arte, comunicação, conto, costumes, crônica, descoberta, ironia, Itália, literatura, livros, opinião, prosa, reflexão

O mochileiro e a biblioteca

Sorte que nem todos os meus amigos lêem isto aqui. Com isso, posso fazer fofocas sobre alguns conhecidos sem risco de ofendê-los. Naturalmente, eu sou alguém de muito boas intenções e não vou me meter a espalhar os podres de quem quer que seja. Se abro uma exceção hoje, é por uma boa causa. Há episódios na vida da gente que nos põem a matutar e, se achamos as considerações pertinentes, postá-las é obrigação. Não é o blog uma ferramenta de reflexões? Pois.

Lá vai o causo: recebo a visita de um amigo que, já um pouco passado da idade, cumpre o ritual do mochilão pela Europa. Aqui é verão e dá pra ver que ele esteve pelo Mediterrâneo. Está queimado, expansivo e com alguns quilos de sobra. Instala-se como um saco de batatas no meu frágil sofá. Com a desenvoltura de quem acabou de passar pela Itália, agarra a cerveja que lhe estendo. E se põe a falar de suas aventuras, as turísticas e as amorosas, como é de seu feitio.

De repente, sem motivo para mudar o assunto, o rapaz envereda pela história de alguém que conheceu em Turim. Um livreiro desses que, sentados sob as arcadas da capital piemontesa (ah, que belas e saudosas arcadas!), passam a tarde jogando papo fora, a não ser que venha lhes incomodar algum cliente em potencial. O tal velhinho, que foi como meu amigo se referiu a ele daí por diante, se gabava de estar próximo de completar seu nono milésimo volume lido. Surpresa do viajante: com que então aquele pacato ancião tinha lido 9000 livros em sua vida?

Pois o homem assegurou que sim e, na rispidez do macho latino, desafiou meu amigo a duvidar. Nada disso, nada de dúvida, foi a réplica. O que queria o brasileiro era aprender a fórmula, conhecer a mágica, ser iniciado nas artes da leitura ininterrupta. A julgar por seu ar iluminado, eu diria que o aprendizado tinha sido um sucesso. Curioso, pedi que ele me concedesse ao menos um vislumbre do que lhe transmitira o guru.

Sem problemas, foi a resposta. E ele apontou para minha estante de livros. Pediu que eu supusesse uma estante mais avantajada, com quatro largas prateleiras. E eis o segredo de ler tanto quanto o tal senhor italiano: no início de cada ano, as duas prateleiras superiores deveriam ser preenchidas com os volumes a serem lidos ao longo do ano. O número que ele sugeriu era mesmo impactante: 120, ou um livro para cada três dias, mais ou menos.

À medida em que se fossem “consumindo” essas unidades, elas deveriam ser transferidas para as duas prateleiras inferiores, de tal maneira que, no final de dezembro, todos os 120 livros tivessem sido deslocados. Ora, objetei, ninguém consegue manter um passo tão puxado! Pois bem, explicou-me o mochileiro, com o passar dos meses, o leitor percebe que o “progress bar” (o termo é dele e me fez cair brevemente na risada) não está avançando a contento. Com isso, ele acelera, intensifica seu ritmo de leitura, pula páginas, faz o que for. Mas cumpre a meta. Cumpre a meta. Cumpre a meta!

Em seguida a esse predicado repetido com perdigotos e olhos esbugalhados, o visitante se ergueu e arrematou: o mais belo de todo o segredo é que aqueles livros enfileirados na barraquinha de Turim eram os frutos da leitura do ano anterior. Porque, e eis o pulo do gato, ao final do ano, cumprida a meta, todos os 120 anos tinham de ser doados, vendidos, jogados fora, qualquer coisa. Nada de guardar livro velho! Nada de mofo, nada de traças, nada de exibicionismo bibliófilo!

Afastando-me com um empurrão de bêbado, o visionário amigo partiu para cima de minha humilde biblioteca. Postou-se diante das lombadas e se pôs a coçar o queixo. Apontou, o dedo mole de desprezo, para minhas prateleiras e perguntou o que, “disso aqui”, eu já tinha lido ou ainda não. Nessa hora, confesso que empaquei.

Gaguejando, suando frio, talvez tremendo um pouco, fui obrigado a admitir que não tinha certeza, não sabia muito bem, estava em dúvida, assim, vacilando. O rapaz ficou pasmo. Lançou-me um olhar de zombaria, incredulidade e superioridade que provavelmente nunca esquecerei. Que espécie de demente não sabe dizer quais dos livros de sua própria estante ele já leu ou deixou de ler?

