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Matei minha mãe, o filme

http://www.youtube.com/watch?v=tDa0CkKjfsk

Por recomendação de uma amiga, mas sem nenhuma expectativa, fui ver o recém-lançado J’ai tué ma mère (Matei minha mãe), filme canadense que ganhou três prêmios na Quinzena dos Diretores de Cannes em maio último. Resumindo muito, é a história de um rapaz de 17 anos que não se dá nada bem com a mãe e faz de tudo para “se libertar”. Tudo muito bem contado e filmado (volto a isso mais adiante), mas o que me deixou pasmo foi descobrir que o ator principal é também o roteirista e o diretor. Mais pasmo ainda fiquei ao saber que o rapaz, que atende pelo nome de Xavier Dolan, nasceu em 1989. Ou seja, ele tinha acabado de completar 19 anos quando deu por encerrada a montagem. O roteiro foi escrito aos 16.

Conheço uma boa meia-dúzia de jovens atores-roteiristas-cineastas, pequenos gênios todos eles e bastante competentes. Mas esse tal Dolan, pode anotar, tem tudo para ser um dos grandes de sua geração. Sem contar a atuação – algumas cenas são antológicas, mas afinal o rapaz foi ator mirim –; são dois os fatores que me levam a essa afirmação. Primeiro, a maturidade de um roteiro que expõe a aporia da vida familiar, que, após os 68 da vida, não dispõe mais de manuais e guias determinados. Depois, o diretor estreante revela uma compreensão rara do poder de uma câmera, da criação de significados através da imagem, da exploração expressiva do corpo humano: mãos, rosto, olhos, lábios.

Começo pelo enredo. O próprio Dolan admitiu que a história é profundamente autobiográfica, o que poderia facilmente ter resultado num filme tolo e unívoco. Não é o que acontece, embora a virulência de algumas discussões pareça exagerada debaixo de camadas e camadas de humor e nonsense. É notável a lucidez com que o menino transpõe para a tela o conflito de gerações tal como ele se manifesta neste início de século, despido de toda a dimensão política e moral das décadas anteriores. Nem a mãe que o protagonista (Hubert) odeia é uma mãe de antigamente, quando os pais eram fonte e garantia do comportamento de seus filhos, nem o adolescente é um contestador, um revolucionário, um alternativo. Com isso, ambos estão certos e errados em suas posições, porque não se pode mais exigir a solidez de uma mãe, nem a obediência de um filho, quanto mais adolescente. Esse impasse faz a graça da fita e, sem levá-lo em conta, é impossível apreciar o desenrolar do enredo. Ele acaba parecendo uma sucessão nervosinha de brigas tolas.

Na verdade, ele a odeia, ou pensa que odeia, porque a considera cafona, pouco inteligente e incompetente como mãe. E tem razão: ela se veste mal, gosta de programas questionáveis na televisão e tenta controlar o filho por meio de uma chantagem emocional ineficaz e ridícula. Mas a mediocridade de um indivíduo não lhe tira o direito a ser pai ou mãe e, no fundo, o adolescente sabe disso. Como conseqüência, ele é empurrado a explosões de raiva anódinas, das quais se arrepende mais tarde. Grande parte da graça do filme – é uma comédia, não sei se cheguei a mencionar – está nas idas e vindas tanto do filho quanto da mãe, perdidos na aporia de uma família que não funciona mais segundo regras milenares e rigorosas. O mistério é: como alguém de 19 anos consegue ler com tanta clareza as contradições de seu tempo e, em seguida, transcrevê-las com humor?

Agora, ao cinema propriamente dito: como é esse menino Dolan atrás da câmera? A resposta é que ele tem plena noção do que está fazendo com cada um de seus planos. Às vezes, a ideia é só fazer a história avançar; às vezes, é retratar o inconsciente de uma personagem; às vezes, apresentar o universo de seus sonhos. A cada um desses papéis, o diretor ajusta sua linguagem com o controle de um veterano. O resultado é um filme de ritmo agradável, sobretudo porque pontuado – leia-se quebrado – por seqüências com outro tempo, outro interesse, outra lógica. O diretor se declara influenciado por Godard, Gus Van Sant e Cocteau (este último, mais pela literatura). Deve vir de Godard a consciência, ou seria coragem?, de escapar à obrigação de ser “rápido e ágil” o tempo inteiro.

