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A saudar Iemanjá

Mais uma jangada saiu pro mar. Vai navegando nela, provavelmente a assoviar uma de suas próprias canções, o homem que cantou a Bahia e as baianas. Cantou Doralice e Dora, rainha do frevo e do maracatu. Cantou Rosa, com a rosa no cabelo e o olhar de moça prosa. Cantou Marina, morena Marina, que ousou se pintar, ela que já é bonita com o que Deus lhe deu. Vai sumindo no horizonte a jangada do trovador Caymmi. Vai se despedindo de seus personagens, os trabalhadores do litoral, curtidos pelo sol. E quando a jangada voltar só, é porque, como ele mesmo já disse, o mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito.

Com ele, aprendemos sobre o canoeiro que joga a rede no mar, puxa a corda, colhe a rede. Com ele, aprendemos que quem não tem balangandãs não vai ao Bonfim, e olha que quem vai ao Bonfim nunca mais quer voltar. Aprendemos também que o pescador tem dois amores: o bem da terra, o bem do mar. O bem da terra é aquela que fica na beira da praia, que chora e faz que não chora quando ele sai. O bem do mar é o mar, que carrega nas ondas pra ele pescar. Em poucas palavras, aprendemos que tudo na Bahia faz a gente querer bem.

Dorival, depois de muito matutar em sua rede, concluiu que era hora de levantar e partir para uma outra Maracangalha, de uniforme branco e chapéu de palha, para encontrar Anália e os velhos amigos, Tom Jobim, Jorge Amado, Vinícius de Moraes. Alguém, depois de tanto esperar, deve ter cobrado. “Ei, Dorival! Deixa de lado essa pose e vem pro samba! Vem sambar, que o pessoal está cansado de esperar!” E ele, que não é ruim da cabeça, nem doente do pé, levanta e vai, copo na mão e o corpo mole, que é assim que o samba deixa a gente. Ora, quando se dança, todo mundo bole, é ou não é?

Tudo isso, então, por saudade dos amigos. Ah, insensato coração! Mas se ter saudade é ter algum defeito, como em outros tempos Dorival teve da Bahia, então que lhe reservem o direito de ter alguém com quem se confessar. Se confessar e conversar, claro, sobre as sacadas dos sobrados da velha São Salvador, com as lembranças de donzelas de outros tempos, e tudo mais que há naquela terra, o vatapá, o mugunzá, o caruru. Realmente, a Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem.

Muita gente quis conhecer a areia e a morena de Itapoã, mas voltou decepcionado. Eu mesmo ardia de curiosidade pela lagoa escura do Abaeté e fiz muxoxo diante de um lago urbano perfeitamente normal, arrodeado de areia não tão branca, nada branca. Na minha estultície, demorei a entender o óbvio. Que não é aquela a Itapoã de tantas saudades, nem o Abaeté onde lavadeiras se benzem ao ouvir a zoada do batucajé. Como a Pasárgada de Bandeira, as paisagens de Dorival Caymmi não são referências geográficas, mas poéticas. Não existem sobre a terra, só no vento dos versos e em nenhum outro lugar. Melhor assim, claro. Muito melhor assim.

Foram precisos 93 anos para apagar a voz límpida, de clareza ímpar, grave como poucas, enorme desafio para os operadores de som do último século. Da boca que emitia as vibrações intermináveis, mas suaves, vinha sempre também o sorriso amistoso de quem está de bem com a vida, não teria por que não estar. Era alguém que sabia dos momentos na vida em que, se a noite é de lua, a vontade é contar mentira e se espreguiçar. Dorival Caymmi nasceu pequenininho, como todo mundo nasceu, depois tornou-se o porta-voz de uma Bahia que deixa saudades em seus filhos. E de trabalhadores que se arriscavam no mar, enquanto suas negas rezavam pra ter bom tempo e faziam suas caminhas perfumadas de alecrim.

As composições de Dorival tinham um despojamento calculado que associamos normalmente à Bossa Nova. Não à toa, claro. Foi um dos primeiros autores a merecer gravações na batida inovadora de seu quase conterrâneo e também gênio, João Gilberto. A música corria com tanta força no sangue desse baiano pacífico da cabeleira branca, que jorrou em notas sobre toda a descendência. Eis aí a dinastia formada e firme, tantos bons músicos, Dori, Nana, Danilo.