Ligeiramente humilhado, fiz um esforço de concentração para lhe dar uma resposta. À distância, examinei eu mesmo os títulos todos e tentei me lembrar do que eles diziam. Pouco a pouco, comecei a me dar conta de algo bastante curioso. Pouquíssimos eram os volumes cujo conteúdo eu desconhecia por inteiro. Normalmente, esses vazios correspondiam a presentes recebidos com um sorriso amarelo e largados no meio dos outros volumes. Alguns, também poucos, eu nunca havia tocado. Mas não eram exatamente “não lidos” porque, embora suas páginas nem tivessem sido cortadas1, eu sabia do que se tratava e os guardava ali como referência em potencial. Na verdade, eu sabia que nunca leria de fato aqueles livros, mas essa não era mesmo sua função. Eles estavam ali para dialogar com minhas ideias e outras leituras, quando fosse o caso.

Depois, consegui separar mentalmente mais um grupo, de longe o maior. Eram os livros “parcialmente” lidos. Os que comecei a ler, mas parei. Os que me valeram um ou dois capítulos, e só. Os que foram abertos duas ou três vezes, quando precisei de uma referência ou uma precisão. Os que, resumindo, preencheram uma lacuna ou outra, dessas que parecem tão trágicas no esforço de entender alguma coisa.

Por último, o grupo que quase lhe apontei: aqueles livros que li de cabo a rabo, da primeira página à última, introdução, prefácio, índice, notas e aquela última folha que nos informa que “este volume foi impresso na gráfica tal e tal para a editora tal e tal no dia tanto”… Mas me interrompi a tempo de salvar o patrimônio. Se meu amigo soubesse que aqueles livros eram já lidos, ele tentaria me convencer a doá-los, vendê-los, jogá-los fora. Talvez até os atirasse pela janela!

Mas tive um estalo. Eu estaria mentindo, se lhe dissesse que aqueles livros eram “já lidos”, como dizemos de um tubo de pasta de dente que ele já foi usado, esgotado, consumido, terminado. Mesmo se chegamos ao fim, será que matamos um livro, como matamos um pacote de biscoitos? Quantas vezes já não tive de voltar a um livro para me certificar da declaração de um personagem ou do argumento de um filósofo! Não seria cruel da minha parte dizer que esse livro que consultei, que reli, que folheei, é já lido, exausto, inútil a ponto de merecer a lixeira ou, vá lá, uma volta ao ciclo do mercado?

Tive de inventar uma outra estratégia. Meu amigo estava impaciente e desconfio de que já questionava minha sanidade mental. Expandi os braços, abri um largo sorriso, talvez tenha até dado um pequeno salto. E exclamei: “estou lendo todos!” Ele perdeu um pouco o equilíbrio, como eu esperava. O fator surpresa estava do meu lado e eu tinha de aproveitá-lo. Continuei com a explicação. Os livros jamais abertos são uma leitura em potencial, mas que nem por ser potencial é menos verdadeira. Em seguida, há os que estou lendo parcialmente – nesses, resta uma parte também potencial. Aqueles cujas páginas atravessei por inteiro são livros plenamente em leitura, e não plenamente lidos.

Meu oponente não estava muito convencido. Talvez se eu tivesse cabelos brancos e vivesse debaixo de arcadas centenárias… Não sei. Tentei convencê-lo da ideia de que um livro presente é um livro vivo e a leitura é só um detalhe da nossa relação com ele. Fiz uma analogia estranha com as commodities e os produtos fast-food que consumimos e esgotamos, depois mandamos para aterros sanitários e quetais. Ele amarrou a cara, prestes a manifestar sua discordância. Eu estava perdendo terreno para o ancião de Turim.

Até que toquei na corda certa. Com um cálculo meio absurdo, dei um tapa no ombro do amigo e passei os dedos pelas lombadas: “Acho que já passei dos nove mil… cada vez que penso num desses livros, é como se o lesse de novo. Assim, cada um vale por (digamos) dez. E acho que tem mais de noventa aqui…” Isso dito, os olhos do mochileiro brilharam. Ele sorriu, deu-me um abraço apertado, esqueceu do famigerado livreiro e sugeriu um brinde.
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1 Desculpe o anacronismo. Há décadas não se cortam mais páginas de livro, mas a imagem é tão poética…

Padrão
arte, barbárie, descoberta, desespero, deus, economia, escândalo, estados unidos, ironia, modernidade, obituário, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, trabalho, transcendência

Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

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Litania para o capital

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Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

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  • Concedei-nos cobrir as perdas.

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Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

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  • Concedei-nos cobrir as perdas!
Padrão
costumes, crônica, deus, direita, economia, eleições, esquerda, estados unidos, guerra, história, imagens, imprensa, modernidade, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, religião

Blood, toil, tears and sweat

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Das outras vezes em que passei a noite em claro desde que vivo em Paris, foi para ver futebol. Ontem, abdiquei de acordar a tempo de ir ao curso de alemão para viver a História in the making. À distância, mas em tempo real, como só nossa era de conexões pode permitir. Olhos inchados, sobre a escrivaninha uma caneca de chá, trêmulo de frio e expectativa, passei horas no portal da CNN, a clicar sobre os mapas dos Estados americanos, vendo a subida dos números, acompanhando os comentários da torcida democrata em blogs e jornais, que, em poucas horas, passaram da apreensão esperançosa a uma torrente incontida de emoção, alívio e orgulho.

