Era uma vez uma reputada entidade de ensino, sediada na Cidade Maravilhosa, que formava profissionais para a bolsa de valores e semelhantes.
Era uma vez, coisa nenhuma: a entidade segue firme e forte, tem filiais em diversos Estados e se chama Ibmec, isto é, Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais.
Pois bem, uma dessas filiais ficava em São Paulo, não por acaso, sede das bolsas que sobraram (Bovespa e BM&F) e principal centro financeiro do país. Mas eis que, lá pelos idos de, não sei, 2007 ou 2008, a turma dessa filial começou a sentir que algo não ia bem. Continuar lendo
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O mito dos especuladores
No Olimpo, Hera andava enfezada com o comportamento exuberante de Poros. Ele saltitava, cantarolando, por entre as arcadas da morada dos deuses, como se fosse o dono do pedaço. Distribuía crédito a todos os mortais e todos os imortais, sem comprovação de renda, sem nada. A esposa de Zeus, sempre atenta, estava convencida de que aquele mito menor tinha planos secretos de subverter a boa ordem do universo, dando a entender a qualquer descendente de Cronos que bastaria especular um pouquinho com derivativos, que a dominação do Cosmos estaria ao alcance da mão. Como se não bastasse, o safado ainda estendia suas garras ao mundo dos mortais: manipulava, sempre para cima, os índices das Bolsas, os juros do Terceiro Mundo, o valor do metro quadrado e assim por diante.
Pouco adiantou reclamar com o marido. Zeus, conforme ela foi descobrir mais tarde, tinha uma carteira repleta de ações, participava de empreendimentos por toda a Hélade e, além de decidir, em grande medida, o destino dos mortais, ainda dera como garantia para seus investimentos na Terra, justamente, algumas terras em Atlântida cujas escrituras, tantos séculos passados, ainda estavam em seu nome. Assim, o maioral do Olimpo não deu ouvidos à esposa sempre atenta (mas sempre um poço de reclamações) e sugeriu que ela deixasse em paz o pequeno deus da abundância, esse simpático Poros que, com seus sorrisos e seus fundos de investimento, fazia a alegria de tantos deuses e tantos homens. A hybris se generalizava no Universo. A tragédia crescia em conflito dramático. Mas o Olimpo parecia não se importar.
Hera, como era de seu feitio, não se fez de rogada. Pediu a algum daimon que seguisse de perto o suspeito e não demorou a fazer uma descoberta assombrosa: o insidioso Poros andava na companhia da pequena Ate, personificação do espírito da loucura. A deusa matou a charada: desde o episódio em que, bêbado, se deixara seduzir por Pênia, a repugnante imagem da pobreza absoluta, Hera já sabia que o engraçadinho abundante não conseguia resistir a um rabo de saia. Certamente a Loucura havia levado a Abundância à loucura, só poderia ser. Mas o espião da grande deusa se apressou em desfazer o mal-entendido: não era ela que o controlava; antes, era o contrário. Mediante um pagamento exorbitante de néctar e ambrosia, ela se insinuava no inconsciente de todos os, na falta de palavra melhor, clientes do grande consultor econômico. Sob o efeito encantador de Ate, deuses e mortais investiam o que tinham e o que não tinham, endividavam-se, empenhavam até as calças, no caso dos homens, ou as auréolas, no caso dos deuses.
Terrível! Aquela era a maior afronta que Hera jamais constatara. Um imortalzinho qualquer, desses que até esquecemos quem tem por pais, que não entra na lista dos doze do Olimpo, que não é ninguém, que não é nada, conseguia engrupir reis e generais, presidentes de bancos centrais, consultores, analistas, todos os deuses do Olimpo e o próprio Zeus?! Onde já se viu! Aquilo tinha de acabar o quanto antes.
Ela sabia que não poderia esperar nada da maioria dos grandes imortais. Sobrava apenas uma amiga, com quem ela poderia contar sempre: a sábia Atena, que não era de se meter em tolices como essa; aliás, em tolice nenhuma. Hera foi, assim, a seu encontro, e ficou contente de saber que seus pensamentos recentes convergiam: aquela situação era ridícula e insustentável.