Está certo o compositor, é impossível estacionar aqui para sempre. Muita coisa boa, muita coisa a fazer, a aproveitar, a cantar, pois é. Mas não há bem que não se acabe. Assim adormece esse homem que nunca precisou dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que a sua terra. Foi assim que mais uma incelença entrou no paraíso. Adeus, mestre, adeus. Até o dia do juízo. E que descanse bem, porque é doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar.

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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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Seção obituário: Moacir Santos (Hora do mea culpa)

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Este blog passou, isto é, eu passei batido por uma notícia que deveria entristecer todos os brasileiros, mas duvido que tenha tocado mais do que a meia-dúzia de sempre. Só pra piorar um pouco, minha omissão se torna ainda mais gritante pelo fato de que nesse meio-tempo ainda ousei escrever um texto laudatório sobre os grandes gênios da música brasileira. Pois no dia 6 de agosto perdemos um que certamente está nos “Top 10”, se não estiver nos “top” três ou quatro. Que o sol suma do céu e a terra trema: perdemos Moacir Santos (1924-2006).

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Eu jamais poderia ter deixado tanto tempo antes de comentar, ou, melhor dizendo, homenagear um dos nossos mestres. Talvez isso se explique pela semana infernal que tive, a cabeça ocupada até o talo com uma série de obrigações de que falarei mais adiante, quando for hora. Mesmo assim, não tem perdão. A morte de Moacir Santos é caso de parar todas as atribuições do maldito cotidiano.

Certo, estou exagerando. Mas tudo isso foi só para aguçar a curiosidade dos muitos brasileiros que não conhecem esse compositor. De fato, não são poucos: por falta do devido reconhecimento, Moacir se tornou mais um cérebro (genial, diga-se de passagem) brasileiro a tentar a vida no exterior, mais especificamente, EUA. Pena. Lá, ele produziu algumas de suas maiores obras e ensinou a muitos músicos estrangeiros a beleza de nossa música, que alunos brasileiros poderiam ter aproveitado se tivéssemos mais estrutura para manter nossos gênios. Resta o consolo de saber que houve um mestre cuja vida foi dedicada a expandir as fronteiras da cultura do Brasil…

Moacir Santos era pernambucano. Tocou em várias bandas do nordeste até se mudar para o Rio de Janeiro, onde arrumou emprego, leia-se bicos, em vários lugares, principalmente a Rádio Nacional. Fazia arranjos sem saber teoria (o que não é fácil), e seu talento chamou a atenção do professor Hans Joachim Koellreutter, alemão desses geniais, que viveu e compôs no Brasil. Moacir foi assistente do maestro e, mais tarde, deu aulas para João Donato, Baden Powell, Paulo Moura e outros grandes músicos brasileiros.

Tocava vários instrumentos, como a maioria dos grandes músicos, mas tinha uma queda para o saxofone. Sua música é de uma beleza difícil de crer. Moacir tinha a rara qualidade de fazer o complexo parecer simples. O som que criou é uma mistura quase mágica entre influências nordestinas, cariocas (samba e choro), eruditas e norte-americanas (jazz). O resultado é difícil de definir até para o compositor: seu primeiro disco chamou-se Coisas, pelo simplíssimo motivo de que cada uma das músicas ali dentro era uma “Coisa” seguida de um número. A “Coisa” que ficou mais famosa é a de número 5. Não vou dizer que é a melhor, porque cada um deveria ouvir e escolher por si próprio. Mas o fato é que a “quinta coisa” foi regravada inúmeras vezes.

Depois de Coisas, Santos lançou dois outros discos, já nos EUA. Por fim, quando se reconciliou (mas não voltou) com a nossa pobre pátria, comemorou o reencontro com o lançamento de um disco duplo delicioso de se escutar, todo negro, com um encarte fabuloso, chamado “Ouro Negro” como a pele e o coração do compositor (são músicas instrumentais, então não se pode dizer, como seu antigo parceiro Vinícius de Moraes, que o som é “branco na poesia”). Alguns de nossos melhores nomes fazem participações breves nesse disco.

Pois Moacir Santos, já octogenário, foi-se, legando essas composições monumentais, e uma série de ex-alunos que dignificam nossa história musical. Só acho uma pena que ele não tenha gravado mais discos. Saravá, Moacir!

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