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A barbárie se acelera?

Chegamos a meados de 2022 e parece que já não é mais a cada poucos meses que somos confrontados com um novo episódio de barbárie em algum canto do Brasil – agora, poucas semanas separam o anúncio de um massacre no Rio, uma câmara de gás em Sergipe, um assassinato brutal na Amazônia ou no Cerrado, para citar só os mais midiatizados. São todos acontecimentos hediondos, à primeira vista sem conexão direta entre si, mas temos a impressão de que estão mais frequentes.

Viramos as páginas dos jornais – quem ainda faz isso – para a seção nacional ou de política e damos com um noticiário de outra natureza, mas igualmente perturbador. Ou melhor, igualmente bárbaro: a diferença é que o sangue não salta diretamente das páginas. Uma decisão como a do rol taxativo no STJ; a pressão dos militares sobre o processo eleitoral; os bilhões canalizados pelo orçamento secreto; os milhões gastos por municípios com concertos misturados a propaganda; a proposta, ou ameaça, de um estado de calamidade que permitiria desviar ainda mais recursos para fins eleitoreiros, e por aí vai. Desta vez, estamos falando de degradação institucional, mas a sensação é a mesma: o processo está se intensificando ou acelerando.

O que dizer desse sentimento de aceleração? Os golpes estão mesmo cada vez mais frequentes ou seria apenas um reflexo de nossa ansiedade com a aproximação de um período já normalmente tenso, como é o processo eleitoral? Ou ainda: se os episódios de barbárie e degradação institucional estiverem mesmo se precipitando, é justo imaginar que exista alguma coordenação entre eles, proposital ou involuntária? Se houver, realmente, algum mecanismo pelo qual uma causa comum leva à sucessão desabalada de iniciativas destruidoras, ele pode ser identificado?

Coloquei as perguntas nessa ordem porque uma das características do conflito assimétrico e informal, majoritariamente cibernético, que caracteriza nosso tempo é justamente torná-las quase irrespondíveis. Mesmo assim, creio que, se atravessarmos esse “irrespondível” e a confusão que o acompanha, podemos identificar um movimento que talvez seja proteiforme, mas é coeso. Lamento dizer, o que parece estar atrás da cortina é aterrador.

Chegamos a meados de 2022 e tudo indica que está em curso uma iniciativa de “guerra total” quase – veja bem, quase – espontânea, e por isso mesmo ainda mais potencialmente destruidora. Mas antes de começar qualquer tentativa de diagnóstico, é preciso recuar alguns passos e buscar um olhar um pouco mais abstrato, para que o cenário de fundo esteja minimamente acessível. Seja paciente.

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Começado pela última questão: a coordenação e a causa comum a todos esses episódios é indemonstrável, porque é desnecessária. Ou melhor, o que é desnecessário é um centro inspirador ou decisório único. Basta que exista alguma modalidade de comunicação – que pode ser um único sistema ou a conjunção de vários – capaz de alinhar o desejo de realizar determinada ação com a capacidade de levá-la a cabo. A única coisa indispensável para conseguir que algo se opere, tenha efeitos, é que os agentes mobilizados na ponta – digamos assim, os “terminais” ou “receptores” – obedeçam a motivações mais ou menos coerentes – ou seja, coerentes o bastante. Em outras palavras, não são as ações que precisam ser coordenadas, mas as motivações; aquilo que, cá e lá, dispara uma ação.

Ora, é precisamente essa questão comunicacional que conduz ao irrespondível das primeiras perguntas. Se ficamos ansiosos ao ser confrontados com a repetida barbárie, em sua versão sanguinolenta e em sua versão institucional, parte da razão é que as mesmas modalidades de comunicação que alinham motivações também semeiam ansiedade. Os mesmos estímulos emitidos constantemente, a mesma cacofonia, que galvaniza as ações de um lado, do outro geram confusão. A avalanche de imagens e mensagens é tanto paralisadora quanto mobilizadora, conforme a predisposição das pessoas espalhadas pelo território – os “terminais”.