Juntas, matutaram por horas, deitadas nas nuvens, até que Atena encontrou a solução. Dois rapazotes, ela explicou, também estavam por conta com aquela euforia estúpida, aquela confiança desabrida, aquela falta de bom senso. Alegria, alegria demais. Eram eles Fobos e Deimos, os filhos gêmeos de Ares e Afrodite, o casal-problema.
Mandaram que o daimon os chamasse. Apareceram em poucos minutos, os olhos injetados de sangue, perguntando, em suas vozes ásperas de adolescentes rebeldes, “o que tá pegando”. As duas senhoras explicaram o que queriam deles: que acabassem com essa palhaçada de uma vez por todas. Que Fobos inspirasse o medo nas bolsas de todo o universo, que Deimos disseminasse o terror por todos os governos, instituições, empresas, lares, partidos. Só assim o equilíbrio poderia se restabelecer.
– Falou, tias! – E foram-se os garotos, ávidos para cumprir uma missão que parecia mais uma concessão para se divertir. Contentes, Hera e Atena, a primeira irrequieta, a segunda altiva, ficaram observando a partida de seus dois expedicionários, com seus bonés virados para trás e as calças com as cinturas no meio das coxas, deixando aparentes as cuecas samba-canção.
Não poderia ter sido melhor. O pânico se instalou como há muito não acontecia. As quedas nas cotações refletiam o absurdo que havia, no fundo, em seus índices: vinte por cento aqui, dezoito ali; em casos particulares, até oitenta, quase noventa. Bancos quebraram, Hefesto pensou em fechar sua oficina, Ades não conseguia equilibrar o orçamento de seus batalhões. Hera ria à toa, olhando de esguelha o ar enfurecido se seu marido, que, à beira da falência, descontava a ira na cabeça dos pobres mortais, com sua carga amedrontadora de relâmpagos (foi essa tempestade que salvou, afinal, os negócios de Hefesto).
Na Terra, as autoridades se reuniam e falavam línguas incompreensíveis, discutindo os bilhões, os trilhões, quanto seria necessário torrar para que as dívidas impagáveis fossem pagas ou, pelo menos, não colocassem em risco a solvência dos maiores donos do planeta. A dança das moedas virou um scherzo ensandecido. Quem deveria explicar estava pedindo explicações e ninguém queria mais emprestar, produzir, fazer nada. Bagunça absoluta. E como Poros não conseguia mais honrar seus compromissos, após o estouro de sua bolha olímpica, a própria Ate resolveu se vingar, levando o mundo inteiro à loucura. Hera ria à toa.
Mais alguns dias e o malfeitor veio, em toda humildade, pedir clemência à dupla de deusas que lhe passara uma rasteira. A esposa de Zeus, que já não agüentava mais aquela história, estava prestes a cometer a impostura de erguer a mão para lhe aplicar um sopapo, a seu ver, muito bem merecido. Mas o desejo de saborear o triunfo falou mais alto: ela resolveu criar um suspense, estendeu um pouco mais o silêncio que apertava a garganta do delinqüente humilhado.
Foi tempo demais. A seu lado, como se tivesse a intenção explícita de afligi-la, a impassível Atena se colocou de pé e, enquanto golpeava com o cabo da espada seu grande escudo trabalhado, proferiu a sentença:
– Não serás punido, nem o serão suas vítimas incontinentes, com a condição de que vós todos renuncieis à exuberância inconseqüente, à cegueira derivativa, à especulação fictícia, à manipulação de dados, ao consumo fútil e predador. Fazei isso e sereis anistiados.
Faltou tempo para protestar. Antes que Hera pudesse abrir a boca, Palas Atena fez entrar o daimon, que conduziu para fora do grande salão oval um Poros lívido, suando frio, todo mesuras de alívio e agradecimento. Depois de todo o mal que ele causou, por Cronos!, sairia impune.
Hera sacudia os ombros de Palas Atena:
– Como você foi anistiar esse criminoso?! Como a especulação sem limites ficará sem punição?! Isso é um absurdo! Você nem me deixou falar!
Mas a sábia deusa, a grande vencedora, a maioral, não fez mais do que puxar seu cachimbo. Hera não acreditava que, naquele momento de hostilidade tão patente, sua antagonista amassasse fumo, como se nada acontecesse. Na Terra e no Olimpo, os índices tinham uma reviravolta: oito, nove, quinze por cento de alta nas Bolsas, as moedas de volta à estabilidade, até mesmo algumas promessas de investimento, ainda tímidas, sendo aventadas cá e lá, operadores e corretores caindo na risada com o susto que passava. Em resumo, um desacato.
