem. Mas é que não deu nem tempo de sentir orgulho por fazer parte do tal grupo+adjetivo (alguém lembra o que era?). A verdade é que nem mesmo nesse mini-universo micro-comunicativo do Twitter posso me considerar VIP no sentido em que eles entendem. Entrei no jogo tarde; “sigo” poucos e sou “seguido” por menos ainda; só uso o brinquedo, praticamente, para divulgar linques de coisas que escrevo ou alheias que me agradem (a não ser quando há uma boa piada envolvendo 22 marmanjos atrás de uma bola), e ainda de vez em quando dou umas alfinetadas, como agora. Então, ‘gradecido, mas a que devo tamanha honra? Boa pergunta.

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Sem contar que a própria noção de “escolhido” ou “seleto” me causa, embora não tanto, espero, quanto as injeções de Germain, tremores terríveis. Por dois motivos.

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O primeiro é que tudo aquilo que é verdadeiramente exclusivo, paradoxalmente, gostaria de ser inclusivo. Não, atenção!, a ponto de alardear as próprias qualidades em cartazes e placares mundo afora: uma tal atitude publicitária existe somente para estabelecer uma fachada MMC8 para todas as coisas, enquanto objetos, de forma a esconder as coisas, em si, do mercado que por elas pagará, crendo que terá pago pelo que viu anunciado. Penso, por exemplo, num daqueles sábios do período helenístico, que tenha conseguido atingir a ataraxia, estado máximo da sabedoria para muita gente, sobretudo na Índia e outros cantos por onde se disseminaram as doutrinas de Buda. Certamente nosso sábio em questão sabe que aquilo a que chegou é para poucos. Mas não gostaria ele que fosse para muitos? Estou certo de que gostaria, embora alguém em ataraxia não tenha desejos.

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Penso também em Kant9, suspirando sobre as edições recém-impressas de suas Críticas, constatando que “isto jamais será popular”. E como seria bom se ele estivesse errado! Se todos folheássemos a da Razão Pura, não haveria guerras de religião; se examinássemos a da Razão Prática, não imporíamos, como fazemos hoje até com violência, nossas máximas aos outros; e se ponderássemos sobre a da Faculdade de Julgamento, Faustão e Paulo Coelho ficariam sem público. Portanto, as coisas verdadeiramente exclusivas não se apresentam como tais. Eventualmente, quando podem ser comercializadas, são caríssimas (nem sempre), como determinados vinhos. Mas, ironicamente, o que o faz exclusivo se furta mesmo a quem tem acesso a uma garrafa, se a adquirir em função do valor pecuniário apresentado na etiqueta. E, convenhamos, será um desperdício de boa bebida, escorrendo goela abaixo de um pedante qualquer, com o sabor insosso de um preço.

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Creio que esse primeiro motivo não precise ser mais aprofundado, embora dê ainda para descobrir algumas coisas muito perturbadoras, se cavoucarmos um pouquinho mais. Mas, por enquanto, passo ao segundo motivo: é que a exclusividade, que se apresenta como apanágio dos ricos, na verdade é qualquer coisa de tristemente empobrecedor. A exclusão proposta (e não a inevitável, como no caso do vinho, da ataraxia e de Kant) tem esse pequeno inconveniente, que é o de pressupor um critério, ou um certo número de critérios, de exclusão. No caso, por exemplo, de um condomínio residencial, são, em geral, três ou mais: o custo, os dispositivos de segurança – um tipo de exclusão predominantemente física, mais visível e mais simbólica do que efetiva –, a distância para o centro da cidade. Já no caso de uma casa noturna para mauricinhos, o que se vê são brutamontes à porta, que, sem serem estilistas ou fotógrafos de moda, avaliam roupas, calçados, penteados, bolsas e maquiagem. Sua missão é clara e simples: barrar os inadequados e garantir que, do lado de dentro, haja somente a tal “gente bonita” – através de algum obscuro critério de beleza, que dificilmente dependerá dos traços do rosto ou das formas do corpo.

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Por que me parece que esses dispositivos são empobrecedores? À parte o fato de que enriquecedores certamente não são (ninguém fica mais rico, em nenhum sentido, por calçar a marca correta de sapatos), é porque eles tendem a reduzir àquele único critério toda a dimensão de virtualidade e potencial em que verdadeiramente consiste a vida. E isso, posso garantir, é empobrecedor. Todos que poderiam explorar, se tivessem a oportunidade ou a força de vontade de tomar consciência, aquilo em que suas disposições e inclinações inatas os tornam melhores, mais ricos e fecundos, vêem-se coagidos a canalizar a energia vital para um único sonho de entrar no clube exclusivo.