Eram quase seis horas da manhã na Europa quando começou o discurso da vitória de Barack Obama, no Grant Park de Chicago. Ohio e Virginia acabavam de revelar sua definitiva mudança de lado. A Flórida estava a caminho. Enquanto esperava a subida ao palanque do presidente eleito, a cobertura da BBC exibia cenas da celebração no Quênia, terra do pai e de muitos meio-irmãos de Barack. Uma multidão cantava e dançava, em meio a declarações de que aquela era uma vitória deles, também, um pouco. E quem haverá de dizer que não era? Comecei a imaginar a expressão de algum redneck do Mississippi que estivesse assistindo àquela cobertura; não sem uma certa alegria sádica, pensei que ele talvez sofresse um enfarte. Pena que só existisse na minha cabeça.

E começou o discurso. O 44o presidente dos Estados Unidos é um pequeno milagre, para não dizer que é um grande milagre. Seu domínio da oratória é raro. Cada movimento de sua cabeça e de suas mãos, cada pausa no meio das frases, cada piadinha que quebra a gravidade da retórica, cada olhar, tudo é tão bem estudado que parece natural. A facilidade de sua expressão é tamanha que faz crer que improvisa. Certa vez, debati com meu pai um discurso de campanha do então recém-escolhido candidato democrata. Ele dizia que não empolgava, eu discordei. Sem falsa modéstia, eu tinha razão. Obama não pode imprimir a suas palavras um tom inflamado, que o associaria mais a Jesse Jackson e a Malcolm X do que a Martin Luther King Jr., cujo famoso discurso do sonho é evocado por dez entre dez comentaristas desta eleição. De quebra, ainda reduziria a percepção de sua distância do belicismo caipira dos republicanos atuais.

Obama, ao falar, inculca no ouvinte os atributos que quer: sereno, culto, preparado, forte, capaz. Sua fala é tão bem controlada que até nos momentos em que deveria perder o controle, não perde. Foi assim quando se referiu a Michelle Obama, “the love (pausa) of my life“, e a sua avó, que faleceu no final da última semana. À parte os agradecimentos, devo dizer que fiquei muito impressionado com a força e a beleza do discurso. Digno de Lincoln, King, evidentemente, e Churchill, também em versão de texto, porque a pronúncia não é nada fácil (se não tiver paciência, pule direto para o último parágrafo, que é o ápice da beleza oratória). Melhor, creio, do que Kennedy. Em política, saber falar é tão importante quanto saber costurar acordos ou administrar a economia. Também nesse aspecto, Obama começa muito bem.

Nem preciso dizer que sou fascinado pela arte da Oratória. Talvez porque eu mesmo falo muito mal: tendo a embaralhar as palavras e perder a atenção do ouvinte. Que dirá de uma multidão… A vantagem de viver no estrangeiro, aliás, é que, com o sotaque, tudo se perdoa. Admiro, até invejo, quem consegue segurar o público só com a força de sua presença e de sua voz. Mais além, a palavra é um dos fenômenos que mais me fascinam. O poder de falar é determinante. É quase irresistível. Apaixona, como se vê pelos olhares vidrados da multidão que segue a voz clara de Obama, como investidores seguem sem pensar as ondas do mercado. A persuasão das belas palavras leva às lágrimas homens feitos, grisalhos, que em teoria viveram o suficiente para não se deixar emocionar e conduzir tão facilmente. Milhares de pessoas abrem mão de sua individualidade para repetir o mantra irresistível da campanha bem-sucedida: “Yes, we can!

A oratória é uma arte perigosa, sim. Basta lembrar de Carlos Lacerda, de Joseph Goebbels, e da seqüência magistral de Júlio César, peça de Shakespeare em que Brutus e Marco Antônio discursam sobre o cadáver ainda quente do líder, e basculam as emoções da multidão romana pela simples potência de suas frases fulminantes. O bardo, com sua visão aguda, não deixa dúvidas: o erro estratégico de Brutus foi deixar o adversário falar; e por último, ainda por cima. O texto dá a entender que a história do Império Romano seria outra sem essa falha.

