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A minha nova inscrição

Desde que me instalei de novo em São Paulo, estive duas ou três vezes no Cidão, minúsculo bar de Pinheiros onde, às quintas, eu costumava ouvir tocar João Macacão e seu grupo. Claro, também ia em outros dias e vivi ali bons momentos (maus também). Mas João, para meu desgosto, não toca mais lá. Em seu lugar, músicos que não conheço e não me cumprimentam à entrada. O lugar que eu adorava se tornou hostil. Assim mesmo, num estalo.

O tempo não passa, ele despenca das alturas. Continuar lendo

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O jugo dos verbos

Era uma vez uma reputada entidade de ensino, sediada na Cidade Maravilhosa, que formava profissionais para a bolsa de valores e semelhantes.
Era uma vez, coisa nenhuma: a entidade segue firme e forte, tem filiais em diversos Estados e se chama Ibmec, isto é, Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais.
Pois bem, uma dessas filiais ficava em São Paulo, não por acaso, sede das bolsas que sobraram (Bovespa e BM&F) e principal centro financeiro do país. Mas eis que, lá pelos idos de, não sei, 2007 ou 2008, a turma dessa filial começou a sentir que algo não ia bem. Continuar lendo

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Quem disse que sou VIP?

Quando surgiram essas listas do Twitter1, começou a aparecer na minha página, ops, na minha “Home”, uma breve mensagem que, graças a Deus, já sumiu. O mesmo aconteceu, mais recentemente, com a invenção desse tão chatinho “RT automático”. Dizia a mensagem que eu fazia parte de um grupo destacado para testar o serviço; e esse grupo vinha acompanhado de um adjetivo que minha memória relapsa não guardou: seleto, restrito, exclusivo, sei lá eu. Enfim, querendo me convencer de que sou alguma espécie de VIP2, o Twitter me convidou a experimentar o novo serviço, leia-se, me convidou a servir de cobaia para verificar se um balão-de-ensaio estava funcionando. Dois, aliás.

Eu teria até me esquecido de tudo isso3, se não tivesse sido convidado para almoçar outro dia com meu amigo Germain, aquela figura infinitamente culta, mas que se atira de peito aberto em qualquer idéia, proposta ou projeto que lhe pareça absurda a contento. Estranhei o restaurante escolhido e a oferta de pagar a conta inteira. O homem, afinal, vive do salário melancólico de revisor editorial. Desconfiado, achei melhor pedir um prato menos proibitivo, mas ele meteu o indicador diretamente sobre um salmão com trufas. Diante do pasmo irradiado em meu rosto, ele se riu, mas explicou:

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– Consegui pagar minhas dívidas, mas sobraram uns trocados4 e resolvi te convidar para almoçar. Em sinal de gratidão, porque você não me deixou cair em depressão quando eu estava na merda5.

– Imagine… Mas o dinheiro veio de onde?

– Você não vai acreditar. Recebi o panfleto de um laboratório que oferecia entre 30€ e 3000€ para testes de novas drogas. Adivinhe! Me inscrevi e ganhei o valor máximo, porque testei o remédio menos seguro…

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Tentei chamar sua atenção para o risco que ele tinha corrido, mas o sujeito deu de ombros simplesmente, explicando que teve tremores inabituais na primeira semana, mas que agora já estava bom. E riu. No mais, foi uma tarde em que comemos e bebemos maravilhosamente.

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Unindo as duas novidades, e não posso negar que a experiência de Germain me pareceu sobremaneira assustadora, concluí que havia aí um grande aprendizado retórico, para não dizer político e mercadológico. Já dizia Henry Ford6 que apelar para o racional das pessoas não está com nada, o negócio é atacar as emoções mais básicas, aquelas mesmas do Roberto Jefferson, lá onde somos mais frágeis e desprotegidos. Nessa, a tal “nova economia” está em enorme vantagem sobre a antiga. O mencionado laboratório teve de desembolsar 3000€ para fazer o pobre e endividado Germain de cobaia. O Twitter conseguiu o mesmo efeito sobre mim simplesmente massageando meu ego. Ponto para eles.

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Sei que estou sendo injusto com o célebre miniblog, grande onda do momento. Testar listas e retweets não vai me causar tremores. Vai consumir, no máximo, meu tempo, além de fornecer dados meus para maquiavélicos publicitários e spammers7 obscuros me espezinharem. Mas é que não deu nem tempo de sentir orgulho por fazer parte do tal grupo+adjetivo (alguém lembra o que era?). A verdade é que nem mesmo nesse mini-universo micro-comunicativo do Twitter posso me considerar VIP no sentido em que eles entendem. Entrei no jogo tarde; “sigo” poucos e sou “seguido” por menos ainda; só uso o brinquedo, praticamente, para divulgar linques de coisas que escrevo ou alheias que me agradem (a não ser quando há uma boa piada envolvendo 22 marmanjos atrás de uma bola), e ainda de vez em quando dou umas alfinetadas, como agora. Então, ‘gradecido, mas a que devo tamanha honra? Boa pergunta.

