cidade, costumes, crônica, descoberta, Filosofia, frança, guerra, história, humor, imagens, morte, opinião, paris, passado, passeio, prosa, reflexão, saudade, tempo, trabalho, transcendência, trânsito, viagem, vida

Um eu, um ambiente, mil objetos (Mudar de endereço, parte 1)

Para quem passa o dia correndo atrás de assunto, nada melhor do que uma mudança. Vai ver, é por isso que gosto tanto. Aos dez anos, eu acumulava memórias de quatro endereços em três cidades; não é à toa que a estabilidade do decênio seguinte foi tão incômoda. Assim, depois de diplomado e empregado, alguma força interna me empurrou de novo, agora por conta própria, para o deslocamento: novos bairros, cidades, países – e aqui já faço projeções, sonhando com os cantos em que posso vir a me instalar…

Essa tal força foi tão poderosa que me levou a rasgar, mais de uma vez, diplomas e empregos, em nome desses saltos que levam móveis adiante e deixam paredes para trás. Não quero com isso inventar uma história de que eu teria alma de andarilho ou coisa assim. Eu bem que gostaria, mas me falta o espírito de aventura. Meu caso é outro. É uma espécie de pânico. É como se, aos poucos, eu me tornasse um só com minha casa e, nesse processo, murchasse… não, estou me explicando mal. Vou tentar de outro jeito.

Gostaria muito de conseguir conceber meu endereço como só o lugar aonde chega minha correspondência. O imóvel que ocupo, o andar, a porta, a área útil… Como se fosse um acaso, um dado do mundo concreto em que esbarro sempre que levanto de manhã, como as ruas que me conduzem ao escritório e as contas que devo pagar. Se eu pudesse acreditar nisso, ele seria um, eu seria outro, numa relação tão casual quanto a de um tigre com um tamanduá no zoológico.

Mas sempre que tento pensar assim, acabo por perceber que estou mentindo. Pior: mentindo para mim mesmo, o que ultrapassa a desonestidade e cai diretamente na precipício da tolice. Afinal, se me perguntam quem sou, só posso dar como resposta o lugar em que moro, como chego no trabalho, onde compro minha comida, o que vejo todo dia, quem são meus vizinhos, que quadros pendurei, como organizo minha biblioteca. Então que raio de separação medíocre é essa?

Se é verdade que o lar é a fortaleza de um homem, também tenho de aceitar que ele é o centro de meu campo de batalha. É minha cabeça-de-ponte para dominar a cidade. É o fim das minhas linhas de abastecimento. É o quartel-general de meu repouso no fim-de-semana e ponto de lançamento para as expedições no resto do tempo. É meu almoxarifado e meu arsenal.

Mas o oposto também se impõe: sou aquele que frequenta os cinemas do bairro. Que colocou as prateleiras ao lado da porta, longe da janela. Que escolheu as cortinas grossas, garantindo a obscuridade para o sono de domingo. Eu sou a vista que encaro quando as ideias não vêm, sou a porta emperrada do banheiro e a infiltração indetectável na cozinha. Sou o bom-dia que dou a contragosto aos vizinhos; sou a garagem apertada demais; sou o comércio de rua que persiste, embora moribundo.

E, no entanto, o pânico. A certeza de que haveria outras perspectivas e outras identidades, se não fosse essa, já, tão enraizada. Os desejos em conflito: aprofundar ao infinito a dominação deste canto? Ou atirar ao passado essas páginas e esse ser, para começar uma nova infância do outro lado da cidade? Construir-se demais parece, às vezes, um múltiplo assassinato de potenciais; mas a repetição da ruptura arrisca deixar pouco mais do que escombros, quando tudo se acabar. Pânico, sim, mas junto com a reverberação de um renascimento. Sem que, para isso, seja preciso uma morte.