– Olha só o que você fez! Agora eles vão achar que agiram certo!
Atena, cruel: uma resposta monossilábica:
– Vão.
Hera arrancava os cabelos. Sabia que Zeus voltaria a rir à toa, de olho em seus títulos que se revalorizavam. A ciranda voltaria a rodopiar em velocidade máxima. Poros e Ate reatariam, e quem sabe que raio de pequeno deus nasceria dessa união diabólica. Ela tinha de admoestar a companheira mais uma vez, entender que tática velada poderia ser aquela, que abria mão de uma punição certa e justa, já em curso, em troca de nada. Mas não sabia o que dizer. Só encarava o rosto tranqüilo de Atena, soltando anéis de fumaça em ritmo espaçado. Afinal, foi a própria Palas que falou, com voz lenta e sem paixão, ciente do nervosismo da outra deusa.
– Vão achar que fizeram tudo certo. Vão se entregar de novo à orgia. Vão baixar a guarda. Vão queimar todas as fichas. Vão ficar indefesos.
Hera começava a se interessar pelo discurso. Atena prosseguiu, com mais um par de frases irresistíveis:
– Vão estar no ponto mais vulnerável a Fobos e Deimos. Mas, veja… Fobos e Deimos estão a postos, prontos para entrar em ação mais uma vez.
Hera assentiu:
– Para matar!
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A origem insuspeita da crise econômica
Cuidado ao criticar Wall Street. A crise financeira mundial pode ser culpa sua. Pode ter começado, certo dia, quando um amigo, desses que trabalham no governo ou no setor financeiro, vem lhe contar de um pequeno país caribenho, uma ilha parcamente habitada, que acaba de anunciar o projeto de construir um aeroporto ultra-moderno. Com isso, a ilhota, até agora de destaque apenas na produção de conchinhas ornamentais, é garantidamente a próxima coqueluche do turismo internacional.
Barbada, você pensa. Os terrenos ainda se compram a preço de banana, os grandes resorts ainda não tomaram suas decisões de investimento, a hora é agora. Impossível perder dinheiro. Quem investir vai virar milionário. Com os olhos brilhando, vocês juntam um grupo de dez camaradas dispostos a investir, no total, um milhão redondinho de dólares em terrenos na ilha. Colocando em termos cartográficos, dá metade da superfície do país. Quando os hotéis e mansões resolverem correr atrás da carniça, vão ter de desembolsar o dobro. E quem vai ganhar nessa são vocês, investidores atentos. Brilhante!
Seu problema passa a ser, naturalmente, como arrumar cem mil dólares. Um bom dinheiro, que você, é claro, não tem. Pelo menos não assim, disponível. Felizmente, você se lembra então de um personagem que nunca o deixou na mão, tendo inclusive lhe adiantado mil pratas no ano passado, quando o guri quebrou o braço num acidente de patinete. Viva o sogrão!
No almoço do próximo domingo, você expõe seu projeto ao sogrão, carregando nas emoções. Sogrão ouve atento e lhe responde que cem mil não é trocado, é muito mais difícil de emprestar que mil, não dá para abrir mão desse dinheiro todo de uma vez só. Mas você já sabia que o empréstimo não sairia de mão beijada. Já preparou uma proposta que lhe parece bastante boa para ambas as partes. Promete pagar, ao final de dois anos, cento e dez mil dólares. Por gratidão. Traduzindo para a linguagem racional das contas financeiras, são cinco porcento ao ano. Nada mal, pelo menos para uma economia estável.
Mas ainda existe um risco nesse negócio. Sogrão quer algum tipo de garantia, ele precisa de segurança, esse é um prejuízo que ele não tem musculatura financeira para engolir. Você tem algum bem que valha cem mil dólares? Claro! Sua casa, pequena e suburbana, mas agradável e sua, está avaliada mais ou menos por esse valor. Verdade seja dita, você ainda não conseguiu se livrar da hipoteca. Mas a casa lhe pertence, é lá que estão seus objetos queridos, é lá que vive sua família amada. Além do mais, com os lucros da ilha, você paga o sogrão, a hipoteca, a dívida do pôquer e a faculdade do guri.