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Sem contar que a própria noção de “escolhido” ou “seleto” me causa, embora não tanto, espero, quanto as injeções de Germain, tremores terríveis. Por dois motivos.

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O primeiro é que tudo aquilo que é verdadeiramente exclusivo, paradoxalmente, gostaria de ser inclusivo. Não, atenção!, a ponto de alardear as próprias qualidades em cartazes e placares mundo afora: uma tal atitude publicitária existe somente para estabelecer uma fachada MMC8 para todas as coisas, enquanto objetos, de forma a esconder as coisas, em si, do mercado que por elas pagará, crendo que terá pago pelo que viu anunciado. Penso, por exemplo, num daqueles sábios do período helenístico, que tenha conseguido atingir a ataraxia, estado máximo da sabedoria para muita gente, sobretudo na Índia e outros cantos por onde se disseminaram as doutrinas de Buda. Certamente nosso sábio em questão sabe que aquilo a que chegou é para poucos. Mas não gostaria ele que fosse para muitos? Estou certo de que gostaria, embora alguém em ataraxia não tenha desejos.

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Penso também em Kant9, suspirando sobre as edições recém-impressas de suas Críticas, constatando que “isto jamais será popular”. E como seria bom se ele estivesse errado! Se todos folheássemos a da Razão Pura, não haveria guerras de religião; se examinássemos a da Razão Prática, não imporíamos, como fazemos hoje até com violência, nossas máximas aos outros; e se ponderássemos sobre a da Faculdade de Julgamento, Faustão e Paulo Coelho ficariam sem público. Portanto, as coisas verdadeiramente exclusivas não se apresentam como tais. Eventualmente, quando podem ser comercializadas, são caríssimas (nem sempre), como determinados vinhos. Mas, ironicamente, o que o faz exclusivo se furta mesmo a quem tem acesso a uma garrafa, se a adquirir em função do valor pecuniário apresentado na etiqueta. E, convenhamos, será um desperdício de boa bebida, escorrendo goela abaixo de um pedante qualquer, com o sabor insosso de um preço.

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Creio que esse primeiro motivo não precise ser mais aprofundado, embora dê ainda para descobrir algumas coisas muito perturbadoras, se cavoucarmos um pouquinho mais. Mas, por enquanto, passo ao segundo motivo: é que a exclusividade, que se apresenta como apanágio dos ricos, na verdade é qualquer coisa de tristemente empobrecedor. A exclusão proposta (e não a inevitável, como no caso do vinho, da ataraxia e de Kant) tem esse pequeno inconveniente, que é o de pressupor um critério, ou um certo número de critérios, de exclusão. No caso, por exemplo, de um condomínio residencial, são, em geral, três ou mais: o custo, os dispositivos de segurança – um tipo de exclusão predominantemente física, mais visível e mais simbólica do que efetiva –, a distância para o centro da cidade. Já no caso de uma casa noturna para mauricinhos, o que se vê são brutamontes à porta, que, sem serem estilistas ou fotógrafos de moda, avaliam roupas, calçados, penteados, bolsas e maquiagem. Sua missão é clara e simples: barrar os inadequados e garantir que, do lado de dentro, haja somente a tal “gente bonita” – através de algum obscuro critério de beleza, que dificilmente dependerá dos traços do rosto ou das formas do corpo.

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Por que me parece que esses dispositivos são empobrecedores? À parte o fato de que enriquecedores certamente não são (ninguém fica mais rico, em nenhum sentido, por calçar a marca correta de sapatos), é porque eles tendem a reduzir àquele único critério toda a dimensão de virtualidade e potencial em que verdadeiramente consiste a vida. E isso, posso garantir, é empobrecedor. Todos que poderiam explorar, se tivessem a oportunidade ou a força de vontade de tomar consciência, aquilo em que suas disposições e inclinações inatas os tornam melhores, mais ricos e fecundos, vêem-se coagidos a canalizar a energia vital para um único sonho de entrar no clube exclusivo.

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Ao mesmo tempo, lá dentro, todas as relações, toda a tensão intersubjetiva, normalmente criadora e fascinante, está reduzida à obrigação de confirmar, constantemente, o pertencimento àquele enclave, àquele clube tão indistinto, formado a partir de um simulacro de distinção. Se existem macetes para galgar a rocha de algum sistema, seja um partido político ou uma rede social da internet, pode contar com que se transmutem imediatamente em regras, em um conjunto interminável delas: os famosos “do” e “don’t”, “in” e “out”, dicas, aplicativos, cursos… Resultado: de sujeito singular, enriquecido pelas tensões imponderáveis com a infinita multiplicidade de uma vida que poderíamos chamar autêntica, o pobre iludido pela idéia da exclusividade se vê reduzido a indivíduo acorrentado aos tais e tais gêneros a que pertence. Cruz credo, que miséria!