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Ao mesmo tempo, lá dentro, todas as relações, toda a tensão intersubjetiva, normalmente criadora e fascinante, está reduzida à obrigação de confirmar, constantemente, o pertencimento àquele enclave, àquele clube tão indistinto, formado a partir de um simulacro de distinção. Se existem macetes para galgar a rocha de algum sistema, seja um partido político ou uma rede social da internet, pode contar com que se transmutem imediatamente em regras, em um conjunto interminável delas: os famosos “do” e “don’t”, “in” e “out”, dicas, aplicativos, cursos… Resultado: de sujeito singular, enriquecido pelas tensões imponderáveis com a infinita multiplicidade de uma vida que poderíamos chamar autêntica, o pobre iludido pela idéia da exclusividade se vê reduzido a indivíduo acorrentado aos tais e tais gêneros a que pertence. Cruz credo, que miséria!

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Certamente não era nisso que pensava o Twitter quando se pôs a bajular seus usuários com uma história de grupo seleto (ou sei lá qual adjetivo). É natural, faz parte do modo de funcionamento daquilo que se convencionou chamar “nova economia”, mesmo sendo, cabe lembrar, uma estratégia que a precede de muito. Mas é evidente que o laboratório de Germain está muito atrasado em termos de retórica mercadológica. Em vez de oferecer remuneração, como antigamente, deveria vender a idéia de que é um privilégio oferecer o corpo às pesquisas médicas. Argumentos copiados da religião provavelmente seriam eficazes – e fica aí a dica.

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Melhor ainda, sem dúvida, seria convencer os consumidores de que é um privilégio, uma oportunidade tomar injeções e pílulas ainda pouco seguras10. Poderiam ser distribuídos convites, bem poucos no começo, depois mais, paulatinamente. Neguinho se estapearia por eles. O slogan teria de repetir que seus amigos vão invejá-lo, porque só você, isso mesmo, você teve o privilégio de experimentar essa insólita substância que não produziu, aleluia, efeitos colaterais em camundongos, porcos e chimpanzés. Faria um sucesso enorme e sairia muito mais barato. Só quem não ia gostar seria Germain, ainda endividado e sem acesso a um bom restaurante.

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1Minha opinião sobre elas é a seguinte, se alguém quiser saber: quanto mais atavios esses programas inventam, menos graça eles têm. Quando a gente começa a escorrer pela peneira de dispositivos que virou a internet, a primeira vítima é nosso engajamento nos serviços. A segunda é nossa “integridade digital”. Mas essa integridade não pode ser pulverizada demais, sob pena de faltar mesmo a substância que escorreria. Por isso, no meio do caminho, o dispositivo acaba sumindo, superado pela indistinção de seus próprios circuitos. Rapidamente tomam seu lugar outros dispositivos mais enxutos e o processo recomeça. Aconteceu com o ICQ, o Skype, o Orkut, o Altavista e tantos outros. Não vai demorar a acontecer, se continuarem nesse passo, com o Twitter e até, pode acreditar, com o Google.

2A saber, Very Important Person, um pleonasmo que engana otários ao redor do planeta, com um amor-próprio tão massacrado que se dispõe a abrir a carteira para qualquer oportunidade de ajuntar um oficioso “VI” ao seu “P” eterno e inalienável.

3Tento não pensar demais nessas pequenas cretinices deste início de século. Senão, correria o risco de acabar como misantropo e eremita.

4Des sous, en tradução mambembe.

5Dans la merde, em tradução literal.

6Ídolo maior entre ditadores alemães da primeira metade do século XX.

7Vou precisar que algum grande pensador, um novo Einstein, me explique qual é a diferença de verdade entre essas duas categorias. Afinal, o spammer nada mais faz do que aquilo que o publicitário gostaria de fazer, se as pesquisas de mercado não mostrassem que é pouco eficaz, ainda que baratíssimo.

8A noção de Mínimo Múltiplo Comum cai como uma luva aqui: carrega tanto a noção de mínimo, para descrever a sofisticação social da mercadoria; quanto a de comum, para explicitar sua dispersão fundamental pelos mercados; e, claro, a de múltiplo, que desmente qualquer ficção de exclusividade.

