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Golpes e desejos

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Com agradecimentos aos amigos Camila Pavanelli de Lorenzi, Bruno Alvaro, Marcio Miotto e Bernardo Jurema pelo tempo que dedicaram a ler e comentar este texto. Muitas das ideias contidas aqui vieram desses comentários. Nem preciso dizer, mas os erros, imprecisões, chutes e outras tolices são culpa toda minha.

Seria tentador demais começar este texto cometendo a milionésima paráfrase daquela famosa abertura do Manifesto Comunista, com o espectro rondando a Europa. Mas isso passaria a impressão errada: no texto de Marx (e daquele outro alemão), tratava-se de uma força virtual que se atualizava, apontando como potência para um futuro. Ao contrário, se também tem um fantasma que passeia sorrateiro Brasil afora, é o fantasma de um cadáver insepulto, uma morte que não se consumou, um trauma que ficou por superar. É claro que estou falando da ditadura e do golpe que a iniciou.

Até aí, nenhuma novidade. Acontece que quem diz fantasma, de um jeito ou de outro diz fantasiar. E quem fala em fantasiar, inevitavelmente, fala de desejo. Eu poderia agora escolher uma fórmula chocante e afirmar que, sabendo ou não, existe no Brasil um desejo difuso de golpes e ditaduras. Seria verdade, até. Mas não é bem assim que o fantasma age; em vez disso, ele opera sobre o desejo porque se imiscui nele, se introduz onde não foi chamado e sem ser percebido. Assim, quando um desejo vai tomar forma, constituir um objeto, traduzir-se como expressão, enfim, quando vai agenciar-se, a presença sorrateira do fantasma o modula um pouco, lhe confere um outro alcance, uma outra coloração.

Sem levar em conta esse modo de agir do nosso fantasma, corremos o risco de ficar andando em círculos ao tentar dar sentido ao que acontece hoje no país. Passamos completamente ao largo do problema se nos contentamos em perguntar se o que se prepara nas sombras do poder é um golpe ou não. Essa pergunta pressupõe uma consciência muito clara dos atores sobre o que estão fazendo e aonde querem chegar. Hoje, não é esse o caso, porque o que cada ator quer (derrubar o governo, manter o governo, chegar ao governo, aniquilar um partido…) e como ele age (protestos, conluios, publicidade, textão) são duas coisas que estão descoladas, porque entre elas age o fantasma.

Abstraído esse detalhe, toda a questão da derrubada ou não do governo Dilma poderia ser resumida ao problema das zonas cinzentas entre o político e o jurídico: a fraqueza e falta de apoio parlamentar do governo por um lado, a necessidade de encontrar uma justificativa para um gesto violento e as negociações para o período posterior, por outro. Tentei tratar disso no fim do ano passado e acho que esse ponto está muito bem destrinchado neste texto de Moysés Pinto Neto. Mas não é assim, infelizmente, porque nosso momento de soberania em disputa e indecisão institucional inclui um elemento a mais: o fantasma e o desejo do golpe.

1: Desejo de Golpear

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Obviamente, esse nosso fantasma do golpe (que, na maior parte do tempo, como todo fantasma, permanece invisível e só sugestionado) se deixa perceber com mais facilidade no grito de “não vai ter golpe” que soltam os defensores do governo – ou, vá lá, da continuação do atual governo, por falta de lei que o substitua apropriadamente. Aí está explícito: é o discurso de uma esquerda que, na sua própria visão, se recusa a aceitar que venha um novo 64. Mas é uma recusa modulada, como veremos (e deixo para o final porque é a parte mais importante e complexa).

Antes disso, porém, é preciso ter claro que o mesmo fantasma age também nas demais vozes. Desde as mais evidentes manifestações de saudosismo pela ditadura, que são muito maiores do que deveriam, mas não tão grandes quanto pensamos (como demonstram pesquisas conduzidas por Pablo Ortellado), até estranhos editoriais que repetem, quase ipsis litteris, conclamações golpistas – essas sim, inequivocamente – de outras eras.

É interessante, por exemplo, observar como, no caso de um fantasma do golpe, é difícil distinguir o desejo do medo. Assim, mesmo de pessoas que, com toda honestidade, participaram da última manifestação contra Dilma Rousseff com o espírito mais democrático e legalista possível, tenho ouvido a crença numa iminente ditadura de esquerda. “Querem implantar o comunismo”, ou algo assim.

Certamente, essa crença, para além da repetição do tema da “república sindical” que se temia em meios abastados nos anos 60, é fantasiosa, porque ignora o pouco que a cúpula do Executivo ainda detém do poder. (Cáspite, o vice-presidente está abertamente preparando seu próprio governo!) Não importa: em se tratando de desejo, o frisson de enfrentar um inimigo tenebroso e forte é incentivo mais que suficiente para deixar de lado a lucidez.

Só assim entendemos o vínculo entre a pessoa perfeitamente democrática que vai à manifestação dominical e seu colega menos respeitável de protesto, o fascistão que ataca gente na rua por vestir vermelho. As continuidades entre protestar na Paulista, usar camisa da CBF contra a corrupção, tirar selfies com PMs e dar bordoadas em transeuntes são tão relevantes quanto as descontinuidades. Afinal, qual foi o líder das oposições que, mais do que simplesmente lamentar, deu declarações desautorizando essa violência? Quando o intolerável é tolerado, já se vê que, na verdade, é desejado.

O problema é que, uma vez que o fantasma do golpe se instala, na forma mais ampla de um gosto pela ruptura institucional, a violência de rua aparece como efeito colateral ou traço incontrolável de uma situação que, “por si só”, é anárquica (não confundir com “anarquista”). No plano do desejo, o estado de conflagração é fato consumado. Afinal, a crença inquestionável não é a de que estamos em crise, mas de que “rumamos para o desastre”. E se rumamos para o desastre, é salve-se quem puder. O que, paremos para pensar: já é o desastre.