Ao contrário! Desmontar um apartamento é cansativo, mas é das maiores injeções de vida que podemos receber. Recuperamos do fundo das gavetas os folhetos e badulaques que tiveram importância há anos, mas já caíram no esquecimento. Nesse instante, tomamos consciência da vida que fomos (porque não levamos uma vida, somos uma vida), e essa consciência é tão forte que parece nos fazer revivê-la, no instante mesmo em que apagamos suas marcas e a estrutura de existir que ela tinha criado.

Em seguida, vem todo o esforço de transportar os fragmentos de si mesmo. De uma porta a outra, lá se vão objetos e memórias, dentro de caixas que estampam – na verdade, gritam – o provisório, o interlúdio, o desmanche de toda uma identidade. É um parto traumático e ao mesmo tempo emocionante, embora muito menos que o primeiro, o original, que nos colocou neste mundo de potenciais frustrados e realizações subestimadas.

Só depois é a nova vida, nova existência, uma infância em que precisamos conhecer outro supermercado, outra agência de correios, outros vizinhos; onde precisamos aprender a nova distribuição das gavetas e corredores, onde ainda tateamos quando acordamos no meio da noite e queremos assaltar uma geladeira que ainda não sabemos tão bem onde está. É assim que reconstruímos nossas perspectivas e nossa identidade, nosso ponto-de-vista sobre a cidade e o mundo, sobre nós mesmos e nossos caminhos.

Pânico e coragem são as palavras que resumem as sensações de uma mudança. A difícil e inevitável escolha daquilo que vai ou fica, daquilo que merece a lixeira ou a recuperação das cinzas do esquecimento. Parte do que nós somos está na relação que estabelecemos com objetos e ambiente, e que objetos e ambiente estabelecem conosco – porque, ora, eles também têm seu poder de escolha. Ao deitar fora uma parte da maldita papelada, deitamos fora também uma fração da forma de viver que levávamos (ou éramos). Em outras palavras, decidimos ser outros.

Simplificando: como é difícil se ajustar a uma casa nova! Mesmo quando sei que é melhor do que a antiga, que nela provavelmente serei mais feliz, que deixo para trás uma série de problemas que jamais teriam outra solução. Mas é como é: estou renascendo sem ter perecido; e acredito que mais essa estranha experiência pode render muito pano pra manga, o que é sempre positivo para este pobre perseguidor de assuntos.

Padrão
arte, conto, costumes, crônica, domingo, escultura, literatura, prosa, reflexão, transcendência, vida

O repouso do general

Quando soube que estariam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, concebeu o mal-estar, dramatizou a doença, conquistou a solidão. Livres as paredes para o silêncio, os salões entregues à vibração do tempo baldio, fremiu e suspirou de alívio e apreensão.

Estacou por instantes sem volume. Quando o sangue voltou aos dedos, entregou-se à tarefa solene de desabotoar a farda, pendurá-la no cabide, encerrá-la na escuridão do guarda-roupa. Puxou dos ombros os galardões cheios de estrelas, apertou-os na palma da mão e os depositou na gaveta. Fora de vista, mas não de alcance. Para o caso de precisar buscá-los às pressas.

Seria lá o repouso do general. Nada de respostas, nada de comandos e decisões. A camisa de algodão lhe caía esquisita, mas agradável. Como trocar de pele.

Respiração caprichada, caminhou a passos arrastados até a poltrona. E se instalou, rijo, como numa sala de interrogatório. Conforme o previsto.

Só então ousou um lançar de olhos para o volume que trazia entre as mãos. O objeto grande, pesado e viscoso, coberto por um pano branco tão limpo, liso, fragrante – por que não dizer: imaculado. Tantos anos à espera do momento de encarar a carga, tantos anos, pareciam uma vida inteira. A exemplo da vida, não tinham começo na memória. Que esforço, que heroísmo, dar a crer aos outros que aquilo, aquela coisa, era natural. Que sabia o que fazia. Que vagava pela casa carregando um pacote branco com algum propósito. Missão misteriosa, mas incontornável.

