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Amazon 451

Mais uma vez, literatura e poder. Talvez a mais antiga história de amor e ódio. Poetas e imperadores, ditadores e romancistas, jornalistas e magnatas, desde sempre, e reciprocamente, se acusaram, bajularam, subornaram, degolaram, degredaram. Stalin e Luiz Napoleão preferiam ter os gens de lettres do seu lado, isto é, alguns degraus abaixo. Se não fosse possível, Guiana ou Sibéria neles. Savonarola, que não tinha tempo a perder, queimou livros e com eles seus autores, se estivessem por perto. Adolf , síntese das maldades concebíveis, também recorria às fogueiras para o papel, mas quem empunhava a pena ia para Dachau. O monge malvado de Umberto Eco envenenava os leitores incautos, mas isso num ambiente um tanto restrito e, cabe lembrar, ficcional. Médici e Geisel asfixiavam as editoras e exilavam os autores, o que dava resultados medíocres, porque os pentelhos insistiam em continuar escrevendo, mesmo na Europa. Os exemplos, bem se vê, são intermináveis.

Mas eles têm uma coisa em comum: dava um trabalhão suprimir os livros indesejados… Todo cinéfilo que se preze sabe a temperatura em que o papel entra em combustão espontânea: Fahrenheit 451. Na distopia futurista imaginada por Ray Bradbury e filmada por Truffaut, o governo autoritário e hedonista que tomaria de assalto os EUA fazia um esforço sobre-humano para encontrar volumes escondidos e reduzi-los a cinzas. Brigadas de bombeiros, em carros que deviam parecer futuristas à beça, mas hoje têm um ar terrivelmente arcaico, cruzavam as cidades atrás de infratores. Tudo em nome da saúde mental da população, é claro.

Mas era uma tarefa ingrata. Como encontrar e suprimir todos os livros do país? Não é tão difícil esconder um volume. Tampouco é trabalhoso fazer um punhados de cópias e distribuí-las por aí. Mesmo assim,  perseguiam-se os insurretos. Porém, eis a mensagem de esperança tanto do livro quanto do filme: amantes da literatura sempre existirão, nem que precisem aprender obras inteiras de cor para resgatá-las no retorno à democracia. É uma ideia e tanto, que enche de coragem quem se opõe a tiranias (a princípio, todo mundo que não se beneficia de alguma). Acima de tudo, a moral da história reproduz uma crença não de todo falsa, em que pese uma infinidade de escritos da Antiguidade terem sido perdidos: nunca se poderá apagar toda a literatura, a poesia, a história, a filosofia, a ciência. É um patrimônio rico e volumoso demais.

Agora pulemos para 2009. Como todo mundo, não pude deixar de sorrir amarelo. A Amazon, fabulosa livraria virtual, que por sinal frequento bastante, e proprietária do Kindle, a bugiganga sensação do momento, não se entendeu com os herdeiros de George Orwell (ou com seus editores, sei lá eu). Livreiros e representantes não chegaram a um acordo quanto aos valores que cada um embolsaria. Em outras palavras, nada de Winston Smith na bugiganga da Amazon. Mas os textos já estavam sendo vendidos e, claro, comprados no mundo inteiro por fãs da boa literatura e das boas distopias. Aliás, como acontece todo ano, e isso é talvez o mais irônico da situação, professores já tinham exigido dos alunos a leitura de 1984, para despertar neles o amor à liberdade de expressão.

Pois o erro foi, de fato, da Amazon. Vendeu o que não era pra vender e isso não podia continuar assim, que os advogados já salivavam à porta. Que fez ela então? Ora, nada mais simples: à distância, apagou os livros de todos os Kindles que os tinham baixado. E lá se foram os romances sobre manipulação do passado, controle de consciência e tudo mais. Não avisaram, não pediram licença, mas pelo menos devolveram o dinheiro. Menos mal. E a piada natural, que todo mundo já fez, é: Big Brother não quer, Big Brother não deixa. Nada de ler 1984 no meu produto: ele vai sumir como se nunca tivesse existido. Quem diria, Stalin vendendo livros pela internet…

Só ficou faltando a gargalhada triunfal dos detratores da rede. Noves fora, a previsão de Orwell foi mais acertada do que a de Bradbury. Livrar-se de livros inconvenientes não exige corporações de bombeiros, nem fogo, nem polícia secreta, nada. Basta um acordo de bastidores e pimba, desapareceu o problema. Sabe aqueles livros ou discos que são o orgulho de uma meia dúzia de colecionadores apaixonados? Viraram coisa do passado. O poder não precisa mais correr de banca em banca recolhendo jornais. Basta apagá-los e é como se não existissem. Ou melhor, não existirão mesmo. Não existirão mais.

Pode parecer estranha a comparação entre histórias de governos totalitários e o caso de uma empresa que, por maior e mais importante que seja, está longe de ter o alcance de um aparelho estatal. Bom, pode até ser. Mas enfim, concorrência monopolística à parte, deveria causar um certo desconforto saber que uma corporação pode, para aplicar uma decisão judicial, rasgar e deitar fora, de uma hora para outra, centenas de páginas eletrônicas em milhões de telas, de bilhões (desculpe o exagero) de leitores, ao redor do globo. Ou será que estou sendo muito dramático?