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Certamente não era nisso que pensava o Twitter quando se pôs a bajular seus usuários com uma história de grupo seleto (ou sei lá qual adjetivo). É natural, faz parte do modo de funcionamento daquilo que se convencionou chamar “nova economia”, mesmo sendo, cabe lembrar, uma estratégia que a precede de muito. Mas é evidente que o laboratório de Germain está muito atrasado em termos de retórica mercadológica. Em vez de oferecer remuneração, como antigamente, deveria vender a idéia de que é um privilégio oferecer o corpo às pesquisas médicas. Argumentos copiados da religião provavelmente seriam eficazes – e fica aí a dica.

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Melhor ainda, sem dúvida, seria convencer os consumidores de que é um privilégio, uma oportunidade tomar injeções e pílulas ainda pouco seguras10. Poderiam ser distribuídos convites, bem poucos no começo, depois mais, paulatinamente. Neguinho se estapearia por eles. O slogan teria de repetir que seus amigos vão invejá-lo, porque só você, isso mesmo, você teve o privilégio de experimentar essa insólita substância que não produziu, aleluia, efeitos colaterais em camundongos, porcos e chimpanzés. Faria um sucesso enorme e sairia muito mais barato. Só quem não ia gostar seria Germain, ainda endividado e sem acesso a um bom restaurante.

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1Minha opinião sobre elas é a seguinte, se alguém quiser saber: quanto mais atavios esses programas inventam, menos graça eles têm. Quando a gente começa a escorrer pela peneira de dispositivos que virou a internet, a primeira vítima é nosso engajamento nos serviços. A segunda é nossa “integridade digital”. Mas essa integridade não pode ser pulverizada demais, sob pena de faltar mesmo a substância que escorreria. Por isso, no meio do caminho, o dispositivo acaba sumindo, superado pela indistinção de seus próprios circuitos. Rapidamente tomam seu lugar outros dispositivos mais enxutos e o processo recomeça. Aconteceu com o ICQ, o Skype, o Orkut, o Altavista e tantos outros. Não vai demorar a acontecer, se continuarem nesse passo, com o Twitter e até, pode acreditar, com o Google.

2A saber, Very Important Person, um pleonasmo que engana otários ao redor do planeta, com um amor-próprio tão massacrado que se dispõe a abrir a carteira para qualquer oportunidade de ajuntar um oficioso “VI” ao seu “P” eterno e inalienável.

3Tento não pensar demais nessas pequenas cretinices deste início de século. Senão, correria o risco de acabar como misantropo e eremita.

4Des sous, en tradução mambembe.

5Dans la merde, em tradução literal.

6Ídolo maior entre ditadores alemães da primeira metade do século XX.

7Vou precisar que algum grande pensador, um novo Einstein, me explique qual é a diferença de verdade entre essas duas categorias. Afinal, o spammer nada mais faz do que aquilo que o publicitário gostaria de fazer, se as pesquisas de mercado não mostrassem que é pouco eficaz, ainda que baratíssimo.

8A noção de Mínimo Múltiplo Comum cai como uma luva aqui: carrega tanto a noção de mínimo, para descrever a sofisticação social da mercadoria; quanto a de comum, para explicitar sua dispersão fundamental pelos mercados; e, claro, a de múltiplo, que desmente qualquer ficção de exclusividade.

9Quem o conhece talvez tenha notado minha adaptação um tanto livre de sua estética do desinteresse…

10No século XXI, não há maneira melhor de enriquecer do que convencer os tolos de que são críticos ou jornalistas, publicar suas brilhantes reflexões gratuitamente e encher o alforje com as receitas publicitárias. Todos saem contentes e ainda tem um que sai rico.

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Elogio à paciência e à sutil ironia

Foi na semana passada que entrei no blog do Catatau para comentar um texto recente, mas acabei não comentando. Fui atraído pela lista de comentários recentes, que terminava com o de um certo Pr. Thieme, num artigo publicado no longínquo, para não dizer antediluviano, mês de maio. Admirado da distância entre os argumentos originais e a contribuição listada na coluna lateral, resolvi visitar a página e acabei esquecendo da vida, sem contar o texto recente com que eu pretendia contribuir.

Fiquei pasmo ao ver a extensão da lista de comentários (para quem se interessar, ela está aqui), quase monopolizada pelo titular do blog e o Pr. Thieme. Mais ainda, deliciei-me com o desenrolar da conversa, muito embora ela manifeste algumas práticas retóricas que me enchem de apreensão quanto ao futuro. É que a irreconciliável diferença entre a lucidez argumentativa do blogueiro e o messianismo quase iletrado do comentarista produz algumas situações impagáveis, dignas de figurar em esquetes de um Monty Python da vida. (Por sinal, Eric Idle tem um vídeo no Youtube em que esfarela em derrisão alguns comentários virulentos que aparecem na lista do grupo. Merece uma visita.)