Mas o que Dolan exibe de mais capaz em seu domínio da linguagem cinematográfica é a compreensão da plasticidade da imagem. Nem tudo está nas palavras, nem tudo está nos rostos, e neste filme o diretor expressa a personalidade e a confusão interior dos personagens através de seus tiques e gestos involuntários: um alçar de ombro, um close na garganta que engole em seco. É a exploração do cinema como arte imagética, um aspecto central que os cineastas deixaram um pouco abandonado… ou esquecido. Para coroar o êxito, as tomadas em plano próximo que revelam esses detalhes parecem, a princípio, isoladas do enredo, mas a narrativa os recupera e amarra no interior de seu sentido.

Dolan prepara seu próximo filme; sabe-se lá quando vai ficar pronto, neste tempo em que é tão fácil um especulador enriquecer quebrando sua empresa, mas é tão difícil um artista praticar sua arte. Quantas promessas aparecem que não se concretizam! Por prudência – e não sei mais se essa é uma de minhas qualidades ou se é defeito –, evito fazer apostas. Mas esse Xavier parece ser mais do que uma promessa. Tem jeito de saber bem o que está fazendo. O nome está anotado.

* Leia o que escreveu sobre J’ai tué ma mère o Bruno Carmelo, cineasta e crítico.

PS: O melhor de ver um filme canadense na França é escutar a platéia rindo do sotaque…

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Comunicar-se é mudar o mundo

Meu amigo Germain, de que já falei algumas vezes, é um verdadeiro gentleman, pelo menos para os padrões franceses; o problema é que, para não negar a raça, eventualmente ele se põe a querer obrigar o resto do universo a se submeter à sua maneira particular de ver as coisas. É claro que esse é o tipo de coisa que, normalmente, me irritaria para além de mim. Mas quase três anos de Gália bastam para nos acostumar com todo tipo de coisa, e posso garantir que o imperialismo de Weltanschauung de Germain não é dos piores.

Nossa última rusga foi lingüística, como, aliás, a maioria dos desentendimentos que já tivemos. Mas, como sempre em se tratando de discussões com Germain, foi muito fecunda e me ajudou a expandir meu entendimento sobre coisas que vêm martelando minha cabeça há meses. Começou quando fiz um comentário breve sobre minha dificuldade em “me comunicar” em determinadas situações do dia-a-dia francês. Antes de se mostrar solidário com meu infortúnio, Germain entendeu que deveria cumprir seu dever cívico, aliás pátrio, de corrigir minha expressão.

– Não se diz “comunicar-se” em francês. Diz-se apenas “comunicar”.

Não me entenda mal: gosto muito de ser corrigido; afinal, há anos venho traduzindo o nosso lusófono “comunicar-se” para o francês e isso deve soar terrível para os ouvidos locais, mas até então ninguém ousara chamar minha atenção para o fato. O problema começou quando Germain tentou demonstrar que era tolice fazer de “comunicar” um verso pronominal, aliás, reflexivo:

– O prefixo “co”, que vem do latim, é indicativo de intersubjetividade. “Se comunicar” seria falar consigo mesmo. Isso talvez seja muito normal na sua cultura (essa é uma maneira de dizer “no seu país” que eles consideram mais educada). Aqui, é sinal de loucura.

Ao final do comentário, Germain sorria naquele sarcasmo enjoado com que os franceses tendem a se comunicar, mesmo uns com os outros. Tenho como meta pessoal conseguir responder na mesma moeda antes de voltar ao Brasil. Será um triunfo maior do que desfilar debaixo do Arco do Triunfo, coisa espantosa no tempo de Bismarck, mas que, hoje, qualquer turista pode fazer e até um cabo austríaco já fez.

Acho que, com Germain, consegui bons resultados. Perguntei-lhe:

– Germain, meu velho, se “comunicar” vem do latim e “co” indica intersubjetividade, então me diga: o que vem a ser o verbo “municare”?

Mas Germain não foi capaz de me proporcionar esse aprendizado, alegando não ser, ora bolas, um latinista.

