Os brasileiros chegam e partem sem dar descanso, no fluxo dos pousos e decolagens de difícil discernimento. Vêm como turistas e estudantes, para visitar amigos ou executar algum trabalho. É uma alegria enorme quando chegam. Trazem notícias, algumas difíceis de engolir, outras tão antigas que dão a pensar que ninguém sabe ao certo há quanto tempo estamos fora. Em seguida, quase sempre, depois de uns dias, os amigos partem; furam as nuvens e desembarcam em suas cidades. Não sem, antes, deixar suas impressões sobre a visita à terra do croissant. De hábito, após a constatação quase generalizada de que “é tudo lindo”, vêm as críticas, severas e indignadas, aos franceses. Ou aos parisienses, o que não é a mesma coisa, embora, de certa forma, seja…
Na Gália, como os gauleses: antes de qualquer comentário, é obrigação expor o método. Método! Eis o segredo do triunfo entre os filhos de Descartes! Saiba que suas idéias podem ser furadas; seus conceitos, irrelevantes; seu discurso, tedioso. Mas se estiver claro o método, um belo método, um lindo método, o método dos métodos, o público será todo aplausos para o que quer que você diga, seja o que for, pouco importa. E lá vou eu, já me adiantando em críticas! Desculpe o deslize. Conforme o prometido, vamos ao método: neste caso, trata-se de dividir em dois campos principais o que se diz de mal da França e seu povo, para facilitar a exposição. Assim, são eles o campo pessoal e o coletivo. Agora, método exposto, missão cumprida, vamos ao verdadeiro assunto.
No plano pessoal, diz-se do francês que ele é grosseiro, mal-educado, sujo. Que destrata os turistas e não tem estima nem pelos próprios filhos, vizinhos ou colegas; gosta, no máximo, de seu cãozinho fiel. Que só abre a boca para xingamentos em brigas de trânsito. Que, finalmente, sua vida sexual só pode ser frustrante (sim, é o que se diz). Não vou me meter a corroborar ou desmistificar nada disso. Quem já foi expulso aos berros de um café, quem já temeu ser agredido por um jornaleiro da Rue de Rivoli só por ter pedido uma informação, quem já ouviu impropérios enigmáticos de um fiscal do metrô, não precisa de nenhuma colaboração de minha parte para firmar sua opinião.
Subamos, agora, ao plano coletivo, ao modo de ser do povo como um todo. Este é até mais interessante, porque comporta uma censura mais grave, aparentemente mais séria e, na minha modesta opinião, também mais acertada. É incrível como todos os visitantes têm a mesma capacidade de apontar o quão difícil parece ser para este folclórico povo europeu o esforço de modernizar-se, ou melhor, de aceitar que as coisas se modernizam. É uma unanimidade. Decolando do aeroporto de Roissy, todos os conterrâneos parecem partir com essa certeza. E, de fato, a turma por aqui costuma revelar uma preferência pelo jeito como as coisas eram feitas “antes”.
Poucas vezes questionamos como é estranho atribuir esse passadismo a um país que produz alguns dos melhores trens, carros e aviões do mundo (embora, no caso da Airbus, o crédito seja mais dos alemães). Mas mesmo entre aqueles que, como eu, não se consideram, de forma alguma, americanófilos inveterados, é difícil evitar de sentir nas ruas um cheiro e escutar nos assuntos uma melodia de coisa antiga. Talvez seja a arquitetura preservada, talvez sejam os monumentos, não sei. Alguém que, por pensar que gosta dos conceitos de mercado e concorrência, se considera liberal, tem certeza absoluta de que a culpa é do governo, que participa em detalhes de qualquer aspecto do dia-a-dia. É, pode ser.
Tudo isso pode, sem dúvida, não passar de mistificação. Preconceito, para usar a palavra da moda. Mas é difícil não concordar com o diagnóstico (quase unânime, repito) diante da preferência declarada de professores e estudantes por trabalhos redigidos à mão. Ou da revolta que o povo demonstra ao ser obrigado a ler um texto em inglês. Ou da veneração diante de formas lingüísticas incompreensíveis, mas recomendáveis “desde a Idade Média”. Convivo com pessoas cujas frases parecem tiradas de diálogos de Proust, para não dizer Racine, e acham perfeitamente normal. Sem contar as correspondências que chegam para a proprietária de meu apartamento, a “Condessa de la R.”
Acredito que a origem da dificuldade francesa com “o presente” é uma confusão difícil de deslindar entre o que é tradição e o que não passa de caducidade. Mas não será o caso de atirar a primeira pedra. Se aprendi algo com esse pequeno e, convenhamos, simpático defeito francês, foi que nós, brasileiros, temos o defeito inverso. Confundimos tradição e entrave, logo progresso com terra arrasada. Não perdemos uma oportunidade de derrubar monumentos do passado ou debochar dos heróis de outros tempos, em nome de disputas e desejos mesquinhos que nasceram ontem e amanhã já estarão mortos.
Assim, de um lado, os franceses não conseguem renovar sua forma de ser e agir; de outro, os brasileiros não conseguem construir coisa alguma de duradouro, porque as estruturas estão sempre sendo corroídas, por dentro como por fora. Em outras palavras, nosso esforço resulta vão, voltamos sempre ao ponto de partida. um pouco mais cansados, um pouco mais desiludidos. Crescemos, estagnamos, voltamos a crescer e a estagnar. Durante a expansão, temos consciência de que, mais cedo ou mais tarde, o freio virá; nossa reação é essa mistura de euforia e complexo de vira-latas que conhecemos tão bem.