Anúncio oficial, leia com atenção: podemos ficar tranquilos. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É assim que devemos pensar. Sim, a Amazon apagou Orwell do Kindle. É verdade. Mas nada de comparar a ação da empresa com os livros distópicos do romancista. Não faz sentido. Não se pode pensar de outra forma. Eis o argumento. Acredite nele. Orwell falava de governos totalitários. A Amazon é uma corporação monopolista, nada mais. Diferença monumental. Eis a verdade. Podemos ficar tranquilos.

Padrão
Brasil, descoberta, história, imprensa, jornalismo, Nassif, opinião, Politica, reflexão, reportagem, trabalho, Veja

Um repórter, finalmente!

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Interrompo o que vinha escrevendo, mais uma crônica fortuita sobre a vida por aqui, para publicar algo sobre um assunto que não sai de minha cabeça há dias. Sem rodeios: estou falando da série de artigos em que Luís Nassif faz um ataque direto à temida, mas há tempos desacreditada, revista Veja. A polêmica me impressiona vivamente. Ora, por quê, se os textos do jornalista não contêm nada de particularmente novo nem sobre a Veja, nem sobre Daniel Dantas, nem sobre Diogo Mainardi (os dois alvos principais)? Muito bem, quero aqui expor meus motivos.

O que me chama a atenção, no caso, não são as acusações de Nassif. Honestamente, elas não me surpreendem nem um pouco. Há pelo menos dez anos, quase ninguém no meu círculo de conhecimentos lê a revista com regularidade; quem lê, geralmente o faz como se consultasse um barômetro das picuinhas empresariais e governamentais do Brasil. Eu mesmo deixei de passar os olhos pela Veja quando ainda estava no colégio, cansado de afirmações atiradas ao vento, sem atribuição de fontes, e naquele tom nervoso que sempre me pareceu de uma vulgaridade vergonhosa. Depois, acompanhei à distância a decadência do periódico: as capas com temas irrelevantes, os outdoors beócios, a dissipação da credibilidade.

Meu último contato com a revisa foi por ocasião do plebiscito da venda de armas. O uso pouco rigoroso (estou sendo bem eufemístico) das estatísticas foi a gota d’água. Percebi que a direção de Veja tinha perdido o senso de realidade e o respeito pelo público. Já vivendo na França, fiquei sabendo da embrulhada envolvendo um editor da revista e John Lee Anderson, um dos maiores jornalistas do mundo, e cheguei à conclusão de que as exalações do rio Pinheiros podem estar afetando a mente dos funcionários da editora Abril. Hoje, acho que, entre os leitores de Veja, sobraram apenas aqueles que desejam ver reproduzidas suas próprias opiniões; ou, no máximo, pessoas que sentem uma necessidade enorme (não é meu caso) de receber, toda semana, uma revista qualquer para ler, e consideram (não sem razão) os concorrentes da revista da Abril ainda piores do que ela.

Quanto a Nassif, eu pouco sabia sobre ele. Por uma, sabia que toca bandolim, o que não confere a ninguém particulares habilidades de reportagem. Sabia que se formou na ECA-USP (acho que estudou também na FEA-USP, mas posso estar enganado), que é mineiro de Poços de Caldas, e trabalhou na Folha de S. Paulo, no Estadão e na própria Veja. A melhor informação que eu tinha sobre ele era seu prazer diabólico em torturar jornalistas: quase sempre mandava sua coluna da Folha depois do horário combinado e muito maior (ou menor) do que o espaço disponível. Eu realmente não tinha idéia de sua experiência no chamado jornalismo duro; traduzindo, eu não sabia se (ou que) ele tinha sido repórter.

Foi e ainda é, pelo visto. E finalmente chegamos ao que me impressionou nos ataques do jornalista à poderosa revista. Foi provavelmente a primeira vez que li um texto produzido no Brasil, pelo menos durante meu período de vida, que tem a aparência e todos os aspectos de uma verdadeira reportagem. Não quero ofender os repórteres brasileiros, por favor não me leve a mal: mas o que entendemos por reportagem no Brasil, e estou falando da prática, não da teoria, são textos relativamente curtos, sem seguimento, pouca menção a documentos, dificilmente uma citação de fontes, rara clareza do que está em jogo.

Isso não é culpa dos jornalistas, evidentemente. Os veículos brasileiros, acredite, são pobres, têm cada vez menos repórteres especiais (aqueles que não fazem nada de específico e têm como função investigar fatos que se tornem os grandes furos que sustentam uma empresa jornalística), não conseguem gastar com viagens, fundamentais para a produção de reportagens longas e rigorosas, não têm músculo para matérias em série (certos jornais simplesmente “não fazem”, se recusam, como se fosse uma determinação da casa: já ouvi isso da boca de um editor), enfim, não podem dar espaço para textos bem desenvolvidos.

