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De alguém sem força para escrever

Sábado bendito, o mais aguardado de tempos, termo para uma semana atroz, dias de violenta fadiga, em que pareciam se derreter as estruturas fundamentais lá dentro, em que mesmo balbuciar o relato de nossos dias, à mesa do jantar, exigiu a valentia de um Leônidas, em que, por instinto, nos pusemos a perguntar de onde vem essa energia misteriosa que consumimos ao pensar, conversar, escrever.

Tem sido assim a semana, ou melhor, foi assim, porque ela já vai terminando, para nosso grande alívio. Uma série de feiras numeradas, em forma de ladeira íngreme a ser escalada, lodosa como depois de um pé d’água escabroso. Compromissos e obrigações cumpridos pela metade, sempre em marcha forçada, sempre pelo último suspiro de fôlego.

E mesmo assim, a cada momento, a questão segue a se esgueirar por entre a massa cinzenta falida e a branca esgotada: onde estará a fonte da força ausente? Como buscá-la de volta, conclamá-la a não desertar, obrigá-la a apresentar-se em uniforme impecável, conforme o acordado e necessário? Há coisas não precisa me dizer, já estou bem ciente, obrigado que não se controlam. As vias que nos alimentam, e falo aqui de energia mental, se abrem e fecham, assim é e pronto.

Mas o entorno, essa entidade tão nebulosa, embora concreta e pesada, não parece ter tanta consciência do inviável. Pior, exerce todo seu poder para obliterar nossa própria consciência. Uma lojinha, por exemplo, não pode deixar de vender seus legumes, creio eu, com base na alegação de que o asfalto das estradas se encontra um tanto esfalfado, désolé. Sendo assim, neste universo de planilhas de horário, prazos, vencimentos, neste mundo de anos que, ao passar, levam consigo a perspectiva de fazer tais e tais coisas adoráveis, que horizonte haverá para quem pretende, ou pretenderia, respeitar as idiossincrasias daquilo que, dormindo em nós, está além do controle!

Se tudo está marcado, determinado e, dependendo do ângulo pelo qual se olha, “precificado”, vá dizer ao famigerado entorno, ao universo de planilhas, ao mundo das datas idas, aos departamentos do Estado, aos gestores do mercado (ah, que saborosa vingança, na forma do cataclismo desses dias!), vá dizer a todos esses mamutes que a energia está em falta… Vá, pois, lhes pedir um minuto! Uma pausa para beber água!

Mas quando for fazê-lo, não se esqueça de me convidar para acompanhá-lo, para que eu possa rir quando eles rirem. Não com eles, é claro, mas da expressão em seus rostos, as máscaras contorcidas e afogueadas, explodindo em jorros de saliva, içada de gargantas que ainda exalam a pestilência nauseante de almas mal digeridas…

Desculpe rir do grotesco das figuras do tempo, da ordem, do mercado, do poder, da lei. Desculpe, sei bem que são fenômenos da mais grave seriedade, para o bem e para o mal. Mas é difícil escapar aos efeitos da imagem. Gordas figuras, pálidas como trutas descamadas, sacudindo-se em suas cadeiras, com as veias do pescoço saltadas e roxas, os olhos a ponto de escapar das órbitas…

Controle o asco e o despeito, faça o favor. Ora, não sou eu que estou nesse estado? Não era eu quem estava a ponto de redigir uma petição, para remeter aos responsáveis dos céus, na tentativa de obter a graça de um dia suplementar entre a quinta e a sexta (diego-feira?), só nesta semana, que eu prometeria de empregar no remanejamento de minhas funções mentais? Quem passaria pela humilhação perante a insensível realidade, em assembléia de suas manifestações mais presentes, seria ninguém menos do que eu mesmo, pois sim. Então se me ponho a rir, não vejo por que alguém ficaria ofendido.

Gargalhar no cadafalso é o último trunfo do condenado. Confunde as impressões do carrasco e as expectativas da turba sedenta de sangue. Tomba-se, sim, mas com um pequeno triunfo entre a corda e o pescoço. No meu caso, também é uma resposta às provocações de minha própria mente, ao menos sua parte inconsciente, que insiste em ficar passando diante de meus olhos, à noite, antes dos sonhos que esquecerei em seguida, a imagem de tantas coisas que eu poderia e deveria fazer, como se me convidasse a levantar da ilha de calor que é a cama neste outono rigoroso, para me por a tentar resolver um pepino, adiantar um projeto, publicar uma crônica.

Como se fosse possível, cabeça sardônica e cruel! O dia inteiro, tudo que eu poderia pedir seriam essas imagens e, pelos céus, juro que pedi! Mas elas me vêm quando nada posso com elas, deitado, prostrado, incapaz de deslocar a ponta do mais leve de meus dedos. Pois bem, eis minha resposta a essa semana moedora de neurônios, que carregou para campos mais férteis a energia de que tanto necessitei: uma risada amarga, alaranjada, querendo-se reverberante e ameaçadora, mas mais provavelmente tímida de cansaço.