Começo com o que me preocupa. O Pr. Thieme se apresenta como um pastor evangélico defensor daquela tal psicóloga (por ter se formado na faculdade de psicologia, não por compreender a matéria, bem entendido) que prometeu “curar gays”. A defesa é baseada em uma série de testemunhos e passagens curtas da Bíblia, que, costurados de maneira aleatória e conveniente, fazem as vezes de exegese e fundamento teórico. Eventualmente, como na caixa de comentários de Catatau, esse tipo de técnica retórica esbarra em gente mais preparada. Solução? Vencer pelo cansaço, através de evasivas, repetições, argumentos ad hominem e assim por diante.

Mas vamos com calma. Vale analisar os sintomas um por um, para traçar o quadro daquilo que considero tão perturbador.

De fato, Pr. Thieme escreve com a retórica de quem foi treinado para seduzir platéias. Recorre reiteradamente a exemplos de grande apelo emocional e fácil compreensão. Intercala esses exemplos com sentenças identificativas, do tipo “A é B”, de imediata absorção, como postulado, pelo auditor (ou leitor) desatento ou despreocupado. Resultado: sem precisar expressá-lo distintamente, ele cria a falsa impressão de um silogismo. Mas, já que a conexão lógica não está explícita, a falácia passa batida e se instala no inconsciente do receptor como uma grande verdade.

Por exemplo:

Apelo emocional: “Nem a medicina resolve. Os três médicos que acharam que o Bozo estava morto converteram-se a Cristo (os três).

Postulado: “É a vantagem de ter o Poder de Deus para te iluminar sobre o problema a enfrentar e não depender somente de seus conhecimentos humanistas.

Silogismo disfarçado: Práticas de origem científica (no caso, medicina e psicologia) têm a obrigação de romper com seus fundamentos teóricos se for do interesse maior de determinada afiliação religiosa.

Observe que o truque aí acima só pode ter efeito por se aproveitar de outro silogismo escondido, que pressupõe que toda afiliação religiosa interpreta perfeitamente os textos sagrados. Isso parece contraditório, uma vez que, como todos sabemos, diferentes grupos religiosos interpretam as mesmas escrituras diferentemente. Sem contar, claro, o fato de que determinados grupos aceitam ou rejeitam tais ou tais escrituras como válidas ou não. Mas é menos contraditório do que parece. Trata-se de uma adaptação relapsa, talvez voluntariamente, dos princípios de sola fides (só a fé) e sola scriptura (só as escrituras) de Lutero.

Não sei se o pastor em questão é luterano (duvido muitíssimo), mas pouco importa. O fato é que Lutero pregava a salvação pela graça e a orientação pelo recolhimento diário para leitura e exegese dos textos sagrados cristãos, no âmbito individual e, por extensão, comunitário. Salientar o comunitário como extensão do individual é de fundamental importância para não cair no erro de determinados argumentadores, sobretudo evangélicos, como o Pr. Thieme. Dentro de uma comunidade bem delimitada, a aceitação (leia-se fé) de algumas interpretações básicas das escrituras funciona como conjunto de postulados para promover a vida religiosa comunitária, calcada sobre um desenvolvimento conjunto, no interior daquela coletividade específica e delimitada, de uma compreensão global dos textos sagrados. Não é à toa que grande parte da teologia e do pensamento político alemães partem da noção de comunidade.

O que tenta fazer o intérprete leviano do sola scriptura e do sola fides é incinerar o conceito de comunidade. Mas, como algum tipo de formulação coletiva é necessária num universo não-autista como o nosso, o que acaba acontecendo é algo profundamente perigoso: a comunidade é engolida pelo conceito de indivíduo. Isso permite a qualquer fiel isolar um versículo, aplicá-lo a algo em que tem convicção, e alardear suas próprias conjecturas como sendo a palavra de Deus.

A armadilha não poderia ser mais clara. O raciocínio por trás dessa atitude considera como verdadeira a seguinte conseqüencial: se os textos sagrados manifestam a palavra de Deus, então tudo que pode ser tirado de um texto sagrado manifesta a palavra de Deus. É um evidente caso de premissa omitida. Mesmo admitindo que toda escritura manifesta a palavra de Deus, quem “tira” interpretações desses textos não é Deus. São homens, mesmo que eles se creiam inspirados pelo Espírito Santo.