Por isso, não faz sentido opor a sensação do horror intensificado e a realidade material que poderia sustentar essa percepção. Essa condição da comunicação reticular, entranhada no tecido social, provoca a impressão de que esses acontecimentos horríveis que testemunhamos podem ser postos em ação, um tanto paradoxalmente, por si próprios. Somos quase conduzidos a dizer que ninguém é responsável, mas, como já não conseguimos nem mesmo afirmar a realidade do complexo de eventos que estamos testemunhando, não chega a ser surpreendente.

Poderíamos contrastar essa nebulosidade, por exemplo, com o que aprendemos no caso Cambridge Analytica, em que agentes muito específicos manipularam indivíduos em um vasto território, com ferramentas discretas e disponibilizadas com essa precisa finalidade. Algo semelhante ocorreu em torno de 2018, com os disparos de mensagens e os robôs que todos conhecemos, a começar por Carluxo. Também dá para fazer um contraste com o episódio da invasão do congresso americano, em 6 de janeiro do ano passado. Também aí havia um centro emissor na figura de Trump, que colocou em movimento seus seguidores a partir da acusação de fraude eleitoral e o slogan, ou grito de guerra, “stop the count”.

Mas mesmo nesses dois casos, o que realmente disparou as atitudes, as ações, até mesmo as crenças – o que poderíamos chamar de sua “causa eficiente” – foi a disposição dos próprios receptores, cultivada ao longo de um extenso período e disponíveis para aquelas mensagens. O caso Cambridge Analytica é mais evidente, porque justamente aqueles com alguma inclinação a se conectar com as mensagens enviadas eram focalizados – e vendidos como alvos.

No caso da extrema-direita brasileira, a radicalização se deu por vias semelhantes, mas não idênticas. Ao inundar os dispositivos com mensagens que tocavam em todos os temores possíveis do brasileiro – raciais, sociais, religiosos, o que for –, era praticamente garantido que uma quantidade suficiente de pessoas seriam capturadas para uma rede de influência que se retroalimenta e se torna cada vez mais coesa.

Em tempo: não estou falando especificamente das tecnologias algorítmicas usadas no disparo de propaganda (explícita ou implícita), embora elas sejam, é claro, um elemento capital do problema. Mas elas se articulam com todo tipo de dispositivo que dissemina opiniões, impressões e convocações: dos púlpitos aos editoriais, das mesas de bar aos seminários, da sala de jantar aos intervalos entre aulas. Quanto mais modulações diferentes um estímulo lograr, melhor ele se embrenha no tecido social e se naturaliza.

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Entre contrastes e semelhanças, o que se passa hoje no Brasil tem suas singularidades, que me parecem determinantes para esclarecer a questão da aceleração do horror, a “guerra total” a que estamos submetidos. Em primeiro lugar, estamos falando de um complexo com ao menos duas dimensões, como já mencionei. De um lado, os atos de barbárie estúpida, espalhados por várias regiões e no quotidiano das pessoas; do outro, a degradação institucional no Congresso, nos tribunais, em determinadas autarquias, no Executivo federal e também nas esferas inferiores – menção desonrosa para as ditas forças de segurança, tanto as forças armadas quanto as polícias.

É preciso olhar um pouco para o cenário em que tudo isso se desenrola, ou seja, o contexto, a massa preparada com fermento para se tornar o bolo de destruição hoje se expandindo tão rápido.

Primeiro ponto: não é difícil remeter a barbárie quotidiana ao discurso funesto que se expandiu assustadoramente no país a partir de 2014, mais ou menos, e que explodiu com a candidatura e eventual vitória do atual ocupante do Planalto, quatro anos mais tarde. A “foice no pescoço da Funai”, o envio de adversários à “ponta da praia”, o “fuzilar a petralhada”, e assim por diante, são sementes que se espalham e, juntando-se a outras emitidas por personagens menos notórios – alguns deles, inclusive, hoje nominalmente de oposição –, criam um terreno de naturalidade para que atos de violência e crueldade emerjam conforme as circunstâncias.