Por isso, também, é difícil não enxergar esse fantasma do golpe involuntariamente desejado no episódio das fotografias que algumas pessoas, na maior inocência (leia-se: ignorância) tiram com policiais militares durante manifestações. Afinal, com o perdão do trocadilho infame, trata-se da instituição que mais desfere golpes no Brasil. E, para além do trocadilho: é a instituição que está sempre flertando com o paralegal, e com muita facilidade sai do flerte para cair na paixão fogosa com o ilegal. Quando? Quando é necessário, em nome de uma ordem muito mais sólida que as leis…

Cá entre nós, mesmo os maiores defensores da ação das nossas PMs sabem disso, mas tentam obliterar essa consciência, porque reconhecem no íntimo que, sem a PM, nossa corrupção entranhada não tem como se sustentar. Nesse sentido, a expressão “quero meu país de volta” faz absolutamente todo sentido, em se tratando de um país onde qualquer dissidência se resolve na bala ou no cassetete. O fantasma está presente porque o inocente, alegre e despretensioso gesto de sorrir para fotos com brutamontes armados no meio da rua traz consigo o desejo de que as dissonâncias se resolvam de uma vez só, com um… golpe… seco e eficaz.

Por isso, foi com grande clarividência que o jornalista Bruno Torturra levantou um ponto fundamental: hoje, muito mais do que os militares, quem tem as condições e a mentalidade para realizar algo parecido com um golpe, no Brasil, são as polícias. (Mas golpe, aqui, não deve ser entendido cartesianamente, como o gesto súbito de bloquear as entradas da capital, tomar as rádios, declarar vaga a presidência etc. Assumir o controle de quem pode manifestar-se ou não, e até, como em alguns Estados, de como se vai estudar, já é golpe suficiente.)

É nas polícias militares que se concentra a imagem dessa solução violenta para o diferente, o desviante, o desconfortável. O policial é aquele que parece ter o poder e o direito (velado) de produzir a solução rápida e dolorosa para problemas vistos como terríveis. Vestindo um uniforme da ordem legal, engendra todo tipo de ilegalidade e desordem, para um lado, enquanto para o outro preserva a continuidade de um modo de existência. É o instrumento de um caos ordenado, esse oximoro com o qual os brasileiros temos muita familiaridade.

Nessa troca de afagos com uma instituição indispensável da nossa corrupção é que se deixa perceber que, na direita brasileira, existe mesmo o desejo de (desferir um) golpe. A incapacidade de se descolar da brutalidade é o gesto que mais desvenda o caráter autoritário e anti-democrático das “elites brasileiras”, e não sua vontade de derrubar a presidente. Isso é mera política.

1A: o desejo de estar por perto quando houver um golpe

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Antes de aprofundar o tema, ainda é preciso mencionar um terceiro ator que anda possuído por esse fantasma, e que responde pelo nome de Paulo Skaf. O presidente da Fiesp, até outro dia, podia ser considerado só mais um aproveitador – com sua candidatura ao governo estadual – ou um oportunista, com seu lance marqueteiro do pato de banheira. Mas o uso da fachada da federação industrial para exigir renúncia demonstra que o desejo recalcado por um meia-oitozinho do Escafe é poderoso, irresistível.

Afinal, as câmeras já devem estar até apontadas, esperando a hora de disseminar pelo país a imagem de mais um herói da redenção nacional. (Falei em redenção? Ops…) Aquele que teria vocação para ser um mero oportunista acaba se tornando muito mais que isso… por quê? Porque o fantasma está ali, rondando, pronto para moldar as manifestações do desejo, na figura de um desejo de repetir-se como golpe…

Escrevi esses parágrafos antes da publicação dos caríssimos anúncios de Skaf nos jornais brasileiros, usando dinheiro público, ou seja, extraído via impostos dos trabalhadores e empresários para ser entregue à Fiesp, que com ele deveria fazer serviços sociais, e não conspirações. Assim, o homem que não quer pagar o pato quer fazer os demais de patos. Mas, em nome de um objetivo maior, por que não deixar passar, não é mesmo?

2: o Desejo de Ser Golpeado

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De todos esses grupos, é claro que o mais fascinante é aquele com um desejo inconfesso não de dar um golpe, mas de sofrê-lo. Isto é, de constituir o sentido último de seus males como a formação de um golpe, atitude ilegítima contra uma instituição legítima. No caso do PT, a questão não está em responder se um eventual impeachment da presidenta seria essa atitude ilegítima, ou seja, um golpe. Isso será sempre discutível, considerando a lei brasileira de remoção de presidentes: é quase impossível que um processo desses observe estritamente o que está na lei. Torno a esse ponto adiante.

Mais interessante é pensar sobre o lugar do conceito de golpe nessa narrativa. Ao contrário do que pode parecer, ele não surge com a ameaça concreta da remoção de Dilma (por impeachment ou cassação da chapa, tanto faz). Algo dessa natureza está presente há muito tempo, no esforço de construção da imagem que faz da dupla Lula/Dilma uma espécie de novo governo Jango, cercado de uma matilha de direitistas golpistas enraivecidos, prontos para atacar ao primeiro cheiro de sangue.

Basta lembrar, por exemplo, das inúmeras evocações da idéia de lacerdismo durante o período eleitoral de 2010, sobretudo quando a campanha de José Serra buscou uma mensagem próxima ao conservadorismo católico, a gritaria anti-aborto etc. É bem verdade que estava se reproduzindo ali um velho topos da política brasileira, com o uso de pautas tradicionalistas como estratégia contra um alvo considerado progressista (contra tantas evidências!). Também é verdade que Lacerda foi o campeão dessa tática imbecil, que ainda por cima acabou por não lhe trazer nada do que queria. Tampouco é exclusividade brasileira. No entanto, justamente essa brecha permitiu que o governo do PT reforçasse sua imagem como coração da esquerda brasileira, em flagrante contradição com suas políticas e suas alianças.