O que, a princípio, poderia vir salvar essa leitura solipsista das escrituras é o sola fides. Ora, lembremos que o sola fides é um rumo para a salvação, quase um atestado de “adesão” ao sola gratia, considerado em geral o princípio fundamental do luteranismo e retomado pela maior parte das denominações protestantes. Portanto, ele não pode ser usado como princípio que valide argumentos de cunho social, isto é, coletivo. O motivo é muito simples: não há mecanismo individual nenhum para assegurar o fiel de que sua fé está bem encaminhada; a própria Bíblia possui mais de um trecho destinado a alertar o fiel para a projeção em Deus de suas próprias convicções. O melhor exemplo de todos é provavelmente o mesmo trecho da carta de S. Paulo aos Coríntios que Catatau invoca para espezinhar o Pr. Thieme, e que inspira o título deste meu elogio (voltarei a isso mais adiante).

Retomando o fio do raciocínio, temos uma situação em que a interação entre o indivíduo e a comunidade está rompida, tornando os princípios de sola fides, sola gratia e sola scriptura o oposto daquilo a que estavam destinados. Suplantada pela retórica e pelo marketing espetaculoso (acho que aqui um exemplo é desnecessário), a religiosidade vira instrumento de manipulação política (e social, econômica, …). Observe que esse resultado seria suficiente para fazer queimar no inferno as almas mesmas que invocam Deus (ou deuses, se for o caso) para manobrar decisões políticas e sociais.

Afinal de contas, e eis a mais temível conseqüência da armadilha já mencionada, quando alguém projeta em Deus suas próprias idéias, como descrito nos últimos parágrafos, ele está, sabendo ou sem saber, tomando a si mesmo por Deus. Repito: a subversão dos princípios de sola fides, sola gratia e sola scriptura leva o fiel, ou aquele que se considera fiel, a se tomar por Deus. O termo técnico, se ainda for necessário, é blasfêmia.

É claro que esse tomar-se por Deus é um processo inconsciente e involuntário. Mas ele não acontece à toa: é resultado da perda da noção de comunidade, aquela em cujo seio a fé e as escrituras, compartilhadas pela leitura e a interação (lembremo-nos que, para Lutero, todo fiel é um sacerdote), aproximava a coletividade de Deus. No lugar da comunidade eclesiástica, o que temos hoje é o messianismo, o marketing e o espetáculo. No lugar da interação, temos grupos cada vez mais restritos, voltados não a uma busca de iluminação pela investigação das escrituras (sola scriptura), mas uma busca da catarse pelo contato físico com o livro sagrado (já viu aquelas pessoas andando por aí com a Bíblia na mão? Vê se elas refletem comunitariamente sobre aquilo…). No lugar da fé desenvolvida pela intersubjetividade comunitária, temos a auto-afirmação através de um combate profundamente político e longe de espiritual.

Como foi acontecer algo assim? Escolho, como explicação, usar dois autores que vão deixar muita gente ignara com os cabelos em pé. Isso mesmo: Nietzsche (cruz credo!) e Marx (te esconjuro!). O primeiro é autor da famosa sentença: “Deus está morto”, que todo mundo conhece e muita gente entende como uma provocação aos fiéis. Mas quem a lê assim o faz porque prefere não espiar o resto da passagem do louco com a lanterna: “Fomos nós que o matamos”, ele diz.

A interpretação mais imediata dessas duas frases é a preferida de quem se aproveita da religiosidade em proveito próprio. Ela consiste em crer que, no lugar desse Deus que considera morto, o homem coloca a si próprio. Afinal, parece difícil imaginar que o homem possa não colocar nada no lugar de princípio absoluto, para se orientar neste mundo de contingência em que tudo é fugidio. Como organizar uma interpretação da realidade sem pontos de apoio? Resultado: o homem se colocaria na condição de parâmetro para essa interpretação, tomando-se por absoluto e, por que não extrapolar, tomando-se por Deus. Quem nunca ouviu essa análise?

Ela não é tão errada quanto parece, na verdade. Mas ela se interrompe onde lhe interessa, sem chegar ao ponto verdadeiramente problemático da questão. Um tal “assassinato de Deus” não poderia ir adiante sem a corrosão do espírito comunitário que sustentava, para Lutero, os três “solae” e, para S. Paulo, a ecclesia (igreja; veja essa explicação em mais detalhe nos comentários do blog do Catatau). Trata-se, portanto, de uma decorrência da modernidade, tanto quanto as ferrovias, a metralhadora, a Coca-Cola e o Edir Macedo. De súbito, a estrutura onto-teológica que sustentava a espiritualidade ruiu, primeiro na Europa cristã, depois no mundo todo – e as perturbações do mundo islâmico que perduram até hoje são outra faceta do mesmíssimo fenômeno.