Agora que estavam todos fora – demônios, reis, colombinas, palhaços –, era o momento de esclarecer tudo de uma vez por todas. Teve orgulho da coragem com que fitava o volume fantasmagórico. As mãos, porém, suavam. O cotovelo empurrava os dedos para o pano, o ombro os retinha. Homem e objeto, como conjunto, entravam em sintonia com o tempo paralisado.

Sentiu-se ameaçado, espantou-se, puxou por reflexo o lençol, violento. O tecido voou como espectro e pousou como pomba. Ficou espalhado sobre o assoalho, inerte.

Diante de seus olhos, o volume descoberto. Como antes, não sabia o que era. Não podia descrever a forma. Irregular e perfeitamente simétrico. Opaco ao extremo. Difuso, fora de questão. Solidez opressiva que se esvaía rumo ao chão. Por hábito, desandou a dar nomes: é o mundo, é minha alma, é o passado.

De súbito, faltou fôlego. Cessou a confusão do batismo cego. Poderia decidir-se por qualquer daqueles nomes, ou qualquer outro; subsistiria o mais terrível dos atributos, sempre. O que trazia nas mãos, nelas teria de seguir. Deixasse cair, é certo que espatifaria. O ar seria tomado de imediato pelo vapor venenoso do mundo, da alma, do passado.

Sufocaria. Pereceria. E não conseguia escolher entre o sacrifício sumário, mas horrendo, e a tortura vitalícia de carregar ainda, diante de todos – demônios, reis, colombinas, palhaços –, o volume abjeto, a massa amorfa, coberta pelo mesmo pano branco outrora imaculado, agora encardido com a poeira das cidades.

Na fúria da indecisão, lembrou-se das insígnias ocultas. Esticou-se com cuidado reverente. Não foi à gaveta, mas ao lençol, ainda enrugado a seus pés. A decisão estava tomada sem que alguém a tomasse.

Mesmo para a alma perturbada, à beira do escapismo, era patente. Sublinhavam-no as lágrimas, ao romper o portal. O peito se ergueu em revolta, soluçava e recusava o ar. Debaixo da mortalha, o objeto estremeceu. Poderia deslizar a qualquer instante. Mas não havia controle para os espasmos do corpo entregue.

De uma porta que se cria inexistente, entrou a desconhecida. O susto invocou o sangue das faces e ressuscitou o general. As estrelas das divisas tinham aparência ridícula sobre o algodão dos ombros, mas expunham uma imposição de respeito.

Só não se entregava à deferência o rosto ainda afogueado. A desconhecida flutuava através do salão. Encarou-o e, com expressão indiferente, perguntou o porquê das lágrimas. A resposta saiu refletida, viril como cumpre replicar:

— Não sei… Não sei.

Com isso, ergueu-se e se pôs em marcha, carregando seu fardo, até a escrivaninha do quotidiano.

Padrão
arte, Brasil, cartola, crônica, descoberta, flores, imprensa, música, paris, reflexão, saudade

O que dizem as rosas


É engraçado. Ainda ontem, entreguei uma crônica para ser publicada no próximo fim-de-semana, e já agora percebo o quanto está permeada de mentiras. Mentiras, bom, talvez seja um termo brusco demais. Mas são certamente inverdades. No texto, desenvolvo as impressões que me causou a visão de uma mulher que cheirava uma rosa com o semblante pétreo de quem encarou Medusa. Isso aconteceu, sim; e é verdade que o fato desencadeou em mim uma corredeira de pensamentos. Todo o resto que escrevi não passa de suposições.

Ora, supor é diferente de inventar, no sentido de criar eventos, ficções, quiçá mentiras. A suposição é uma atitude legítima, provavelmente o atributo fundamental da mente humana, princípio de todos os demais. Só que implica certos riscos. Pode acontecer de alguém se perder nas próprias conjecturas, quando se entrega sem ressalvas às libertinagens do espírito. Resultado: acaba tomando por verdadeiras coisas que não o são. Meras hipóteses, sintetizadas por uma imaginação sem vergonha. Acho que foi o que houve comigo.