– Não precisa ser latinista, respondi, para saber que esse verbo não existe. “Comunicar” não é “co”-“municar”, mas tornar “comum”. É esse o étimo latino que você procura, o mesmo que está em “comunidade”, “comuna” e “comunismo”. Ergo, quando comunicamos alguma coisa, é porque a tornamos comum. Passa a ser uma informação conhecida de mais de uma pessoa. Portanto, “se comunicar” significa tornar comum algo que está em si próprio, ou seja, as próprias idéias e sentimentos. É rigorosamente o mesmo princípio de “se expressar”. E se vocês se expressam, mas não se comunicam, é porque são um povo solipsista, como eu já desconfiava. (Para falar com Germain, é preciso usar palavras difíceis em profusão. E para discutir com um francês, é preciso encerrar com uma sapatada.)

Embora Germain, através de suas meias-palavras de quem não quer admitir a derrota, ter reconhecido que a razão estava do meu lado, eu não me senti satisfeito com a idéia de que nós estivéssemos “certos” e eles “errados” quanto à fidelidade etimológica para com a comunicação. Afinal, as línguas todas cometem suas infidelidades etimológicas e não há nada mais grosseiro e irritante do que querer reformar a expressão de uma comunidade lingüística segundo imposições etimológicas. Para desfazer o clima desconfortável com o amigo, resolvi continuar a brincadeira, agora com uma hipótese até plausível, mas sobretudo simpática.

Argumentei que o prefixo tão estimado de meu amigo estava, sim, presente no vocábulo comunicação, mas de maneira indireta. Afinal, em “comum” há o tal do “co”. Communis significa “aquilo que pertence a todos”, onde encontramos o “co” e o ablativo de “unus”, ou seja, aquilo que é um, mas é plural. Uma entidade coletiva, que tem sua individualidade, mas só existe enquanto pertence a mais de uma pessoa.

Aí a coisa começou a ficar interessante.

Juntos, Germain e eu percebemos que a coisa vai mais longe: comunicar, então, é o ato de fabricação dessa entidade plural. Comunicar é produzir algo que seja ao mesmo tempo uno e múltiplo, é reproduzir um pensamento ou uma sensação indefinidamente. É um gesto praticamente de manufatura ou, com os meios de que dispomos hoje, de indústria. Com a diferença de que o objeto industrial não é múltiplo como aquilo que se comunica. É individual e vendido em troca de numerário, mas não se reproduz espontaneamente, como o objeto da comunicação.

O ato comunicado não é palpável, mesmo que esteja escrito ou gravado de alguma outra maneira; o livro só comunica quando é lido; o disco, quando é escutado; o filme, quando visto. Concretamente, ele só existe dentro de cada cabeça, moldado e encaixado da maneira que for possível naquele espaço, naquele indivíduo particular que pensa ou sente aquilo que foi ou será comunicado. Mesmo assim, sua realidade, quer dizer, seu modo de existência está no espaço entre cada indivíduo, cada membro do grupo que comunica; senão, morre no esquecimento.

Mas o mais relevante é que cada um contribui ao modificar aqui e ali o comunicado, incluir versões e confrontá-las com as alheias. A comunicação é como um organismo vivo em constante evolução. É um corpo imaterial, que aceita e se alimenta de todas as mutações por que passa no tempo e no espaço.

Estranho universo, esse. E vimos, Germain e eu, como ele é central na experiência humana. E se for verdade que vivemos em plena “terceira revolução industrial”, aquela da expansão massiva dos meios de comunicação, então o que vivemos é muito mais revolucionário do que parece. A fortiori (já que tratamos tanto de latim), se a crise mundial é, de fato, a crise do esgotamento do modelo anterior, então será, necessariamente, caso de uma mudança radical da forma de vida da humanidade.

As revoluções industriais que já varreram o mundo podem ser interpretadas como quebras do paradigma de acumulação de capital (não se assuste com o vocabulário marxista; ele foi criado por Adam Smith). Mas a comunicação é outra história. Como dissemos, elas se reproduzem e multiplicam por conta própria, capital acumulado ou não. Não é à toa que empresas de comunicação baseadas em modelos de trabalho antigos estão desaparecendo ou sendo transformadas a ponto de ficar irreconhecíveis. Mas nada garante que o modelo novo será um substituto à altura. Aliás, como sempre acontece em momentos de crise e mundo de cabeça para baixo, nada garante nada.

E tudo isso porque Germain não queria se comunicar.

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