Mas o tema deste texto não é o Islã, e sim o discurso pseudo-religioso que toma suas próprias máximas como sendo palavra de Deus. E aqui é que vou recorrer a Marx (tire as crianças da sala). O barbudo alemão comedor de criancinhas abre seu 18 de Brumário de Luiz Napoleão com uma de suas passagens mais brilhantes. Diz ele, citando Hegel, que a história acontece duas vezes, “a primeira como tragédia; a segunda como farsa”. Mas o mais interessante é o que vem logo em seguida e merece uma citação integral (tirada do site marxists.org):

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.

Proust, que não sei se leu Marx, escreveu um romance de umas boas 4000 páginas (uma tal Busca do Tempo Perdido) em que demonstra, por exemplo, como a burguesia fin-de-siècle se comportava como imitação farsesca da aristocracia dos séculos passados. Pois é o mesmo que acontece hoje, com aqueles que se pretendem os ressuscitadores do Deus cujo necrológio Nietzsche escreveu no século XIX.

Como vimos, o que essas pessoas promovem não é ressurreição de nenhuma sorte. Ao contrário, aproveitando-se da morte (autêntica ou não, pouco importa) de Deus, eles embalsamam o cadáver exposto por Nietzsche, como os soviéticos embalsamaram Lênin na Praça Vermelha, e falam através dele, como os soviéticos falavam através dos despojos do pai da Revolução, incapaz de se defender. O resultado é o que vemos: uma imitação, como farsa, da religiosidade histórica, baseada ela sim em um verdadeiro sistema exegético. E essa imitação se manifesta nessas lamentáveis lideranças, auto-intituladas religiosas, que se aproveitam da necessidade natural humana de alívio espiritual, apenas para adquirir peso num jogo político que tomou dimensões inimagináveis em épocas anteriores à “morte de Deus” que Nietzsche apontou, com sua habitual argúcia e verve.

Mas peço desculpas por essa longa digressão que foge absurdamente do título. É que eu queria demonstrar como o individualismo que gente como o Pr. Thieme denuncia nos “humanistas” e “relativistas” (ver seus comentários no blog do Catatau) está na origem da própria religiosidade ersatz que sustenta tantas denominações que aparecem muito mais no noticiário político do que em verdadeiros estudos teológicos. Pois é isso que, no começo do texto, eu considerava perturbador e perigoso. Utilizar-se de um subterfúgio religioso para fazer política não pode ter boas conseqüências. Logo me vem à cabeça gente como Savonarola e Torquemada. Fé cega e poder estatal são uma mistura explosiva, porque a certeza absoluta de encarnar o Bem (com letra maiúscula, e não nos esqueçamos que estamos falando de gente que confunde seus próprios instintos com a palavra de Deus) surrupia à ação qualquer possibilidade de limites. Assustador, sim, por esse motivo.

Agora, finalmente, chego ao elogio à paciência e à fina ironia. Nos comentários do blog do Catatau, o Pr. Thieme tenta, de toda forma, exaurir o gosto argumentativo do blogueiro. Se fosse comigo, ele conseguiria, porque eu não consigo exercitar essa divina virtude que é a paciência. Enquanto o comentarista insiste em repetir o mesmo discurso sentimental e confuso, que certamente passa por muito sábio para quem está predisposto a segui-lo se necessário até o inferno, o blogueiro perde horas de sua vida para responder. Privado do “chega, cansei” com que ele espera a vitória por pontos, o que resta ao comentarista? Expor-se ao ridículo e cansar não mais o blogueiro, mas o leitor.

E eu pergunto: como Catatau consegue ter tanta paciência? Acho que a resposta está na fina ironia. Apesar da enorme empulhação que deve ser ficar dando respostas, durante meses, à tortuosa linha argumentativa de seu oponente, imagino que deve ser muito divertido levá-lo a tornar suas próprias frases uma grande piada. Catatau chega ao ponto de, na maior cara-de-pau, chamar o sujeito de idiota, e ter como réplica apenas a queixa molenga de que a palavra é grega.

Se eu for pedir algo a Deus (e digo isso sem nenhuma intenção provocativa), será uma infinita paciência como a do Catatau, temperada com a mesma sabedoria de usar da ironia sem dar a perceber a ofensa numa primeira e ligeira leitura. Acontece que, sempre que sou irônico, e isso acontece com freqüência, a hostilidade fica logo patente. Não consigo disfarçar. Ao contrário, com sua proverbial fineza, Catatau é muito mais eficiente, como demonstra deu desmonte dos delírios do comentarista em seu blog. Simplesmente brilhante.

Como eu já disse, vale a leitura.

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Um jardineiro ao fim do dia

Sol De Estocolmo
Pensei que pudesse agarrar os ponteiros do relógio, mas chegou a hora de se despedir da cidade que passei a última semana a explorar. Não sabia que expectativa deveria ter, mas agora estou certo de que amanhã decolo com Estocolmo no coração. É triste descobrir um lugar apaixonante e ter de voltar ao tédio, aquele que existe em qualquer dia-a-dia, irritante e quase agradável de tão pessoal. Mas esse é o destino de todo espírito nômade. As novas paixões pertencem sempre ao campo das exceções, isto é, ao menos quando são paixões verdadeiras.