Não vi quando ela se agachou para recolher a rosa. Apenas supus que ninguém compraria uma flor tão pequena, amassada, indigna. Ela foi certamente resgatada do olvido da calçada. Tampouco virei o rosto para acompanhar o gesto final de desprezo da mulher, atirando a planta de volta a seu chão. Sei, de alguma maneira inexplicável, que ela o fez. Mas não vi. É inconcebível, ao menos para mim, que alguém mantenha a expressão tão rija ao sorver o perfume de uma flor, sem depois atirá-la à distância.

Finalmente, no momento em que a cena se desenrolava, não pensei, como escrevi na crônica, no milagre da técnica humana que traz flores – e, aliás, frutas – à Europa em pleno inverno. O raciocínio existiu, por certo, senão jamais poderia ter sido redigido. Mas foi posterior, fruto já do conforto do aquecimento, com um copo entre os dedos. Na hora, a autêntica, o que me veio à mente foi coisa muito diversa.

No instante em que o nariz da mulher roçou a ponta das pétalas, lembrei-me foi de Cartola. Da mais célebre de suas estrofes, dentre tantos versos fabulosos:

Queixo-me às rosas / Mas, que bobagem, as rosas não falam, / Simplesmente, as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai!

Antes que interpretem a lembrança como um elogio à amazona, garanto que não foi dela que a flor roubou seu perfume. Que fragrância pode emanar da mulher que acantoa uma flor enquanto a cheira? Aquela, do alto de seu salto agulha, exalava no máximo a boa meia hora que passou no metrô abarrotado.

Lembrei de Cartola porque sempre me lembro dele. Não sei por que isso acontece. O pai da Mangueira ronda minhas especulações como um fantasma. Visitando o Brasil, constatei o banzo de que sofro ao tentar acompanhar a letra de Cordas de Aço e não conseguir porque, no meio do caminho, tinha a voz embargada. Por quê? E por que, de tanta boa música no Brasil que saltita em torno de rosas e flores, como uma ciranda temática, fui lembrar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti?

A mulher fria cheirou a rosa sem cheirá-la, sem tentar queixar-se a ela, nem entender de onde vinha o perfume. Mas, curiosamente, foi graças a ela que entendi em que palavra se concentra a força arrasadora dessa estrofe. Pois afirmo, sem recurso: está no advérbio. Ao cravar um singelo “simplesmente” no meio de seu poema (sim, asseguro que é um poema), o eterno Angenor de Oliveira fez de um samba, monumento. Uma mera palavra concentra as instruções para cantar – e tocar, claro – a música inteira. Pena que a maioria dos intérpretes não o perceba.

O próprio Cartola gravou sua música com um tom tão prosaico, que derrubaria mesmo a francesa que não sabe cheirar flores. Ele canta As Rosas Não Falam no tom exato em que qualquer mulher acredita no que ele diz. A menor variação transformaria o discurso em cantada barata: “as rosas exalam o perfume que roubam de ti, boneca”. Se, no lugar do “simplesmente”, o autor cometesse algo como “inversamente”, “ao contrário” ou “em vez disso”, a composição inteira estaria morta. Mas aí não seria o gênio, não seria Cartola.

Eis a verdade sobre o que pensei, de pé na calçada, tomando chuva, depois que perdi de vista a infeliz desalmada. A lembrança se reavivou de repente, enquanto eu pensava outras coisas, como queria Henri Bergson. O resto são elucubrações. Incrível como é preciso aceitar um pouco de mentira para produzir textos, evocar sentimentos, transmitir verdades.

Pois sim, a verdade vem sempre entremeada de incorreções e autênticas mentiras. O mesmo vale para a memória. A pureza, queremos crer que está em algum canto, elegemos-lhe um santo, construímos um altar para adorá-la. Admito que é ingenuidade minha, resolver assim depositar na autoridade da música de Cartola toda minha ilusão de pureza. Enfim, é o que é.

Mas vou limpar a mente / Sei que errei, errei inocente.

Padrão