9Quem o conhece talvez tenha notado minha adaptação um tanto livre de sua estética do desinteresse…

10No século XXI, não há maneira melhor de enriquecer do que convencer os tolos de que são críticos ou jornalistas, publicar suas brilhantes reflexões gratuitamente e encher o alforje com as receitas publicitárias. Todos saem contentes e ainda tem um que sai rico.

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45 minutos de um início de século

Decido esticar um pouco mais o motor, abusar da energia que resta ao fim de uma jornada já intensa, aproveitar que os olhos e os neurônios ainda estão embalados para trabalhar até a pane no sistema nervoso. Um erro, nem preciso dizer: não bastasse a epopéia de encontrar uma porta aberta para deixar o edifício, é subúrbio, é noite, e em meio de semana há menos trens. Um quarto de hora na plataforma, à espera da composição, acompanhando o vapor que minha respiração lança no ar, dificilmente constitui um prazer. São nove horas.

Já a meio caminho ouço à distância – na verdade, não tão longe – o buzinaço. Cinco para as nove, provavelmente. Sigo meu caminho. De imediato, imagino que seja o trânsito na via expressa, agravado por um acidente, quem sabe. Mas essa interpretação é tola e logo se dissipa: não buzinas, buzinaço. Coisa muito diferente. Só pode ser futebol, percebo, corrigindo-me. Lembro de uma notícia lida pela manhã: é noite de jogo da França e os autóctones estão exasperados, temerosos de ficar fora da Copa. Está esclarecido o mistério, julgo, e me engano novamente. Prossegue a barulheira. Estremeço como Proust (com o perdão do paralelo) estremeceu ao sentir o pavimento irregular da rua e ser atirado em memórias de Veneza e Balbec. Quanto a mim, é como se estivesse diante de uma UERJ da vida. Em noite de gala.

Por um momento, me perco da realidade. Faltando dois para as nove, sou despertado por um berro agudo. Percebo que já subo a rampa da estação e uma motoca com dois molecotes vem descendo bem rápido e em ziguezague. O berro é da buzina, desagradável mas ridícula, descontado o risco de atropelamento. Salto de lado, desejando secretamente esticar a pasta para causar um acidente. Deve ser o mesmo desejo secreto da pequena senhora que, poucos passos atrás de mim, também dá um pulo e dirige à motoca um palavrão. Já vão longe os meninos, empunhando uma bandeira que, no escuro, não consigo divisar.

Uma tela azul informa que o próximo trem só chega às nove e quinze. Suspiros meus e de quem mais tenha visto a informação. Desço as escadas e conto, por falta do que fazer, os gatos-pingados que esperam sob a luz tíbia das lâmpadas parcas. São 21; mas sou mais um, não posso esquecer de contar a mim mesmo: somos 22. Segue o buzinaço. Os franceses, imagino, vão animados para o Stade de France . Nove e cinco.

Além do alambrado, escuto mais berros. Posso enxergar uma pequena multidão à distância e logo concluo que é mais gente a caminho do estádio. Surpreende-me, porém, o mantra entoado: nada de “Allez les bleus!”, mas algo diferente. Impossível decifrar, com a concorrência de um trem que passa vazio. Passa ao meu lado um menino, doze anos talvez, vestindo uma camiseta branca, com um escudo verde. Reconheço a bandeira da Argélia. Apuro o ouvido e consigo distinguir as palavras do canto: One, two, three! Vive l’Algérie! Uma rima bilíngüe, coisas da globalização, e de autoria de um povo que fala ainda um terceiro idioma. Nove e dez, o frio já trinca a minha mandíbula, o barulho dos torcedores embandeirados vai se aproximando. Seria então um França x Argélia? Seria no Stade de France? Nesse caso, que coragem demonstram os magrebinos. Vão atravessar a cidade torcendo contra o mandante! Ali no subúrbio, onde os conjuntos habitacionais escondem e contêm os tons de pele e as línguas menos estimados no país, eles estão seguros, diria mesmo que estão em casa. Mas no centro da capital, sabem os deuses o que pode suceder.