Numa situação dessas, a questão foge às categorias todas que deveriam reger a fruição de uma viagem. Qual é a melhor maneira de dar o adeus a uma cidade que me tocou, para que ela fique segura de que não será esquecida? Para Nicole, parece ter sido mais fácil escolher: no principal teatro da cidade, três peças seguidas de Strindberg, seu dramaturgo preferido e um dos maiores nomes da literatura sueca. Mas quatro horas e meia numa língua desconhecida são demais para minha coragem limitada, e dois ingressos custam o dobro de um. Enquanto ela se ajeita na poltrona, dedico o final da tarde a arrastar os pés pelas calçadas.

Deixo em casa o mapa. Não sei por onde vou mas, fora a expectativa de partir, está tudo bem. Era essa a idéia. Acabo por me achar de frente para a água, coisa bastante provável numa cidade construída em cima de um arquipélago. Se é o destino, obedeço. Sigo pelo passeio, escutando as marolas que dão com violência contra o cais. Ao longe, avisto o Chapman, um velho navio que virou albergue e está ancorado há décadas numa ilha chamada Skoppsholmen (conferi a ortografia no mapa). A bebida, ali, tem preço razoável, e há um terraço com vista para Gamla Stan, a cidade antiga, de frente para o palácio real (onde vive Sílvia, a rainha brasileira). Uma delícia de terraço, uma vista fantástica. Melhor idéia, impossível.

Atravesso a ponte devagar, atinjo o terraço, peço uma taça de vinho e escolho uma mesa. São oito e meia, o sol vai baixando. Acompanho sua evolução oblíqua, quase tangente ao horizonte. Tento perceber cada detalhe da coloração que muda pouco a pouco, imitando Monet diante da catedral de Rouen. Mas não sou Monet, sou Diego, e minha atenção prefere se concentrar sobre um jardineiro de boné azul, homem velho, rugas e costas curvas, a trabalhar sobre um canteiro de tulipas à beira do cais. A julgar pelo horário, não é empregado do governo. Está ali por conta própria, cavoucando a terra em movimentos lentos, mas cuidadosos, só pelo prazer de estar perto da primavera encarnada.

A esse ponto, o sol ainda forte acima dos telhados, lançando sua faixa de tilintares sobre a água, parece que existe alguma identificação sobrenatural entre mim e o jardineiro. Mesmo se ele não toma conhecimento de minha existência. Vejo com tanta nitidez a concentração de seu olhar, que é como se pensássemos juntos. Mas a natureza pensa diferente. O sol continua descendo e leva consigo a luz, os contrastes, a profundidade. O lusco-fusco expõe as limitações de minhas lentes de contato. De dia, chego a crer que enxergo como na infância.

Vem a noite, vai-se a ilusão. Os contornos se desfazem. Busco o jardineiro e só o que capto é uma silhueta quase duplicada. Aquela identidade sobre-humana entre nós, vinte minutos de pôr-do-sol bastaram para quebrá-la. Não estão mais ali o rosto, o olhar, a concentração que observei. Parece que foi embora uma pessoa, para a chegada de outra. Sei que é o mesmo homem, reconheço-o assim, mas de que me vale tudo isso, se o que sinto é coisa bem diferente?

Me atinge com desconforto a idéia de que tudo que conheço, reconheço e mesmo estimo pode ser vítima da mesma mudança de luz que me privou do vínculo com o jardineiro. Quanto mais familiar sou de algo ou alguém, mais me vejo no direito de interpretá-lo e mais estou enganado, porque conhecer melhor uma pessoa é multiplicar os sóis com que a vemos. Na intimidade, infinitas são as alvoradas e os crepúsculos. Penso no meu círculo: família, colegas, amigos, os que beberam comigo e os que foram além, me confiaram segredos e choraram mágoas no meu ombro. Quem vai saber o quanto é viciada e torta minha percepção de cada um! Mas tampouco existe garantia de que a noção que eles têm de si próprios seja melhor. Nem a que tenho de mim, por sinal.

Enquanto isso, Estocolmo continua diante dos meus olhos, mas anoitecida, com a luz das janelas projetada sobre as águas, como era antes a do sol. Tenho daqui a melhor das impressões e é esta que levarei de volta. Não como um conhecimento perfeito da cidade, mas como um quadro, um sentimento, diria mesmo um poema sobre a capital que não pode ser assim tão deliciosa, não é possível. A realidade, o insuportável quotidiano, não terei a oportunidade de provar para quebrar o encanto.