Para sua felicidade quase incontrolável, o sogrão aceita, contanto que tudo seja posto no papel. Problema nenhum, é assim mesmo que tem de ser. Ele lhe pede uma semana para fazer a transferência. É claro que ninguém deixa esse dinheiro todo dormindo na conta corrente.
No dia seguinte, seu sogrão vai ao banco com uma proposta para o gerente. Considerando a trajetória do mercado imobiliário nos últimos anos, a casa que você lhe prometeu em garantia deverá valer cento e oito mil dólares daqui a dois anos. O sogrão se compomete a entregar daqui a dois anos um bem que vale cento e oito, recebendo agora cem. Nada muito diferente do negócio que você fez com o mesmo sogrão, mas com uma perspectiva um pouco diferente. Afinal, o banco pode projetar um aquecimento maior do mercado imobiliário para os próximos dois anos, o que faria o tal bem, que seu sogrão vai entregar por cento e oito, valer cento e doze.
Mais importante ainda, vale mais a pena para o banco contar com uma promessa de pagamento de cento e oito do que com líquidos cem na mão, porque, ao contabilizar os cento e oito no balanço, é possível liberar uma porção maior dos depósitos dos correntistas para comprar as ações de uma determinada empreiteira no mercado futuro. E essa empreiteira, qual seria, senão a que foi contratada para tirar do papel o aeroporto na pequena ilha? Indiretamente, sem saber, você ajuda seu próprio sonho a se tornar realidade quando pede o empréstimo ao sogrão. Afinal, com seus múltiplos projetos ao redor do globo, a empreiteira não tem caixa para fazer a obra. Mas tem uma estrutura sólida e um excelente valor de mercado. Por meio de uma oferta pública de ações, não deve ter problemas para se financiar. Nunca teve. Com garantias como a sua casa, bancos como o do sogrão fornecem o dinheiro de que a empresa precisa. Felizmente!, porque o governo insular conta justamente, veja só, com a venda de seus terrenos valorizados para pagar pela obra, ao final de sua execução.
Tudo está bem, tudo está em equilíbrio. Nenhum dinheiro de verdade entrou em jogo porque ele simplesmente não é necessário. Basta a expectativa de algum valor ser gerado para colocar em movimento uma grande ciranda de operações econômicas. A essa expectativa corresponde um dinheiro imaginado, suposto, para não dizer fictício, o que seria maldade.
É claro que muita coisa pode dar errado, mas todos os envolvidos estão cientes. Um furacão pode varrer a ilha. Uma revolução. A descoberta de uma doença misteriosa. Um sócio que foge com o dinheiro de vocês. Mas para todos esses casos, a princípio, há solução. Um seguro contra eventos naturais e políticos. Um outro empréstimo, para cobrir a perda iminente da casa. A venda de um ativo da empreiteira. A emissão de títulos, pelo banco, e moeda, no caso do governo da ilha. Não há por que ter medo. Passado o susto, você negocia com o sogrão, que negocia com o banco, que negocia com a empreiteira, que negocia com os mandatários da ilha. Tudo muito civilizado, para que as obras possam finalmente ter lugar.
A não ser, é claro, que todo mundo tenha esticado demais a corda. Se a ilha estiver considerando que vai vender todos os terrenos disponíveis a preços satisfatórios. Se o fluxo esperado de turistas estiver mal calculado. Se a empreiteira apertar o orçamento e esperar um preço irracionalmente alto para suas ações. Se o banco não tiver em reserva o suficiente para cobrir os saques dos clientes. Se o sogrão avaliar com benevolência demais o valor da casa. Se você tiver confiança excessiva em sua capacidade de quitar a hipoteca.