Para além desse caso específico, já podemos ver que, na arquitetura da visão de mundo petista, a noção do golpe ocupa uma posição basilar. Essa centralidade decorre de um certo poder purgativo, até mesmo redentor, que ela detém. Necessariamente alguém que foi vítima de um golpe, de uma remoção forçada, de um conluio, é alguém gostável.

Por isso, o desejo de golpe, no caso petista, opera bem assim: sem a perspectiva de ser golpeado, o que é o governo Dilma? É um governo de apoio ao latifúndio (com seus corolários, o agrotóxico, o genocídio indígena, a dominação semi-coronelista da política em nível local), e ao extrativismo (está aí o Rio Doce que não me deixa mentir, mas o que dizer dos projetos de exportação de minério de Eike Batista? – aliás, lembra dele?), sem falar no flerte descarado com fundamentalistas religiosos cujo maior interesse não está na salvação da alma de ninguém.

Ou seja, um governo que, em nome de um desenvolvimentismo que não desenvolve coisa nenhuma, se coloca em aliança bastante incestuosa com o capitalismo mais clientelista. Ou seja, torna-se intermediário e fiador de uma brutal acumulação primitiva, fazendo da população e dos trabalhadores que lhe emprestam o nome a matéria-prima para um regime ao mesmo tempo rentista e especulativo.

No entanto, o petista alarmado com a chegada do golpe (alarmado, ou seja, motivado, mobilizado, eletrizado) continua a ver o atual governo como baluarte da esquerda brasileira contra o avanço das tropas fascistas. Como isso é possível? Certamente não é olhando para o próprio governo. Não é pela negociação de cargos no varejo, pela construção de Belo Monte, pela escolha de ministros, pela orientação das empresas estatais. Essa perspectiva só se justifica, só se realiza, na presença de um inimigo a ponto de golpear. O golpe é o único véu entre o governo Dilma e o espelho – ou, para usar uma imagem mais elegante: o retrato do Dorian Gray de Oscar Wilde.

Acontece que o golpe tranquiliza a consciência de quem ainda quer manter aquela alma petista dos bons tempos, ao estabelecer um contraponto assustador. Sem golpe, não há esquerda no governo e isso é insuportável para quem, considerando-se uma pessoa de esquerda, se mantém fiel ao partido. Por isso, a presença constante do golpe é indispensável; e é, assim, desejada, da mesma maneira como desejamos aquilo que tememos, uma vez que baseemos nossa existência nesse temor.

O desejo de quem vê o golpe vindo do outro lado tem, por isso, um componente de individuação. Ou seja, de constituir-se como sujeito dentro de um quadro de relações e graças à projeção desse desejo no mundo exterior. Aquele que está constantemente prestes a sofrer um golpe da direita – e não há dúvidas de que quem age com maior agressividade contra o PT, hoje, é a direita – só pode ser esquerda. Em consequência, pode exigir solidariedade de todos os demais e, com isso, aglutiná-los em sua órbita. “Como assim, não vai cerrar fileiras conosco, isentão?”; “Não percebe que está fazendo o jogo da direita?”; esses e outros bordões têm jorrado com tanta insistência quanto os gritos de “petralha” vindos do outro lado.

Esse pesadelo só não pode se concretizar, é claro. Aí a fantasia explode.

2A: O Desejo de Golpes Idos

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Falei do “não vai ter golpe” como expressão de uma esquerda sobre a qual sempre pende o fantasma de 64, quando a tensão nas ruas chegou a um nível ainda mais profundo do que o atual, mas, na hora do vamos ver, ela simplesmente não lutou. É bem verdade que a capitulação das esquerdas no Brasil em 64 tem muito a ver com a decisão pessoal de Jango, que não quis resistir, ao contrário de seu cunhado, disposto a repetir em escala ampliada a campanha da legalidade de 61. Os motivos para isso são discutíveis, da tal pusilanimidade do rancheiro à informação de que a Quarta Frota estava próxima à nossa costa. Pouco importa. O subtexto do “não vai ter golpe” é o tradicional “desta vez vai ser diferente”.

Assim, à primeira vista, o novo 64 desejado pelo inconsciente governista é aquele em que o grande capital tenta derrubar o governo popular e democrático, mas “desta vez” não consegue, porque o povo se subleva e garante que não haja golpe, ou que ele seja rapidamente abortado, como ocorreu na Venezuela em 2002.

E quem operaria essa resistência? Quem daria o sangue contra a derrubada do governo? Certamente não os movimentos sociais, cujo sangue só é derramado pelo governo à base de cassetete. Os sindicatos? Talvez cobrem caro demais, já que desta vez a exigência envolve correr riscos – fazer discurso em alto-falante com distorção não basta. A Odebrecht, possivelmente, mas na planilha dela não tem distinção de grupos políticos: tanto faz. O povo? Quer mais é ver o circo pegar fogo…

O golpe desejado seria, assim, um modo de expurgar não só a conversão do governo do PT às alianças com a direita coronelista e patrimonialista brasileira – alianças estas que foram muito além da mera Realpolitik, lá está Kátia Abreu que não me deixa mentir –, mas também a memória de uma queda sem resistência. Assim, um governo que, em matéria de reformismo e progressismo, foi em tudo oposto ao de João Goulart passa a ser visto por seus defensores como potencial corretor dos rumos da história, lutando onde o outro não lutou, resistindo onde o outro não resistiu, nem que seja só para cair de pé, bravamente.

Pouco realista? Isso é você que está pensando…

3 – Golpe: Fantasma e Desejo

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Mas afinal, objetivamente: o impeachment é golpe ou não é? Olhando por um lado, está certo o argumento da oposição, segundo o qual não há golpe se o processo seguir o devido trâmite; por outro, está certo o argumento da situação, para quem o uso das “pedaladas fiscais” é uma desculpa esfarrapada, no máximo um deus ex machina, para justificar a derrubada da presidente. Como escrevi em dezembro, é o problema do impeachment de Schrödinger.