São nove e dez. O garoto uniformizado está mais uma vez por perto. Peço licença e pergunto com quem a Argélia vai jogar. Ele me encara como se eu viesse de cair da lua. Em poucas palavras, ele explica: já jogou, já ganhou, está na Copa e nós vamos comemorar em Saint Michel. Eu também me sinto como um alienígena. Parabenizo o rapaz e desejo sorte no Mundial. Meu inconsciente, enquanto isso, divide-se em duas ponderações. O menino fala um francês perfeito. Ele é francês. Certamente nasceu por aqui. Mas está identificado é com o país de seus ancestrais, como toda aquela multidão que vai se aproximando da estação, cada vez mais barulhenta.

Rumo a Saint Michel, a praça apinhada de turistas onde têm lugar todas as comemorações esportivas da cidade. Como quando os bleus ganharam da Nova Zelândia no rúgbi ou, hélas, do Brasil no futebol. Esta noite, outro país fará sua celebração de vitória, no coração da antiga capital imperial, diante da fonte onde o Arcanjo degola o dragão. Sabem os deuses, ainda, o que pode acontecer. Ponho-me a especular se não haveria um certo fundo político, de cunho étnico, histórico, sei lá eu, nessa manifestação esportiva. Pode ser. Mas certamente não para o menino afogueado e imberbe que se posta à minha frente. Tento parecer simpático e explico que não acompanho muito, na verdade quase nada, do futebol europeu ou, no caso, africano. Por outro lado, e a despeito de um amortecimento em mantas e cachecóis, também estou num espírito futebolístico. Meu time joga hoje, estou apreensivo, e ainda por cima o jogo cai no meio da madrugada, em função do fuso horário. O garoto não quer saber, está provavelmente incomodado por aquele sujeito – talvez até eu lhe apareça como um velho – que puxa assunto assim, sem mais, na plataforma do trem.

Ele não está para confraternizações. Não com brasileiros, ao menos. São nove e doze, o one-two-three já desce os degraus para tomar o trem que passa em três minutos. Mais uma vez, sinto como se fosse a estação Maracanã, aquela massa humana magnificada pelo próprio número, estapeando os painéis publicitários como se fossem tambores e provocando os poucos que permanecem alheios, fingindo ignorá-los. Nada no muito é mais importante do que o destino daquela equipe, é o que crêem os argelinos, como creram e seguirão crendo todos os torcedores em todos os tempos. Reis e generais não fazem a história, mas centroavantes e arqueiros. Acho curioso como eles falam em francês entre si, sem sotaque algum, afora as gírias do subúrbio. Estranha situação, penso. Estar ligado a uma terra pelo corpo e a outra pela alma. O imperialismo deixa suas chagas, não apenas nas colônias, mas na própria metrópole. Clemenceau dificilmente terá imaginado que um dia a juventude argelina tomaria de assalto a praça de Saint Michel. Pois é o que farão, esta noite, os netos e bisnetos de um povo que, naquele tempo, nada mais era do que carne para moer na luta contra o Kaiser.

Chega a composição às nove e quinze, numa surpreendente pontualidade. Os torcedores fazem também o trem de tambor. Pá Pá Pá! Os passageiros se assustam. O canto ainda é o mesmo: one-two-three, vive l’Algérie! Não sem um certo desprezo bairrista, concluo que o brasileiro é muito mais criativo, cheio de cantos diferentes, alguns brilhantes, outros dementes, incitando uma violência tão à toa quanto um jornal esportivo. Procuro um vagão com menos bandeiras e apitos, na esperança de viajar sentado. Qual. Sou obrigado a seguir em pé e o trem ainda vai lento, suponho que por causa dos torcedores, talvez se pendurando para fora ou qualquer coisa dessas que torcedores fazem, como sabemos. Na primeira parada, nove e vinte, entra uma moça de xador e bandeirola na mão. Ela agitará seu brinquedinho timidamente. Não deve ter o hábito do futebol.

Mais alguns minutos e estamos na estação central, onde vamos nos separar. Sigo ao norte, eles ao sul, rumo ao grande objetivo estratégico, a praça Saint Michel. Consigo descer mais rápido e avanço na direção das catracas e da esteira rolante. Nove e vinte e quatro, ouço à distância a aritmética anglo-saxã dos argelinos, felizes da vida. Mas já nada tenho com eles, ou pelo menos é o que creio.