Veja bem: criam o terreno, mas o potencial para a violência e a crueldade estavam disponíveis, já compunham a massa complexa do dia-a-dia brasileiro; caso contrário, não poderiam vingar. O caráter claramente racial de muita dessa violência; a tentativa de acelerar a eliminação dos povos indígenas, e dos biomas em que vivem, para avançar o extrativismo; o elitismo presente em alguns desses crimes; a virada opressiva e aniquiladora de certa religiosidade. Nada disso foi inventado em 2018. Foi, isso sim, realçado, em detrimento de tantas outras características igualmente presentes no quotidiano do país, das formas de solidariedade à disposição em abraçar o outro, o diferente – o que é mais que tolerância e, sim, pode estar em baixa hoje, mas é um traço bastante frequente no brasileiro.

O segundo ponto é um pouco mais difícil de tratar; tentei fazer isso neste texto de 2018. Hoje, já está em plena vista muito do que, naquele momento, ainda tínhamos que tentar demonstrar. É evidente que, ao menos desde meados de 2020, o atual governo só se sustenta porque funciona como uma espécie de mediador, um “buffer” para que forças políticas de dominação local – leia-se centrão – e grupos de interesse encastelados, a começar pelo latifúndio, ampliem seu controle já enorme sobre o Estado e os recursos do país. O que esses grupos identificam como principal inimigo? Muito simplesmente, o conjunto de todos os ganhos trazidos pela redemocratização e os anos seguintes. Ganhos institucionais, como o SUS e o controle sobre as decisões de agentes públicos (e aí se contam desde os tribunais de contas até a LRF, com todos os seus defeitos). Ganhos sociais, como os programas de distribuição de renda, a proteção de terras indígenas, as cotas no ensino superior. E, principalmente, tudo que possa ser um obstáculo a uma economia primária e dependente. Como previsto, vamos sair dessa lamentável experiência com um país ainda mais oligárquico, parasitário e paralisado.

Assim, quando sentimos que algo parece estar se acelerando, trata-se de uma conjunção, uma espécie de aliança informal (às vezes formal) entre os aspectos mais nefastos da nossa realidade social, realçados e coordenados por um sistema de comunicação quase orgânico, e os aspectos mais atrasados – e também nefastos, por que não dizer – da nossa realidade política. Se muitas vezes você pensou que o pior de nós está no poder, é porque está.

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Resta tentar explicar por que estou falando em “guerra total” para me referir à aceleração dos horrores, sanguinolentos e institucionais. Com o risco de estar cometendo uma “reductio ad Hitlerum”, algo ainda mais delicado em se tratando de grupos políticos que evidentemente têm o fascismo como princípio ativo em sua fórmula, acho que não é absurdo enxergar no que está se passando hoje no Brasil a atitude de quem vê o fim, aliás a derrota, se aproximando e, sem poder apagar o rastro de seus crimes, escolhe o caminho inverso: intensificá-los. Nesse caso, é difícil não fazer um paralelo com “der Totale Krieg” (guerra total).

Guardadas as devidas proporções, foi o que se passou a partir de 1943, quando Goebbels fez seu chamado ao “Totaler Krieg”, em discurso no Sportspalast de Berlim. Naquele momento, já era evidente que as chances de vitória do Eixo na guerra eram ínfimas. Duas semanas antes, o exército alemão havia sido humilhado em Stalingrado, a campanha no norte da África estava praticamente perdida, a economia germânica já não tinha condições de fazer frente às demandas do front. A derrota era certa.

Na camada mais superficial de seu infame discurso, Goebbels decretou que o país não aceitaria os fatos e que estava disposto à completa aniquilação, como se ainda houvesse uma vitória no horizonte. Na realidade, o que estava sendo formalizado era um suicídio coletivo: o nazismo exigia da população como um todo um sacrifício, para esticar por um par de anos a sobrevivência de seu grupo criminoso.

Mas este resumo não dá conta de descrever o que se passaria nos anos seguintes, com o arquiteto Albert Speer como ministro dos armamentos: a escravidão dos prisioneiros de guerra (e dos campos de extermínio) foi intensificada, levando à morte por inanição de milhares de trabalhadores forçados; adolescentes foram enviados ao front sem treinamento para missões inviáveis; populações inteiras foram deixadas sem comida; toda matéria prima possível foi desviada para a produção militar. As vítimas se contam aos milhões, não só entre os povos ocupados, mas também entre os próprios alemães. E o mais importante: quanto mais os soviéticos de aproximavam de Berlim, maior era a disposição para a infâmia suicida.