O que há naquele texto que mereça ser repetido é que esse tipo de processo existe precisamente para situações como a atual, em que o problema não é jurídico, mas político; é a válvula (uma delas) pela qual a política acontece. (Naquele texto, falei das ambiguidades e dos rigores inalcançáveis da lei como uma das válvulas; outra era a atuação da polícia, sobretudo a militar; mas há muitas outras, e uma das mais importantes é a construção de sentido operada pelos meios de comunicação.)

Com seu componente de instrumento legal e seu componente de golpe político, o processo de impeachment é um sintoma de que as vias de operação do poder estão congestionadas. De um jeito ou de outro, seguindo a velha máxima de que a política tem horror ao vácuo, essas vias serão reabertas.

Não custa lembrar que quem tinha mais poder para reabrir essas vias a seu favor, até muito recentemente, era o governo (leia-se: o Executivo). No sistema político brasileiro, a presidenta da República detém muito, muito poder; ou, como se costuma dizer, “a caneta”. Dilma teve, é preciso estar consciente disso, todas as oportunidades do mundo para manter sua coalizão e abortar a ascensão do, vá lá, golpismo. Se não o fez, grande parte da culpa recai sobre sua própria incompetência política, sem falar no sufocamento atroz das mobilizações de esquerda que efetivamente houve no Brasil desde 2013.

Sem conseguir apoio no Congresso e tendo deixado as ruas completamente escancaradas para a direita, e uma direita bem tacanha, também desejante de golpes, o que Dilma e seus assessores mais próximos conseguiram foi concretizar aquele fantasma tão desejado: o golpe iminente. Repetindo: a situação não chegou a esse ponto simplesmente por causa de uma enorme mobilização anti-governista. Essa mobilização existe, mas só conseguiu ganhar corpo, só conseguiu obter apoios, porque foi alimentada pelo governo. Inclusive como fantasma: lembra da propaganda eleitoral de 2014?

Até mesmo Michel Temer, hoje conspirador, traidor, golpista abjeto, fez das tripas coração para salvar um governo que não queria ser salvo. Não haveria ruptura institucional, nem o menor risco de impeachment, se Dilma fizesse um único gesto acertado para evitá-los. Mas ela fez o oposto, ajudada por seus brilhantes assessores Mercadante, Cardozo e Wagner. De que adianta falar agora em golpe?

No fim, a incompetência foi tamanha que a situação provavelmente irá longe demais, com a concretização que, na estrutura da fantasia petista, não poderia ocorrer. Chegamos a um estado de soberania disputada, um ponto-chave eminentemente político, em que todas as forças são lançadas para dentro do jogo e todas as estruturas se tornam instrumentos. Desde o texto da lei até os textos de jornal, passando pela atuação da polícia, a “negociação no varejo dos cargos”, os púlpitos de igreja, os movimentos sociais.

A pergunta agora é: quais desses estão fortalecidos? Quais estão enfraquecidos? Quem os fortaleceu? Quem os enfraqueceu? Com golpe ou sem golpe, temo que a resposta a essas perguntas pinte uma imagem pouco favorável para o governo.

Quando o desejo de golpear e o desejo de ser golpeado coexistem, é fatal que, eventualmente, venham a convergir. A princípio, pode parecer que eles só se encontrem no infinito. Até o momento em que algo excepcional, uma crise, um governo inepto, uma investigação policial, desvia os fachos e os aproxima. Esse é o momento que estamos vivendo: uma espiral rumo ao abismo em que se entrelaçam tipos diferentes de fascínio pela ruptura, atualizando desejos de golpe e memórias de golpe.

4: O Cadáver Insepulto

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Como eu disse, o desejo inconsciente do golpe, a fantasia em relação a uma iminente intervenção extra-legal, o espectro que nos ronda, é indicativo de que temos entre nós um cadáver insepulto que atende pelo nome de “ditadura militar”. Isso quer dizer que nunca chegamos a encarar esse legado sobre nossas instituições e mesmo sobre nossas relações sociais cotidianas.

Não investigamos o suficiente, apesar da Comissão Nacional da Verdade, que recebeu muito menos holofotes (e fundos) do que merecia. Não punimos, e quando tivemos a chance de rever a lei de anistia, todo mundo com um pouco de poder foi contra. Ao fim, o STF a manteve, com os mais batidos e tristes argumentos.

Não repensamos instituições como a Polícia Militar. Continuamos aplicando leis produzidas pelo período autoritário (e, por extensão, ilegítimo); isso inclui o famigerado e grotesco uso da Lei de Segurança Nacional contra manifestantes em 2013. Damos ouvidos a gente que participou do exercício do regime de exceção. Mal e porcamente tivemos a coragem de retirar os nomes de tiranos das nossas ruas, e as tentativas nesse sentido foram muitas vezes recebidas com má vontade.

Para muita gente, ainda é perfeitamente aceitável a idéia de que a recusa terminante a uma ditadura só pode significar o apoio a alguma outra ditadura, o que parece indicar que a perspectiva de viver sob opressão não parece ser um grande problema para boa parte da população. De fato – e isso está muito claro em textos como o do historiador Bruno Alvaro, que nessas horas é quem “dá a real” do jeito mais poético –, a maior parte dos brasileiros ainda vive tal e qual na época da ditadura, com a mesma repressão, a mesma fluidez entre a legalidade e os crimes cometidos por agentes do Estado, as restrições a direitos básicos (e constitucionais) como a liberdade de ir e vir e a inviolabilidade do lar. Basta ser negro, pobre, índio. E se é para falar de estado de exceção, podemos dar nome e sobrenome: Rafael Braga Vieira, a grande vítima da supressão do levante de 2013.

A ditadura, no Brasil, pode estar desencarnada, se por “encarnar” entendemos o controle sobre o aparato do governo central. Mas morta, não está. A rigor, como fantasma, a ditadura pode até ser mais eficaz, por conseguir se imiscuir na mente de todos e, em grande medida, orientar o funcionamento das instituições e das relações cotidianas mesmo em democracia.