É a reação mais orgulhosa que ainda está em meu poder, enquanto se aproxima um sábado de pleno alívio, porto abrigado depois de um mar de ondas grossas e ventos que rasgaram minhas velas. Se voltar a energia na próxima semana, pensarei em algo melhor. Até lá, asseguro que é com uma sinceridade fora do comum que desejo a você, bravo leitor que chegou ao final deste texto estrambótico, um excelente final de semana.

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É o queira ou não queira

Sabe Deus as coisas em que eu estaria pensando, se não pensasse tanto nas estações. Pelo visto, na hora de me atribuir uma personalidade, alguém cometeu um engano infeliz. A cabeça que estava reservada para mim deve andar apertando o crânio de algum desses muitos homens do campo que invejam a rotação acelerada das cidades e se perdem em devaneios de asfalto. Pois eu, que jamais vivi em cidade que fosse menos do que enorme, fui dotado com a vocação deslocada de caminhar a esmo pelo espaço vazio. Plantações, prados, veredas.

A que se soma essa coisa com as estações. Não só pelo ciclo, pela passagem do tempo, mas pela fisionomia que se imprime nas paisagens, por imposição, sem recurso, de um planeta que anda em círculos. E pela adaptação calma dos viventes, reféns de uma natureza que os precede em muito. Na falta dos horizontes vastos, recorro às ruas, às margens dos rios, aos parques recortados da virulência imobiliária. É pouco, mas é o que há.

Por muito tempo, quis me considerar uma alma, como eu dizia, “do verão”. Pelos dias mais claros, ligeiramente no Brasil, dramaticamente aqui. Porque sou um amante da luz, embora me sinta mais vivo nas madrugadas. Também, ao menos em parte, pelo calor, que quando extremo me pareceu sempre um flagelo mais suportável do que o frio.

Meu partidarismo estival era tão intransigente que eu antagonizava até com Tom Jobim. Sim, o próprio, confesso. Como ousa, maestro, associar o fim do verão, com aquelas enxurradas medonhas, a uma promessa de vida no coração? Para mim, as águas de março marcavam era o início dos tempos de lã, escuridão e resfriados. Evidente que, como sempre, eu estava errado. Simplesmente não entendia o principal, quase óbvio, cego de convicção.

A esperança de que fala a canção nada tem a ver com os meses seguintes. Não exprime qualquer alívio com o fim da fornalha. Como pude não perceber o sentimento difuso, involuntário, produzido ao pé da garganta, uma esperança de vida sem quê nem porquê! A doce satisfação do estio que vai se encerrando ignora, mesmo nas terras mais inóspitas, as projeções para o futuro. Vão secar as folhas, vão cair, mas o espírito nem se lembra.

Não são os mais belos do ano, título reservado à eclosão súbita da primavera, em abril. Mas os dias finais do verão produzem, e isso é uma certeza, o ar mais carregado de vibrações. São ondas de emissor impreciso, talvez o próprio sol, talvez a terra já cansada do sol, talvez as árvores e as pessoas sorvendo os últimos raios que vão descer neste ano. Seja o que for, essas são as duas semanas mais agradáveis que há.

Acontece que o final do verão, nesta metade do mundo, não chega em março, mas em princípios de setembro. São esses dias de agora, em que as famílias voltam das férias e as crianças reencontram colegas e carrascos na sala de aula. É pouco tempo, duas semanas no máximo. Há que aproveitá-las, nos intervalos das enrolações burocráticas que alguém, gerações atrás, resolveu grampear nesta época, acredito que por recalque.

Eis o espírito com que vou redescobrindo a cidade. Nem é preciso esforço, dou logo com um sem-número de detalhes saborosos, efêmeros como cada estágio da vida. É assombroso, por exemplo, como a cor das fachadas muda de um mês para o seguinte. Eu bem queria apertar a mão de Monet, que abriu nossos olhos para cada variação de luz que incide sobre o entorno, sobre os alicerces de nossa vida! O alaranjado nas pedras de Notre-Dame, ontem, não era como o azul esmaecido de novembro. Mesmo as fagulhas de entardecer, que balouçam nas marolas a cada barco que passa, como em qualquer outro mês, agora cintilam em tom mais pungente. Ainda prata, mas um prateado diferente, esse que está aí, vejo, vivencio, mas não ouso descrever.

Se eu vivesse no campo, em outros tempos, certamente não acharia poético o brilho das marolas. Sem dúvida, estaria ocupado com a colheita, cortando lenha para garantir o inverno, separando a ração dos animais. Fora de questão, essa história de caminhar pela cidade em busca de um verão que já se foi. Não faria o menor sentido correr atrás das estações. Elas pesariam sobre mim, inescapáveis, sem interesse pelas minhas preferências.

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O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

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