Como eu disse, é preciso “guardar as devidas proporções”. Não estou dizendo que houve no Brasil algo semelhante ao Sportspalastrede. Pelo contrário, sua ausência é o que mais me perturba, porque acredito, sim, que o princípio de radicalização suicida que mobilizou Speer está disseminado, mesmo sem um apelo direto. É por não precisar da convocação explícita à barbárie que o caso brasileiro é ainda mais insidioso. Ao contrário do que ocorria num sistema totalitário como o alemão, não é preciso moldar o conjunto da população para uma ação coordenada, em bloco, comandada a partir de um ponto singular. Basta multiplicar a emissão de estímulos, que se reproduzem de um jeito que parece orgânico; quando chegam na ponta, esses estímulos entram em consonância com motivações e convicções, gerando atos ao mesmo tempo isolados e conectados. E mais: não é preciso arregimentar a todos, como nas massas uniformizadas de Nuremberg. Basta que, cá e lá, a destruição emerja, faça seu dano e perpetue a angústia e a confusão. E o medo.

No plano mais propriamente institucional, a coordenação é um pouco mais explícita, principalmente porque há um evidente núcleo de tratoramento do princípio republicano. Tendo conquistado um poder quase irrefreável e com o Executivo na coleira, o enorme pântano fisiológico do Congresso procura consolidar sua posição e garantir que ela dure além do atual mandato. Os casos das emendas de relator e da execução impositiva, são cristalinos: deixarão qualquer governo futuro à mercê de deputados que controlarão um naco maior do orçamento sem responder a ninguém. O que serviu na origem, ao que parece, para comprar apoio a um governo inepto, torna-se assim um mecanismo de perenização de poderes despóticos. Ao mesmo tempo, pautas caras aos lobbies mais retrógrados avançam com urgência, como a mineração em terra indígena ou o “PL do Veneno”, sem falar em todos os projetos que almejam implodir a educação e a saúde no país.

Resumindo: a intensificação da barbárie, esse “totaler Krieg” a que aparentemente estamos submetidos, responde à urgência que certos grupos de poder provavelmente estão experimentando de obter o tanto de espólio que puderem até a implosão do governo ou do país como um todo – que país consegue aguentar tanta morte, tanta fome, tanta frustração? E se não ficou evidente como a cacofonia dos constantes estímulos se reflete nos avanços de bancadas predatórias, grupos fisiológicos e corporações burocráticas sobre os recursos e as leis do país, eu coloco em palavras: a velocidade de renovação das pautas – no sentido jornalístico e no sentido administrativo – favorece a aprovação das piores medidas, porque a resistência não consegue se organizar. Quantas vezes as oposições não comemoraram a vitória de bloquear uma votação aqui e outra ali, enquanto passavam outras tantas igualmente anti-republicanas?

Talvez o sintoma mais grave e de efeitos mais duradouros da sanha antidemocrática seja a apresentação do documento preparado por três assim chamados “think tanks” ligados aos militares, com um projeto de terra arrasada para o Brasil a ser implementado até 2035. Em que pese o tom delirante de algumas das análises e o teor regressivos das propostas de política pública, é mais um caso em que se consolida como normalidade as forças armadas se apresentarem como partido político, com fundo programático – no caso, “desprogramático” – e, no lugar da “força de lei”, a força de um cano de canhão apontado contra nossas têmporas. A presença do vice-presidente da República no evento de lançamento do tal projeto é, não custa repetir, um acinte. Somado à tentativa de intervir no processo eleitoral, temos aí mais um caso de agressão à sociedade civil – mas até aí, nada de novidade em tempos de bolsonarismo.

Na verdade, neste caso, vale atentar mais para a própria apresentação do documento, a fanfarra em torno dele, associada à insistência em intervir nas eleições, com envio de “sugestões” ao TSE e reclamação de falta de “prestígio”. Do ponto de vista institucional, esse tipo de atitude corresponde às bravatas do próprio presidente, suas repetidas “motociatas”, das quais a mais funesta é essa última, a de Manaus – metrópole da Amazônia sob ataque e da população sem oxigênio. Muito mais do que o conteúdo de qualquer dessas iniciativas, dessas imagens, desses memes, o que conta é o estímulo afetivo, para correligionários e para inimigos. Aos primeiros, o que se diz é: “vocês têm rédea solta!” E aos últimos: “confundam-se! Protestem para cá e para lá! Tremam de medo!”