Assim sendo, o cerne do nosso problema não está em identificar o golpe aqui ou acolá, mas em entender que estamos agindo constantemente sob o signo do golpe. Não o que poderá vir, mas o que já aconteceu. Estamos revivendo essa experiência porque não a digerimos até hoje e estamos condenados a novas encenações de instabilidades institucionais, com lacerdismos, golpismos e tudo o mais a que temos direito. Não precisa ter golpe, porque no Brasil o golpe é ubíquo.

5: Um Posicionamento, Enfim

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Com tudo isso, devo dizer que minha posição pessoal é rigorosamente contrária ao impeachment de Dilma Rousseff, nas bases em que está para se dar. À parte o fato de que a base legal parece de fato não existir (mesmo se eu acabei de dizer que, no fundo, a base legal não é determinante); à parte também meu completo ceticismo de que algo de bom ainda poderá sair deste governo, caso ele se salve e permaneça até 2018; à parte, por fim, meu enorme pasmo diante da crença de que haverá alguma “guinada à esquerda” de uma administração apaixonada pelo concreto armado: acredito que o recurso ao impeachment é um erro histórico profundo, do qual o país ainda se arrependerá amargamente.

Como já apontado por muitos, o impeachment é um momento catártico cujo principal efeito (e os atores políticos que o tocam têm plena consciência disso) será o esvaziamento das atuais tensões no país. Por um lado, são tensões quase insuportáveis e queremos mesmo um pouco de calma para voltar a viver. A economia, por exemplo, agradeceria bastante, é forçoso admitir. Por outro, são tensões que mobilizam, obrigam à tomada de posição, favorecem rearticulações e desnudam as insuficiências da nossa sociedade, a começar pelo déficit democrático.

O impeachment seguramente serviria para costurar um acordo que entregaria o PT aos leões e livraria todos os demais implicados na Lava Jato, principalmente os do PMDB, maiores favorecidos com essa lama toda, e em seguida os do PSDB, que têm a vantagem de poder contar com a complacência da classe média e o apoio da classe mídia. A pessoa que defende o impeachment em nome da luta contra a corrupção pode até ser bem intencionada (algumas são, outras não), mas posso garantir que não tem a menor ideia do que está dizendo. (A bem intencionada, claro; a mal intencionada eu suponho que saiba até bem demais.)

Esse momento catártico é típico de um país que não quer assumir suas responsabilidades. O que nos faz falta não é uma solução sumária para o “problema Dilma”, o “problema Lula”, o “problema PT” ou “o problema desses safados todos que estão aí”. Precisamos é de constituir forças políticas bem articuladas, efetivamente ancoradas na nossa diversidade social, capazes de dialogar com a sociedade civil e extrair dela sua força de atuação. Partidos, movimentos e organizações, portanto, programáticos e propositivos. O impeachment nos trará o oposto disso.

É bem verdade que, no começo, a economia deve responder bem ao governo Temer e parecerá que as crises foram “solucionadas”, os erros do governo Dilma, apagados. Vamos possivelmente esquecer a tensão em que vivemos desde 2013, graças aos dois ou três anos de crescimento econômico moderado que poderão resultar daí e do sufocamento dos impulsos contestatórios nas ruas. Pautas agressivamente impopulares serão aprovadas e os porta-vozes do mercado, ingenuamente, vão comemorar.

O problema é que, daqui a poucos, muito poucos anos, quando esse arranjo bater de frente com as efetivas condições demográficas e sociais do Brasil, que mudaram muito nos últimos 20 anos, vamos ter esquecido de fazer o mais urgente: construir essas novas estruturas políticas.

Tendo transformado o Judiciário em ramo heróico do poder, vamos nos deparar com uma sociedade judicializada e policializada, o que não tem como ser bom: afinal, como bem sabemos, muitos juízes pensam que são Deus e os policiais, se não se acham deuses, certamente acreditam ser algum tipo de arcanjo Miguel. Mas isto é um país supostamente democrático, não é algum reino celestial.

Nesse sentido, e apenas nesse, o impeachment é certamente “um golpe”: no sentido clássico em que é sinônimo de bordoada. A vítima desse golpe não é Dilma, nem Lula, nem o PT, mas a paulatina constituição de um novo arranjo político, pós-88, pós-Odebrecht, para o Brasil. Algo muito importante, que ainda está nos estágios iniciais, mas seria ceifado ainda em botão. Algo que se pode divisar vagamente nos novos partidos (Rede, talvez Raiz, até mesmo, se bobear, esses partidos liberais que tentam se registrar) e no vigor de movimentos sociais autônomos como o das escolas. Tudo isso é muito recente e está em grande risco.

São esses que deveriam estar gritando contra um golpe, e não o PT.

Post-scriptum – Tantos Fantasmas

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Comecei o texto falando do golpe como o fantasma de um cadáver insepulto; mas logo me dei conta de que está longe de ser o único dos nossos fantasmas. É, certamente, o que mais atua nas nossas refregas políticas, sobretudo quando chegam ao ponto em que chegaram. Mas existem outros, dos quais, é bom lembrar, a própria ditadura é herdeira.

Por sinal, eu poderia dizer que os fantasmas são uma entidade dinástica, que vai se renovando a cada geração, adaptando-se às condições de cada época e, principalmente, acumulando forças, saberes, poderes; estendendo o alcance de sua atuação; reforçando os nós entre os diferentes pontos de assombração.

Segue uma breve lista de fantasmas, os cadáveres insepultos em que tropeçam todas as nossas iniciativas emancipatórias ou modernizadoras, isto é, nossas boas intenções. O genocídio indígena da colonização, que se traduz em genocídio indígena da república. O rentismo/extrativismo da economia, que vai de Duarte Coelho a Marcelo Odebrecht, passando por Percival Farquhar e os Setúbal. O patrimonialismo estamental, que joga por terra a já normalmente ineficaz distinção entre estado e mercado.