Isso é o que ficará, como uma utopia, como um certo sebastianismo, a idéia da cidade que alia beleza, civilização e prazer. O que terei diante dos olhos no próximo lusco-fusco é a imagem bem digerida de Paris. Dela, conheço bem o sorriso, a cólera, as rugas todas. E as expressões que faz quando quer seduzir ou rejeitar, como a diva que é. Da mesma maneira como conheço tudo o mais que me pareça próximo e íntimo. Da mesma maneira.

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abril

A grande transformação*

Gente Sentada No Parque
Novamente sobre o Primeiro de Abril, quando saí de casa em busca de uma mentira e não encontrei. Como já expliquei no último texto, aliás. Por outro lado, e para meu grande espanto, o que encontrei foi uma nova cidade. Absorto na minha busca infrutífera, ganhei a rua, mas antes mesmo de atingir a esquina, já me sentia deslocado. Esta não é a mesma Paris de ontem, isto é, 30 de março; estes não são os mesmos parisienses. Terei atravessado um portal místico ao empurrar as cinco toneladas da porta do edifício? Terei sido transportado para outra realidade, outro país? Meu humor anda assim tão bom, que vejo tudo de outra forma?

Rumo ao pequeno parque escondido nos fundos do bairro, percorro as ruas do quotidiano como se explorasse as veredas de Atlântida. Mesmo os mendigos, encalacrados pelos últimos meses nas soleiras e nas escadarias do metrô, têm o ar de quem toma sol. Sentados em banquinhos de três pés, pedem seus trocados com gentileza, numa subversão tão perturbadora do desespero do inverno, que chega a parecer artifício. Um motorista com vocação para Nakajima quase atropela um motociclista, mas nem por isso um xinga o outro. Ao contrário, produz-se ali a Segunda Revolução Francesa: um pede desculpas ao outro e segue sua vida.

Quanto às moças, as célebres patricinhas francesas, elas trocaram seus cachecóis felpudos e brilhantes por coques estilizados. Chego a perder um minuto observando uma dessas estruturas de melenas: parece projetado por Calder, tamanha a delicadeza do equilíbrio, sob a ameaça da primeira brisa. É abril. Adeus botas de saltos mais altos que os canos, olá saias curtas e sandálias.

Descrito assim, pode parecer caso de dia ensolarado, mais quente do que os anteriores, irreversível final do inverno. Ledo engano. Primeiro de abril não foi mais quente do que 30 de março. Talvez a média tenha ficado até um ou dois graus mais baixa. Sol, houve. Menos do que no dia anterior, mais do que no seguinte. O horário de verão já vige desde o dia 21. Oficialmente, já temos quase duas semanas de primavera. Lanço a pergunta: que raios, afinal, mudou tanto de segunda para terça-feira?

Resposta singela, mas verdadeira: o mês. Nada mais. Não há ato psicológico mais forte que arrancar uma página de calendário. Abril é quando se fica mais alegre e se vestem roupas mais leves, certo? Pois bem: alcançamos abril, então é hora de inverter o guarda-roupa. Se eu disser que o francês deixa a condução de sua vida, em muito vasta medida, a cargo de datas, horas e outras funções matemáticas, vai certamente parecer exagero. Mas afirmo que, se for, é por muito pouco. A metamorfose está aí que não me deixa mentir. A mudança do vestuário não aconteceu gradualmente, tampouco a do humor. Foi, literalmente, de um dia para o outro.

É a regra. O mesmo acontece, por exemplo, no início do inverno. Os imóveis que têm aquecimento central automático o ativam, todos, quase sem exceção, em 15 de outubro. Eis o dia em que se começa a sentir frio. E, de fato, é o dia em que os casacos aparecem. Pouco importa que esteja muito mais quente que no dia 14. O dia 14 não é o dia em que se começa a sentir frio. É o dia 15, esse sim. Eis o dia, repito. Ponto final.

Cheguei a desenvolver uma teoria sobre o Primeiro de Abril. Assim como é a data em que as roupas se tornam leves (sob o risco de tiritar, não nos esqueçamos), é também o momento de começar a demonstrar alguma alegria, de vez em quando. Os sorrisos guardados no fundo do armário podem sair, empoeirados e cobertos de um ligeiro bolor. Daí a idéia de instituir a data de zombaria sobre os outros, de ser maldoso, mentir, pregar peças. É mais um pretexto para dar risadas; afinal de contas, os europeus precisam de fortes incentivos para gargalhar e, quando o fazem, normalmente exageram. Ainda hei de publicar uma tese a respeito.

Quanto ao que há de extraordinário e acintosamente belo na primavera de Paris, especificamente em abril, prefiro me ater ao texto do ano passado e à música que, naquele momento, embalou meus dias.

Na semana que vem, os plátanos prometidos!

* Título plagiado da obra magistral de Karl Polanyi.

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Brasil, descoberta, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Um repórter, finalmente!

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Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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