O resultado é que as grandes reportagens brasileiras consistem em entrevistas que vêm bem a calhar para os entrevistados, como as de Getúlio Vargas para Samuel Wainer, Pedro Collor para a Veja e Jader Barbalho para a Folha, para citar as que são provavelmente as mais conhecidas. Ou, pior ainda, os dossiês entregues prontos por gente interessada (Nassif fala disso em relação à Veja, mas a prática é muito disseminada), que os veículos de comunicação só têm o trabalho de, se tanto, apurar rapidamente (eis um advérbio de duplo sentido no jornalismo) e colocar no formato certo. O último método consiste no “jornalista esperto”. Os de televisão usam câmeras escondidas a torto e a direito, os da mídia impressa se fazem passar, por exemplo, por consumidores interessados em algum serviço, e assim se consegue chegar a alguma denúncia bombástica.

Outro motivo para essa pobreza de investigação na reportagem brasileira é o nível de exigência do público, reconhecidamente baixo. Um leitor da Veja, por exemplo, não faz a menor questão de apurações, citações de fontes e documentos, nada disso. Só quer as diatribes virulentas, e as recebe com juros. Os demais estão contentes em ouvir, digamos, as denúncias do falecido Toninho Malvadeza contra sei lá qual líder do PMDB, ou as suspeitas que pesam sobre alguma privatização do governo Fernando Henrique. Uma apuração rigorosa e demorada de qualquer dessas informações seria custosa e traria pouco benefício: a concorrência daria a matéria antes, o público não conseguiria reconhecer a diferença de qualidade dos materiais. Resultado, o veículo que apurasse terminaria com um tremendo abacaxi entre as mãos.

Para aprofundar um pouco: por que o nível de exigência do público é tão baixo? Difícil responder, mas arrisco algumas idéias: em primeiro lugar, é um público estreito. Pouca gente lê jornais no Brasil, efeito do alto índice de analfabetismo funcional, da história curta do nosso jornalismo e, num círculo vicioso, da baixa qualidade do produto oferecido. Além disso, o bom jornalismo brasileiro (Última Hora, o antigo JB, o antigo Estadão, a revista Diretrizes) sempre foi abafado pelo mau jornalismo (O Cruzeiro de David Nasser e tantos outros que mais vale não mencionar) e pela censura, que levou à morte, ao exílio ou ao silêncio alguns dos nossos melhores repórteres, da ditadura de Getúlio até nosso último regime semi-totalitário (que é como a jabuticaba, só tem no Brasil). Finalmente, nosso país começou a ter uma imprensa muito tarde, no século XIX, e o advento do rádio e da televisão nos apanhou sem uma tradição de leitura. Foi fatal.

Quando vim morar fora, em 2006, Nassif ainda era colunista da Folha. Sua saída me surpreendeu, mas também me ajudou a compreender algo interessante. Naquelas duas mirradas colunas da página três do Caderno de Economia (ah, desculpe, Dinheiro), ele jamais poderia publicar a reportagem enorme e tão completa que vem colocando em sua página de internet. Pois bem, viva a internet. Muita gente discute se ela vai acabar com o papel, e a resposta é um evidente e sonoro “Não”, seguido, talvez, de uma risada. Mas as possibilidades do mundo online são, de fato, fantásticas, como dizem. Compensam e colocam em xeque uma série de vícios e limitações da dita “imprensa tradicional”: ela terá de se adaptar, e acabará conseguindo. Por outro lado, é curioso que, há anos lendo blogs e páginas de todo tipo, só
agora eu me depare com algo que me entusiasma, ao menos no que diz respeito ao jornalismo. E, curiosamente, vindo de alguém que fez carreira na dita “imprensa tradicional”. Sem contar, a propósito, a enorme contribuição, muito bem aproveitada por Nassif, das caixas de comentários e contribuições por e-mail, fontes de informações que repórter nenhum deve negligenciar, muito mais ricas do que as cartas que chegam a uma redação.

Concluindo: é uma alegria enorme ver uma reportagem de verdade na minha língua natal. Fez-me lembrar um livro excelente para quem se interessa por jornalismo: The Elements of Journalism, de Bill Kovach e Tom Rosenstiel. Tenho certeza absoluta de que essa obra foi editada no Brasil. Nassif contextualiza o que diz, expõe claramente em que ponto ele próprio está envolvido no que relata, publica cópias dos documentos que comprovam suas afirmações, dá nomes a todos os bois. Não seria nem o caso de parabenizá-lo por isso. Em teoria, ele nada mais fez, senão o trabalho do jornalista.

Para reduzir um pouco o tom laudatório do texto, mando uma crítica: alguns abusos nos adjetivos comprometem o tom geral de seriedade das denúncias. Mesmo assim, se, por um lado, ao desmascarar as práticas pouco ortodoxas de Veja (repetindo: muitas delas já bem conhecidas) Luís Nassif presta um serviço ao público leitor brasileiro, por outro, ao fazê-lo como faz, ou seja, através de um trabalho jornalístico bem conduzido, ele presta um serviço à nossa imprensa como um todo. Para mim, isso é o mais importante da série.

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