E o principal de todos, claro, evidentemente, sem sombra de dúvida: a escravidão. Está aí Joaquim Nabuco, que não me deixa mentir, e cujo prognóstico de que “a escravidão permanecerá por muito tempo a característica nacional do Brasil” aparece tatuado em baixo-relevo na testa de cada secretário de Educação, Segurança Pública, Transportes ou Habitação deste país.

Sendo assim, o golpe é fractal, ou seja, tem múltiplas dimensões que se dobram umas sobre as outras. Também por esse motivo, mais uma vez, é estéril discutir se há golpe ou não há, porque cada gesto, de cada lado, traz consigo uma fração de desejo de golpe, que também é uma encarnação do conflito inescapável que caracteriza um país como o nosso. Um conflito que é bem mais que luta de classes, porque envolve condições de vida e de ocupação do território transversais em relação à classe: envolvem raça, ascendência, sobrenome.

A ditadura, esse nosso fantasma mais recente, não foi derrubada, como se sabe. Caiu quando quis, vendo que tinha feito besteira na economia e percebendo que o apoio internacional esmaecia. Os militares garantiram o perdão para si próprios e ainda não vi nenhuma declaração oficial das Forças Armadas se retratando por lançar o país nas trevas por tanto tempo. Uma ditadura que, depois de golpear a esquerda, golpeou também a direita democrática (tão pálida no Brasil) e até a direita pouco democrática, como logo percebeu o pobre diabo do Lacerda.

Se hoje temos uma Constituição minimamente humanista, nós a devemos ao momento histórico único da redemocratização, não a algum espírito nacional ou coisa que o valha. Mesmo assim, a Constituinte foi marcada pelos péssimos augúrios do Centrão, germe do nosso pemedebismo, como apontado por Marcos Nobre, e termo que reaparece na nossa política pela via das tentativas do governo de se salvar. Triste sina.

Ataques ao progressismo da Carta esperavam apenas por um governo fraco e um sistema político esfrangalhado para se desvelar em toda sua força. É fácil de prever, como fiz acima, que a grande ofensiva virá com o governo do PMDB: Temer, Cunha, Renan, e nem quero pensar em quais sócios menores… São gente que não tem escrúpulos quando se trata de repartir o território e as forças produtivas.

Infelizmente, porém, a realidade é que a atual paralisia é muito mais favorável aos retrocessos. Com um Executivo em constante xeque e os movimentos sociais com a cabeça fixa no golpe, o Pântano, o Centrão, o exército de Cunha têm curso livre para agir, chantagear, extorquir. Para dar seus golpes constantes, institucionais, legais. Sim, enquanto uns desejam, temem e devaneiam com os golpes, outros os desferem.

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O impasse e os impasses

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais

Caetano Veloso

Desculpe usar jargão; não vejo outro jeito para expressar meu ponto de vista sobre o cenário político brasileiro, com suas passeatas, seu Congresso tenebroso, seu fisiologismo encastelado, seu presidencialismo em migalhas; é que me parece existir um pano de fundo nebuloso para tudo que está acontecendo, e só consigo resumi-lo com a seguinte frase: o Brasil está se desindividuando. Agora vou ter que me dar ao trabalho de explicar o que quero dizer com isso, mas, numa tentativa provavelmente frustrada de segurar o leitor pelos parágrafos abaixo, já adianto que o argumento só vai ficar claro ao final…

Tudo parte de uma pergunta, que pode ser desdobrada em várias: será que não estamos vivendo um período em que a normalidade se tornou impossível? Será que os procedimentos cristalizados há séculos, que se renovam periodicamente, respondendo à sucessão dos períodos históricos, não estão começando a sofrer para fazer essa renovação? Será que os esforços dos nossos caciques patrimonialistas para dominar de cabo a rabo o plano social e o sistema político não seriam uma reação à caducidade das próprias estruturas patrimonialistas?

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É claro que essas perguntas derivam de uma mera intuição, mas essa intuição vem vibrando cada vez mais intensamente de uns tempos para cá. Já há alguns anos, em conversas e entrevistas que tenho feito – por motivos em geral profissionais, mas nem sempre – com sociólogos, cientistas políticos, historiadores e até economistas, o tema dominante tem sido a crise da representatividade, os impasses políticos, os nós que parecem impossíveis de desatar. Acredito que essa crise não é mais segredo para ninguém.

Mesmo assim, um subtexto perpassa essas conversas, e nele algo como um otimismo se deixa entrever. De diferentes maneiras: seja porque o comportamento dos motoristas é menos grotesco do que costumava ser, seja porque camadas populares estão resistindo mais incisivamente a arbitrariedades, seja porque se espera dos novos consumidores do país uma postura mais pragmática em política, seja por mil outras coisas.

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Assuntos que passaram

Quando se esgotaram minhas forças – e isso deve fazer umas duas semanas, pouco mais, pouco menos – logo vi que a primeira vítima seria o blog. Eu estava certo. Assunto vinha, assunto ia; a vontade de escrever vibrava entre as orelhas, mas desfalecia entre a mão e o lápis (que digo? É o teclado…). O coeficiente de crescimento do desânimo, como não podia deixar de ser, era proporcional ao acúmulo de eventos ao redor dos meus olhos e sentidos. O mundo é assim mesmo: ou você gira com ele, ou aceita a frustração. (Não há nada errado em aceitar a frustração; é melhor do que se deprimir à toa.)

Foi assim que, nesse meio-tempo, eu quis comentar uma infinidade de coisas, mas não o fiz. Em muitos casos, a escolha foi acertada: outros o fizeram melhor do que eu jamais faria, e uma humilhação evitada não deixa de contar ponto a favor. Talvez essa máxima contrarie o espírito blogueiro, mas é assim, não há o que fazer. Em outros casos, perdi a chance: nem me lembro mais das reflexões simpáticas que me causou a vista de uma meia-dúzia de bolas de futebol, gastas e esfarrapadas, boiando em meio à sujeira, numa curva do rio.