Mais veloz que eu, chega à esteira rolante uma pequena companhia de policiais. São sete. Caminham bem à minha frente. Como de hábito, ponho-me a considerar sua aparência ameaçadora. Todos grandes, fortes como colheitadeiras, com suas jaquetas e calças negras, estofadas para aumentar a impressão de musculatura. Nada que lembre os tradicionais e simpáticos uniformes da política francesa. São todos muito brancos e nenhum parece interessado na vitória da Argélia. Cabeças raspadas debaixo das boinas também negras e um cinto de utilidades à la Batman, com pistola, lanterna e um mostruário de bugigangas que não sei identificar. Com seus coturnos de sola grossa, são todos muito altos, e cada passo ribomba pelo subterrâneo. Quem passa no sentido oposto espia discretamente, com uma certa perplexidade e um grande receio de encarar diretamente aqueles agentes da, como se diz, ordem. Alguns olhares também se dirigem para mim. Esses deixam entrever uma certa pena, como se imaginassem que estou sendo detido.

Aquelas figuras, com seus cassetetes, suas luvas, suas algemas, também me incomodam. Espero poder me afastar deles assim que termine a esteira. Mas, para minha grande decepção, eles tomam o mesmo túnel que eu, sobem os mesmos degraus. Esmagam a escada rolante como se a quisessem escangalhar. Nem imagino de onde vem esse ódio. Nove e vinte e oito, estamos todos, os policiais e eu, na mesma plataforma do metrô. O que querem aqui? Para onde vão? E por que sete, cáspite?

A resposta aparece espontaneamente às nove e meia em ponto. Do outro lado, uma vibração abafada parece vir do túnel. Ela cresce e se transforma num som conhecido: one-two-three, vive l’Algérie. Em poucos instantes, a plataforma oposta está inundada de jovens em verde e branco, empunhando as bandeiras com o crescente – uma delas enorme –, pulando como crianças e fazendo desta vez as máquinas de refrigerante de tambores, que denunciam a falta de ritmo. (Nisso os brasileiros também somos melhores.) Notável, me dizem meus botões, como as torcidas se parecem no mundo inteiro.

Ao mesmo tempo, minha visão periférica capta um movimento rápido. São os policiais, que afastam os viajantes sem grande gentileza e se perfilam diante dos trilhos, olhos petrificados e fixos na pequena multidão festiva. Espinhas retesadas, todos. Alguns cruzam os braços, outros apóiam os punhos na cintura. O que para mim era uma torcida, para eles é um bando de baderneiros, pelo visto. Mas os baderneiros não dão bola para a posição de ataque dos predadores, separados da enorme presa por uma vala eletrificada. A festa continua, a cantoria, a barulheira. O poder de dissuasão dos mamutes públicos é nula diante do contentamento magrebino.

É nove e trinta e três quando chega o metrô para os torcedores e demais passageiros na direção contrária à minha. Eles embarcam sem conceder um mínimo olhar às hostes da repressão e da ordem, aos sete bravos touros que não deixam de encará-los, mesmo quando as portas se fecham. Não há contato, não há comunicação. A disparidade das emoções e intenções é tão radical que encerra os dois grupos em universos isolados. Ainda bem, concluo. Provocações de parte a parte não poderiam terminar bem.

Restabelecido o silêncio na estação, penso que os policiais vão retomar sua conversa ali mesmo. Qual nada. Mal partiu o trem, nove e trinta e cinco, o mais velho e provavelmente mais graduado dá um tapa ligeiro no ombro de um outro e sentencia: “pronto, podemos ir”. Como se abrissem uma comporta, todos relaxam. Os rostos de pedra se tornam milagrosamente humanos. Contando piadas e trocando receitas, eles viram as costas e partem, de volta para casa ou para o quartel – ou ambos, por que não? Eles estavam ali com o fito único de se revelar em ameaça diante da multidão de argelinos. Nada mais. Exercida a pressão, missão cumprida. Todos os presentes vão se lembrar de que, afinal de contas, não estamos seguros coisa nenhuma.

Finalmente, tudo está tranqüilo. Sem tambores, sem rimas bilíngües, sem tropa de choque. Reflexivo e algo entristecido, tomo o metrô às nove e trinta e seis. Às nove e quarenta, estou caminhando para casa. Não me encontro mais no subúrbio, mas ainda muitos carros passam na avenida como bandeiras alviverdes, crescentes, buzinaços, one-two-three e Yallah, yallah. Esfomeado e morto de frio, aperto o passo, mas só tenho um pensamento: oxalá a polícia não invente de ir à praça Saint Michel.

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