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Nesse meio-tempo, lemos algo quase todo dia sobre o perigo de que a patota hoje encastelada no Planalto tente um golpe de Estado no sentido clássico, ou quase. O golpe se aproveitaria do questionamento ao resultado das urnas para semear o caos, recorrendo ao extenso apoio nas forças armadas e nas de segurança estaduais, além de grupos civis armados – esses mesmos cujo armamento vira e mexe é encontrado nas mãos de criminosos comuns. A partir dessa situação de descontrole, conforme a expectativa de golpe clássico, o governo teria uma desculpa para fechar o regime.

É uma preocupação legítima, considerando todas as manifestações dessa intenção nos últimos anos, o motim cearense de 2019 e a prévia de sete de setembro do ano passado. Isso para não falar no exemplo americano, a invasão do capitólio em 6 de janeiro, agora sob investigação no Congresso de lá. Mas essa perspectiva de golpe bolsonarista, em geral, deixa de lado um detalhe quase prosaico. Um golpe tramado às claras, à vista de todos, não é bem um golpe; é antes uma ameaça ou uma promessa. Por isso, traz consigo a perspectiva de um acordo, já que alguém ameaçado é colocado diante da possibilidade de escolher entre diferentes caminhos.

Por isso, do ponto de vista deste texto, é mais importante se concentrar no próprio fomento a essa projeção do possível golpe. Uma vez mais, ele serve tanto para estimular a sanha agressiva dos apoiadores quanto para intensificar a confusão e o medo dos opositores. Enquanto houver ameaça de que as eleições sejam meladas, a mensagem está no ar: toda barbárie é aceitável, para não dizer desejável. Há sustentação institucional, há garantias das lideranças políticas. A impunidade é certa. Tudo somado, parece que não é no sentido clássico que estamos diante de um golpe – ou dentro dele; mais parece um extenso período de exceção não declarada, mas sugerida nas entrelinhas e reafirmada a cada episódio de horror impune e sancionado por meias-palavras dos centros de poder.

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Dito isto, é difícil não lançar a pergunta mais incômoda, que, devo confessar, não tenho ideia de como responder. Como agimos, sabendo da radicalização em curso, da guerra total em que o inimigo somos todos nós? Como se comportar no dia-a-dia, como bloquear a barbárie, como escapar da espiral de angústia?

A maior dificuldade, na tentativa de dar uma resposta a essas perguntas, é que o problema comunicacional não é uma via de mão dupla. Para o funcionamento regular dos mecanismos de manutenção de uma certa estabilidade social e institucional, não há nada que corresponda à cacofonia de estímulos, esses que constantemente mobilizam e desmobilizam afetos. A democracia, no sentido formalizado em que a conhecemos, depende, ao contrário, de uma comunicação capaz de produzir sentido e relevância, não entropia e espasmos violentos; opiniões e ideias, e não pavor e ódio. Assim, não adianta ficar procurando estratégias para contrabalançar o bombardeio simbólico com um outro bombardeio, mas de anticorpos.

Já ajudaria bastante se pudéssemos escapar da armadilha que consiste em reagir individualmente, repetidamente, a cada novo episódio, correndo atrás dos estímulos e passando de exasperação a exasperação, de desespero em desespero. Tenha a impressão de que o que de melhor se pode conseguir é que o vínculo estreito e reticular entre esses sucessivos atos horrendos e decisões políticas regressivas seja reconhecido, e que nosso repúdio seja estruturado, voltando-se para o conjunto como um todo. Seria bastante desejável se pudéssemos reinventar os estímulos que poderiam trazer à tona a capacidade de organização coletiva, de solidariedade, daquilo que tem sido chamado de tolerância, palavra talvez um pouco fraca demais para o que realmente é necessário.