Temos consciência de que o caso francês é o extremo oposto. Acho interessantíssimo observar os amigos que me visitam, quando falam do pendor local para o conservador e o antigo. Em todos, invariavelmente, o desprezo e a admiração se misturam como farinha e clara de ovo. Isso me lembra dois bordões eternos; o francês: “Como este país vai devagar!”, e o brasileiro: “Este país não vai pra frente!” Como dizem, os extremos se encontram no infinito.
conheci bem Paris e parte da França antes da guerra, não voltei mais, mas pelo seu texto vejo que o parisiense é imutável e a Frença também. De modo geral o francês é arrogante, inventa e perde guerras, mas a cultura é extraordinária, um país que “produz” um Malraux merece respeito.
Quando cheguei ao Brasil em 1941 o país era “afrancezado” em especial na area escolar, o ensino ginasial era esplendido calcado no sistema francês. Perdeu – se essa vantagem e outras mais, a cultura desenvolevmetista passou por cima da tradição, apressada e desorganisada, e a nossa cultura difundida por uma televisão analfabeta e a musica perdeu seu samba tradicional
abraço
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Tb tive problemas com os parisienses…. (nem ;e bom bater na mesma tecla), mas as parisienses são as mulheres mais elegantes e charmosas do mundo!!!!!
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“Oz mei, pulcele? Celui tien ad espous
Qui nos redemst de son sanc precious.
En icest siecle nen at parfite amour:
La vide est fraiele, n’i at durable onour;
Ceste ledece revert a grant tristour.”
Ouve-me donzela, toma como esposo
Aquele que nos redimiu com seu sangue precioso.
Neste século não há amor perfeito:
a vida é fragil, não há honra que dure;
Esta alegria reverte em grande tristeza.
Canção de Aleixo, séc Xi
Neste mesmo século Rolando bradou aos seus comandados:
“Vamos em frente: os cristãos têm razão, os mouros não.
Essas contradições entre um sentimento tão elevado e outro tão simplista fazem parte da França, como fazem parte do Brasil.
Os desencontros são frutos do desconhecimento um do outro e o outro do um. Com você mencionou os contrários se encontrarão no infinito. É uma pena.
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oi, parece mentira, mas eu, embora tenha morado um ano em Paris, acho que metade do que os brasileiros dizem dos franceses é uma profunda incapacidade de conviver com o diferente. Então, veja: não que eu negue que até pode ter la um fundo de verdade no que dizem, mas tenho ca para mim que nem os brasileiros são os santinhos e simpaticos que eles acham que são nem os parisienses os monstros que dizem. Eu tive amigos franceses que serão para todo o sempre e vi muita delicadeza, muita emoção! Acho que se mudassemos um pouco o modo como os vemos e como nos dispomos a olhar as culturas diferentes da nossa ajudaria bastante contra a intolerância! E quanto ao passado, bem, Paris, na minha area, tem um Barthes, um Derrida; na literatura, tem Genet, tem a moçada toda do nouveau roman (que embora sejam chatos, foram de uma ousadia…). enfim, sei la, escrevo isto porque gosto ou desgosto de gente, né? quem fica medindo por nacionalidade nunca vai ver a beleza do outro irremediavelmente outro. e desculpa escrever tanto; é que é uma delicia quando um texto da vontade de escrever… Um beijo.
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Há muitos anos estive em Paris, e não sei se pela minha pouca idade ou pouca convivência no país, não tive essa má impressão dos franceses. Acho, sim, que a França é um país que gosta de manter suas raízes, assim como outros países europeus.
Concordo que o Brasil (e o brasileiro) adora vender a política do “jeitinho”, do progresso. Mas como diz a MIlena, a crítica dos brasileiros aos franceses, por mais que sejamos um país feito de miscigenação, “é uma profunda incapacidade de conviver com o diferente”.
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Oi Milena,
Concordo com tudo que você disse, mas você há de convir, também, que críticas feitas aqui e ali, ao voltar de uma viagem, não são a mesma coisa que dizer dos franceses que eles são “monstros”… Também acho que o brasileiro tem uma certa dificuldade em lidar com o diferente (aliás, isso é a coisa mais comum do mundo), mas também não vamos exagerar…
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Só tem um jeito: miscigenar brasileiros com franceses. Aí chegaremos a um ponto de equilíbrio entre passadismo e modernidade. Muito interessante esta sua análise!
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Estudei francês no ensino médio em escola pública, no Rio de Janeiro. Bons tempos em que a cultura francesa não era privilégio de poucos. Ok… temos a internet, a TV, as traduções e tudo o mais, mas nada como poder ler no original.
Talvez o que falte aos dois povos, em muitos momentos, sejam duas virtudes fundamentais para a evolução do ser: humildade e tolerância. Encontrar o meio-termo nunca é tão fácil quando se lida com as vaidades humanas. Aceitar o novo? fundamental! Respeitar o antigo e “tradicional”: fundamental! Amo a modernidade e o uso que podemos fazer da tecnologia (e não vice-versa), mas confesso que não deixei de lado o hábito de escrever a alguns amigos, de próprio punho, algumas cartas que se tornam muito mais charmosas.
Mas não é por isso que me nomearei Baronesa Rosane… mas se tivesse herdado o título… quiçá? rs
Parabéns pelos artigos aqui escritos.
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