Uma triste coincidência: conferi as notícias pela última vez esta manhã no aeroporto do Porto; ao desembarcar, tinha no celular a mensagem de uma amiga informando que José Saramago acabava de morrer. Não posso dizer que eu era um grande leitor do nobelizado luso, mas o último romance que li, nos interstícios de uma viagem mágica por nossa antiga metrópole, era dele: Todos os Nomes. E gostei muito, principalmente porque considerei que leva bastante mitigada a mania de enumeração que sufoca, por exemplo, o Memorial do Convento, esse que poderia ser um romance maravilhoso mas perece por falta de oxigênio.
Separei para postar aqui uma passagem desse livro, mas só esperava fazê-lo daqui a algumas semanas; hoje, eu queria compartilhar uma de Borges. Por motivos óbvios, mudei a prioridade. Todos os Nomes tem algumas passagens realmente memoráveis. Escolhi esta porque revela a capacidade que Saramago tinha de invadir de repente, no meio de um diálogo quase anódino, aparentemente uma mera crítica à burocracia de seu país, a alma de seus personagens (e, por tabela, a de seus leitores). Mais comentários são desnecessários, como sempre:
A mulher olhou-o como se o estudasse, depois perguntou, Há quanto tempo anda metido nesta investigação, Propriamente falando, comecei hoje, mas o conservador já vai ficar zangado quando lhe aparecer de mãos a abanar, é uma pessoa muito impaciente, Seria uma grande injustiça para com um funcionário que, pelos vistos, não se importa de trabalhar aos sábados, Não tinha nada de meu para fazer, era uma maneira de adiantar serviço, Pois não adiantou grande coisa, não senhor, Vou ter de pensar, Peça conselho ao seu chefe, para isso é chefe, Não o conhece, ele não admite que lhe façam perguntas, dá as ordens, e basta, E agora, Já disse, vou ter de pensar, Então pense, A senhora não sabe mesmo nada, para onde eles foram viver quando saíram de cá, a carta que recebeu devia trazer a direcção de quem a enviava, Devia ter, sim, mas essa carta já não existe, Não lhe respondeu, Não, Porquê, Entre matar e deixar morrer, preferi matar, falo em sentido figurado, claro, Estou num beco sem saída, Talvez não, Que quer dizer, Dê-me um papel e algo que escreva. Com as mãos a tremer, o Sr. José passou-lhe um lápis, Pode escrever mesmo aqui, nas costas do verbete, é uma cópia. A mulher pôs os óculos e escreveu rapidamente algumas palavras, Aí tem, mas olhe que não é nenhuma direcção deles, é só o nome da rua onde estava a escola que a minha afilhada frequentava quando se mudaram, talvez por aí consiga chegar aonde quer, se é que a escola ainda lá está. O espírito do Sr. José achou-se dividido entre a gratidão pessoal pelo favor e a contrariedade oficial por ele ter demorado tanto. Despachou a gratidão dizendo Obrigado, sem mais, e, embora num tom moderado, deixou que a contrariedade se manifestasse, Não posso compreender por que tardou tanto tempo a dar-me a direcção da escola, sabendo que qualquer informação, por insignificante que parecesse, seria de vital importância para mim, Não seja exagerado, Apesar de tudo, estou-lhe muito grato, e digo-o quer em meu nome pessoal quer em nome da Conservatória Geral do Registo Civil que represento, mas insisto em que me explique por que demorou tanto a dar-me esta direcção, A razão é muito simples, não tenho ninguém com quem falar. O Sr. José olhou a mulher, ela estava a olhá-lo a ele, não vale a pena gastar palavras a explicar a expressão que tinham nos olhos um e outro, só importa o que ele foi capaz de dizer ao cabo de um silêncio, Eu também não.