Basta que o mercado desconfie das projeções de construção de hotéis na ilha, digamos. O governo, ao se ver incapaz de pagar pelo aeroporto, emite moeda e causa inflação. Os acionistas fogem da empreiteira. As ações caem. O banco perde liquidez, quer resgatar seus empréstimos, mesmo com taxas menores. A empreiteira precisa do dinheiro, corre atrás de empréstimos, a oferta escasseou, os juros sobem como um foguete. Juros altos, o mercado imobiliário esfria. As casas perdem valor. As hipotecas se tornam mais caras. O sogrão tem de pagar o banco, mas sua garantia de cem mil caiu para setenta. Você acaba tendo de lhe ceder também seu carro, mas continua endividado ainda assim. O sogrão também, por sinal, apesar do novo bólido. O banco não consegue cobrir os saques, tenta vender ações, elas estão em baixa. A empreiteira não consegue empréstimo, pede concordata. A ilha fica sem aeroporto, sem turistas, mas cheia de dívidas, inflação e terrenos baldios, além das conchinhas multicoloridas. Mas ninguém mais quer os terrenos. Aquele milhão de vocês vale agora menos de seiscentos mil dólares. Eis o desastre. Sem contar com os trabalhadores da ilha que já planejavam comprar eletrodomésticos, pagar dívidas, expandir casas…
O sistema financeiro funciona, em grande medida, dessa maneira. Uma cadeia interminável de projeções, expectativas, apostas, dívidas, equilibrando-se umas nas outras. Uma série de regras tentam obrigar as grandes corporações a manter alguma reserva, um certo resguardo. Mas em situações calmas, sobretudo quando esse tipo de garantia existe, um volume financeiro mantido imóvel soa como um atentado ao bom senso. Um pouco mais de risco permitiria investimentos que gerariam riqueza ao redor do planeta. E o planeta precisa de riqueza. Com uma concorrência tão cruel, quem fizer provisões para tempo de tormenta acaba ficando no meio do caminho.
O fato de supor um dinheiro que não existe soa assustador, claro. Mas não há outra maneira. Existe um efeito multiplicador da moeda que faz com que cada dólar impresso se transforme em dezenas na dita ciranda financeira. Deveríamos dizer, talvez, castelo de cartas financeiro. Uma que saia do lugar derruba o edifício inteiro. Isso não deveria ser tão alarmante quanto provavelmente fez parecer a forma em que foi expresso. O capitalismo sempre avançou aos trancos. São os ditos ciclos de crescimento, que culminam em crises, e assim por diante. Se não houvesse um sujeito como o sogrão, que especula entre o banco e você, não haveria esse dinheiro, o fictício, então não haveria crises. Mas tampouco haveria ciclos de crescimento, esses em que o emprego aparece com facilidade, em que você sai para viajar, em que você compra casas e põe os filhos em escolas melhores, em que portos, estradas e linhas de metrô são construídas.
O problema parece ser o dinheiro “fictício”. Mas o dinheiro, seja ele qual for, é uma espécie de encarnação do valor, qualquer valor que se possa comercializar. E valor, em geral, nada mais é senão algo que atribuímos a um objeto, idéia ou pessoa quando sentimos desejo ou necessidade por ele. Sendo assim, projeções esperançosas e ambiciosas para o futuro contêm uma carga enorme de valor, sobretudo porque determinam como os objetos do engenho humano estarão dispostos nos tempos vindouros.
Essas expectativas lidam com a incerteza, é claro, e só podem ser transformadas em valor do ponto de vista econômico através dessa figura mágica que é o dinheiro “fictício”. Essa suposição quanto ao valor futuro, essa incerteza inevitável, está na base do conceito de juro, assim como está na base do mercado de futuros. Juros e negociações futuras são estratagemas para internalizar a incerteza e o risco. Eles perdem, desta feita, todo seu mistério e toda sua temeridade, pelo menos em aparência. A incerteza começa a aparecer, dissimulada que é, sob a forma de uma moeda, um valor negociável. Pois é justamente com essa incerteza velada que negociaram você, o sogrão, o banco, a empreiteira e o governo da ilha.
Imagine agora um certo número de grandes jogadores do mercado agindo como você e seu sogrão, mas concorrendo como cães selvagens por um naco de carne, obrigados a se submeter a todos os riscos possíveis para não serem atirados fora pelos investidores. Muito bem, daí saem as crises.
PS: Este assunto me deu vontade de começar uma reflexão de caráter mais ou menos ontológico sobre alguns conceitos econômicos. Os argumentos estão sendo colocados no papel. Quando prontos, irão para o Cálculo Renal. Mas eu aviso.
Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.
Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.
Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:
À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.
E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.
Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.
A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.
Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…
Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.
Nos jardins, as cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…
Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.
Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.
Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.
Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.
Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.
Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.
Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.