Seja como for, listo aqui algumas das idéias que deveria ter desenvolvido em postagens específicas. Qual é o interesse para você que me visita desses parágrafos curtos sobre coisas que mereciam páginas e páginas? Ora, os links, claro. Pois vamos:

1) No último fim-de-semana, passou um documentário alemão no canal Arte sobre Dennis Hopper, com o tristemente premonitório título de “Spiel (oder stirb)”: crie ou morra. Pois bem, três dias depois ele modulou o verbo. Não obstante, recomendo a todos o filme, em que o ator conta sua vida com uma sinceridade e uma naturalidade marcantes. Em seus últimos anos, Hopper se dedicava às artes plásticas, com um interesse particular por fotografar grafites de gangues em Los Angeles, na tentativa de decriptá-los. Eis um trecho, eis outro. Eu poderia mencionar que ele era um personagem fantástico e um ator fenomenal, mas isso, todo mundo já sabe. Então me contenho em sugerir: procurem o documentário.

2) Mais uma sobre morte, um de meus velhos temas preferidos neste blog: Louise Bourgeois não chegou ao centenário, o que certamente teria sido tema para uma escultura e escritos carregados de ironia. Como no caso de Dennis Hopper, eu poderia mencionar que ela era uma personagem fantástica e uma artista fenomenal, mas isso, todo mundo já sabe. Então me contenho em recomendar um espetáculo sobre ela, obra da sempre maravilhosa Denise Stoklos. Ela tende a rodar o país apresentando diversos de seus monólogos, e “Faço, Desfaço, Refaço” costuma estar no meio deles. Ou seja, seu dever, visitante, é ficar atento à agenda da moça. Mais cedo ou mais tarde, ela vai passar pela sua cidade. Encontrei poucas coisas na internet sobre esse espetáculo, em que Stoklos incorpora Bourgeois através de seus escritos, mas eis dois links possíveis: este e este.

3) Um dos assuntos que não ouso abordar é a questão da Terra Santa (dizem que o sangue purifica, o que explica a santidade daquele deserto). Há muita coisa em jogo, uma história enrolada demais e um jogo de retórica e pressões em que os culpados são muitos e a vítima é uma só: a população que preferia poder só tocar a vida. Aliás, Brecht tinha razão. Quem tenta não se interessar por política é massacrado (desculpe a citação imprecisa) por quem se interessa. Em todo caso, algumas reflexões se fazem necessárias, sobretudo depois que o governo israelense foi mais longe do que o longe demais a que já tinha ido.

A primeira delas: não consigo entender como um país cuja fundação remete ao trauma do genocídio e ao racismo sistemáticos pode agir, meros sessenta anos depois, de forma sistematicamente genocida e racista. Acho que só conseguirei produzir um texto a respeito quando tiver entendido isso, ou seja, nunca.

A segunda: O risco de cair no fascismo começa quando alguém resolve substancializar um povo, um governo e os atos de um e outro, para em seguida identificá-los. Tenho visto muita gente tratando como anti-semitismo toda e qualquer crítica às atitudes criminosas do governo israelense: muro, bloqueio de Gaza, bombardeios de hospitais, assassinato de ativistas e por aí vai. Com o risco de cair numa comparação de Godwin, lembro que Goebbels considerava qualquer crítica a Hitler como “anti-alemã” (Sophie Scholl perdeu a cabeça por isso); Jdanov considerava qualquer arte independente como anti-revolucionária (está lá a Sibéria que não me deixa mentir); e, em nossas terras tropicais, o lema era “Ame-o (pode parecer que é o Brasil, mas é o regime, ou seja, a ditadura) ou deixe-o (pode parecer que é o Brasil, mas é o mundo dos vivos)”. Quem identifica críticas a Israel com o ódio ao judaísmo está a dois passos de se tornar um fascista, se é que já não se tornou, e o governo israelense está de braços abertos para essa categoria humana.

A terceira: Robert Fisk tem toda razão: são covardes aqueles que não condenam o ataque israelense à flotilha humanitária. E os mais covardes são os governos “ocidentais” (já disse que odeio essa expressão), aqueles que ou sentiram o fascismo na carne, ou lutaram contra ele, ou ambos, e deveriam atuar para que coisas assim não pudessem se repetir.

A ante-penúltima: o fascismo também tende a achar que consegue fazer todo mundo de otário, não sei por que razão ; em 1o de setembro de 1939, os alemães vestiram cadáveres com uniformes poloneses e acusaram o país vizinho de atacar uma estação de rádio sua, tentando justificar o início da Segunda Guerra (ninguém caiu, claro). Nossos ditadores tentaram fazer crer que Vladimir Herzog tinha se enforcado na cela (e teve gente que caiu, a começar por alguns órgãos de imprensa). Agora o governo israelense mostra vídeos de estilingues (!!!), bolas de gude (!!!) e pedaços de madeira como prova de que seus pobres comandos foram atacados por hordas de pacifistas. Bem que Einstein (por sinal, judeu) avisou: a quarta guerra mundial vai ser lutada com paus e pedras…

A penúltima: mais covarde ainda é o governo (ditatorial, aliás) egípcio, pouco mencionado em todo esse imbróglio, mas que também deixa fechado seu acesso à faixa de Gaza. E isso porque é uma nação muçulmana, que se pretende líder do mundo árabe, e que já esteve mais de uma vez em guerra com Israel.

A última: se eu vivesse no Oriente Médio ou perto dele, provavelmente estaria louco atrás de uma bomba atômica também. Afinal, quem é capaz de transformar um canto de terra num gigantesco campo de concentração é capaz de qualquer coisa. Os únicos detentores da famigerada arma na região têm se revelado uns autênticos lunáticos.