Mas Obama, como eu já disse, é um milagre. No ponto em que está, já realizou grande parte do que tinha de fazer como símbolo. Imagem do homem negro que supera os obstáculos e consegue unir todas as etnias do país. Encarnação do esclarecimento que esmaga o perigo crescente do obscurantismo. Um bofetão no rosto da tradição racista dos Estados do Sul. Só pelo fato de ter sido eleito, Obama já abalou as estruturas nefastas da desigualdade, embora ela não vá deixar de existir, e forte, mesmo que ele seja reeleito e conduza um governo impecável nos próximos oito anos. Obama já chegou mais longe que o doutor King. E já chegou mais longe que Bobby Kennedy, branco como a neve, mas assassinado sem ter a chance de vencer as primárias democratas.

Porém, há que entender-se que o Barack Hussein Obama que conhecemos já é uma página da história. Acabou. Daqui por diante, teremos um outro Barack Hussein Obama. Um presidente não é um candidato. Não há um inimigo claro, uma chapa John McCain e Sarah Palin, que não representa absolutamente nada em termos governamentais e administrativos, mas encarna com perfeição a política do atraso, a manipulação de emoções patrióticas belicistas, a mentira de um misticismo chinfrim que se faz passar por religião, a estupidez agressiva travestida de honestidade simplória, que obteve dos eleitores do país mais rico do mundo a bagatela de cinqüenta e cinco milhões de votos. Eis o número de americanos que saíram de casa para escolher o absoluto vazio.

Isso já ficou para trás. Obama não é mais um antípoda dessa gente, ele agora é seu líder. Escolherá um ministério, enfrentará uma crise, tomará decisões difíceis. Negociará acordos comerciais com outros países, inclusive o Brasil, e será duro nas negociações, como espera seu eleitor. Será criticado por jornalistas e zombado por comediantes, como todos os presidentes de todos os países, salvo, no máximo, as piores ditaduras. Ele deixará de incorporar a esperança. Passará a representar um país. Sua oratória será fundamental nessa nova etapa de recessão e guerra, mas não será tudo. A grande, a verdadeira vitória que o novo presidente americano pode obter é outra:

Quando criança, eu vivia num subúrbio de Washington, D.C., e na minha turma da escola havia um único garotinho negro, de cujo nome já me esqueci (como, aliás, de todos os outros coleguinhas daquele tempo). Em várias aulas, a adorável professorinha, Ms. Flannery (engraçado, do nome dela, não esqueci!), se esforçava por nos fazer entender a importância da igualdade e o absurdo da discriminação racial. Certo dia, recebemos como dever de casa inventar uma história que envolvesse outros alunos da turma. Na que escrevi, todos os meus amigos eram abduzidos por alguma força inexplicável e se transformavam em pessoas más, muito cruéis. Eu seria o único a resistir e teria de salvar todos os demais. Um verdadeiro herói americano, digamos assim. Mas mudei o enredo. Achei, veja só, que estaria agindo como um racista se incluísse o colega negro na lista dos maus. No texto final, então, nós dois lutávamos lado a lado pelo triunfo do Bem. Ninguém jamais soube por que fiz a alteração. Meu colega ficou lisonjeado. Se fosse no Brasil, tenho certeza de que passariam a me olhar torto, com o tradicional “sei não”…

Contei esse episódio para chegar à vitória que Obama ainda precisa conquistar, nos quatro ou oito anos em que ocupará a Casa Branca. Ele terá triunfado se ações ingênuas como a minha se tornarem obsoletas. Se ninguém comentar uma decisão do presidente fazendo menção à sua cor. Se não pegarem mais leve, nem mais pesado, porque ele “é negro”. Se concordâncias e discordâncias passarem por cima do fato, como se fosse um detalhe. Ironicamente, o maior feito de Obama terá sido transformar sua grande diferença em qualquer coisa de corriqueiro.

É claro que não vai acontecer. Quinhentos anos de discriminação racial, escravidão, segregação, preconceito, não vão ser apagados por um ou dois mandatos. Mas já terá sido um ganho enorme se, no mundo inteiro, pessoas que sempre enxergaram a si próprias como inferiores por causa de sua pele puderem ter espaço para se impor como cidadãos plenos. Daqui por diante, todas as crianças, de todas as cores e etnias, do mundo inteiro, vão nascer e crescer com a imagem de um presidente americano que não é branco, não é W.A.S.P (OK, Kennedy era católico). Para essas crianças, a idéia de que o negro possa ser inferior ao branco não fará sentido. Eis a vitória que Obama terá de cavar enquanto estiver trabalhando no Salão Oval.

Estou convicto de que a madrugada fria que passei diante do computador e da televisão é algo que vou contar para meus netos. Valeu a pena.

PS: Sobre as eleições propriamente ditas, em português, recomendo os óbvios Biscoito Fino e Pedro Dória, além do excelente blog de Argemiro Ferreira. Para algumas frases bem escolhidas e traduzidas para nossa última flor do Lácio, recorram ao Animot. Para quem gosta de sarcasmo irrefreado, O Hermenauta.

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