4) Outro assunto que não ouso abordar: eleições. E os motivos são vários. Estando fora do Brasil, quem sou eu para discutir mais este emocionante embate PT X PSDB? As informações que chegam aqui sobre o Brasil são bastante positivas: crescimento econômico, estabilidade financeira, redução da miséria e da desigualdade, investimentos em infra-estrutura, expansão do comércio, medidas anti-cíclicas perante o risco de recessão, desfavelização, recuperação da pesquisa científica… Mas como meus amigos tucanos seguem se descabelando, concedo-lhes o benefício da dúvida: talvez haja mesmo estatísticas secretas provando que o país ruma célere para o desastre.

Mas não posso deixar de levantar algumas hipóteses que me têm martelado a cabeça.

A primeira: muita estranheza me causa essa guinada à direita do PSDB, particularmente de Serra, nos últimos anos. De sua origem na luta intelectual contra a ditadura, o partido de Montoro e Covas foi parar nos braços da Arena, nem bem passado um quarto de século. O PSDB, que um dia chegou a se apresentar como núcleo do progressismo nacional, tornou-se um ninho para Azeredos e Guerras deste mundo.

Como explicar? Dois indícios parecem oferecer uma possibilidade de compreensão desse estranho fenômeno. Primeiro, o movimento irreversível e consistente do PT para o centro, ou melhor, para longe da esquerda (o que não necessariamente é a mesma coisa, se levarmos em conta a miríade de sentidos possíveis para o termo “esquerda”). Acontece que o PT é um partido com uma base mil vezes mais sólida que a do PSDB, porque são movimentos sociais que existem de fato e não estão apenas nas conversas de apartamentos de Higienópolis, nem entre as mesas do Massimo. Em outras palavras, essa migração do PT parece traduzir um movimento consistente da sociedade brasileira (cujos descontentes deságuam no PSol), o que deixa o PSDB um tanto sem argumentos ou bandeiras.

O segundo indício é a derrocada dos partidos conservadores tradicionais; o ex-Arena tentou até a velha estratégia de assumir um nome contraditório (“Democratas”), mas não deu certo. Só alguns poucos malucos ainda crêem que Demóstenes Torres e Kátia Abreu têm algo de construtivo a oferecer para o país. Ou seja, mesmo a parcela mais conservadora da sociedade está menos radicalizada, embora ainda apareça muita gente disposta a ter saudade da ditadura e chamar o combate a ela de “terrorismo”. Enquanto o clã dos Maias e Magalhães vai afundando, o antigo partido “social-democrata” (se é que eles jamais o foram) ocupa seu lugar. Isso para não mencionar a turma do Maluf, claro. Não deixa de ser uma evolução da mentalidade do país e uma prova de que não estamos indo tanto para o buraco quanto querem fazer crer os e-mails descabelados que tenho recebido…

A segunda, na verdade um corolário da primeira: conforme temos podido ver, o candidato dos tucanos à presidência, que dispensa apresentações, parece ter ido pelo mesmo caminho. Quem leu os artigos e comentários de “Brasil sem milagres”, escritos entre 78 e 86, tem dificuldade em reconhecer o homem que hoje inibe a pesquisa e o ensino em São Paulo e manda ver a metralhadora giratória contra países vizinhos e pessoas com pensamento menos monolítico que o de seu partido. Pois é, uma das poucas vantagens que tiro de ser formado em economia é ter lido artigos publicados nos anos 70 por gente que, hoje, pode preferir queimar seus antigos escritos (não, não estou falando de FHC).

A grande questão é: para quem vai o discurso raivoso? Para quem vão factóides como o Ministério da Segurança e a cocaína boliviana? Afinal, se considerarmos que tanto o problema da violência quanto o das drogas, embora ainda fortíssimos no Brasil, estão muito menores do que eram há dez anos, dá para perceber um descompasso estranho entre o que berra a oposição e o que percebem os eleitores. Ora, nem preciso dizer o quanto isso é improvável num tempo em que o marketing político está tão profissionalizado. Portanto, a pergunta pode ser reformulada assim: se eles não esperam conquistar eleitores novos com o discurso raivoso e descolado da realidade, o que eles esperam?

Minha hipótese é a seguinte: nem Serra, nem o PSDB têm esperança de vencer as próximas eleições presidenciais. A brigas deles, portanto, não é com o PT pelo Planalto, mas com o PFL, pela população conservadora. Se o PDS continuar sua derrocada, o PSDB se consolida como partido conservador brasileiro (o que não deixa de ser uma evolução, convenhamos), empurrando ainda mais a Arena para o esquecimento. Com isso, o estranho discurso da campanha de Serra não seria pela conquista de novos eleitores, que poderiam lhe dar uma vitória já aparentemente impossível, mas pela consolidação dos velhos eleitores. Enfim, é só uma hipótese.

A última: tenho razões para crer que Folha e Globo estão derrubando o último bastião do jornalismo independente com circulação generalizada no país. A observar de perto!

5) Sobre isto aqui, que continua aqui, ainda pretendo fazer um texto mais extenso. Quando ousei fazer críticas à pretensa panacéia do hipertexto, alguns anos atrás, me tomaram por um dinossauro – não importa se foi num blog pra lá de moderno (sic) como o Cálculo Renal. Pois bem, Carr é famoso, então neguinho vai ter que escutar. Aliás, é até irônico dizer algo assim justamente numa postagem cheia de links…

6) Não posso ir embora sem lincar um texto breve, mas preciso de meu amigo Leonardo. Quando eu falei que havia casos em que me dei bem por não escrever e evitar a humilhação de ver alguém dizer algo muito melhor do que eu diria, era nisto que estava pensando. Lelec manda muito bem ao escancarar o abuso do pretérito do futuro, que se tornou o único tempo verbal de uma imprensa tornada inútil e anódina. O contexto está no artigo anterior de Leonardo, que merece muito ser lido, em seu blog ou no Amálgama, onde a caixa de comentários pegou fogo.

Era isso… obrigado pela atenção!

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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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