Mas falar é fácil. Estamos cientes, em maior ou menor grau, de como todos esses episódios e todas essas iniciativas estão conectados. Constantemente, repetidamente, denunciamos a normalidade, aliás a hegemonia, de uma linguagem regressiva, obscurantista, fascista, no dia-a-dia do Brasil, e associamos esse estado de coisas a personagens que detêm poder e incentivam o avanço da barbárie. Se isso não basta para murchar o estímulo à guerra total, talvez seja apenas a expressão de que esse discurso segue forte no país e essa bomba só possa ser desarmada em um prazo mais longo, para nossa infelicidade.

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O que conduz à última questão: basta derrubar essas figuras funestas para afastar de vez a cacofonia? Bastaria reagrupar uma “coalizão democrática” em torno de um novo governo a partir do ano que vem? (Melhor não perguntar se existe disposição para uma tal coalizão em nossos grupos políticos.)

Dificilmente. Não foi o caso em outros países e não deverá ser aqui. Um dos núcleos do problema é que esse discurso, com um pé no fascismo e outro na tradição colonial, se legitimou suficientemente na sociedade brasileira para se fixar. A cacofonia ainda reverbera, mesmo que seus pólos emissores desapareçam – aliás, não vão desaparecer, só vão perder alguns de seus dispositivos e uma parcela de seus recursos. Ou seja, devemos reconhecer que não vamos retornar tão cedo a uma condição que poderia ser considerada normal. A bem dizer, um olhar um pouco mais detido sugere que já não há mais sentido no termo “normalidade”, se quisermos aplicá-lo ao que vivemos nas décadas de 1990-2000.

Para ficar só naquilo que foi transformado por esses quatro anos de barbárie oficial, há vários problemas já fáceis de identificar. Sabemos que os grupos radicalizados permanecem, seguirão com a mesma radicalidade e alguma forma de coordenação, ainda que os atuais líderes acabem sendo substituídos por outros, talvez até mais sagazes e, portanto, perigosos. O caso do professor de cursinho para agentes rodoviários federais que, filmado, ensinou a improvisar uma câmara de gás, sem o menor constrangimento, é ilustrativo. É preciso um estado muito degradado da mentalidade em um país para que alguém se disponha a falar daquela maneira em público, sendo registrado ou não.

O perigo maior, neste caso, é que se os membros mais ativos desses núcleos se sintam traídos e prejudicados quando o golpe clássico não ocorrer, pelo menos não com intensidade suficiente para sacramentar o triunfo da barbárie. A partir daí, dois caminhos opostos são possíveis, e ambos são perspectivas assustadoras. Eles podem reforçar seus laços, renovando a coordenação fascistizante; ou podem se fragmentar em pequenos grupos violentos, atuando espalhados pelo território e mais presentes no dia-a-dia da sociedade. Com fácil acesso a armas e um ódio dirigido a categorias vulneráveis, não é absurdo esperar o pior, em ambas as hipóteses.

Também devemos nos preocupar, e muito, com a renovação da fantasia característica dos militares – e ao chamar de fantasia não estou querendo dizer que não possa ter impacto real – de que constituem um dos poderes da república, ou melhor, um de seus alicerces. O tal documento dos “think tanks” é, além de uma ameaça (mal e mal) velada a todos nós, um sinal de que essa auto-imagem falsa, perigosa e inconstitucional segue sendo cultivada nos quartéis.

Outro elemento importante é o expressivo apoio ao projeto regressivo e recolonizador no meio empresarial, inclusive depois que se tornou evidente o caráter fraudulento da imagem intelectual e gestora de Paulo Guedes. Olhando nome a nome a lista de empresários que mergulharam com mais gosto no universo do bolsonarismo, encontramos um perfil ligado a setores pouco produtivos, como o comércio de grandes superfícies e a alimentação rápida, ao lado de exportadores de soja e gado. Uma característica que reúne esses nomes é sua pouca dependência da estabilidade econômica, social e política do país. É diferente, por exemplo, do que foram as lideranças do setor privado no passado (pense em Roberto Simonsen, Horácio Lafer etc.). E também é diferente de quem investe em mercados altamente tecnológicos, como os setores ligados à chamada “bioeconomia” – por mais questionável que o conceito possa ser, do ponto de vista ecológico. Para esses empresários da baixa produtividade, embora possam perder receitas com a instalação do caos e da pobreza, suas empresas são capazes de absorver o choque, seja por meio de demissão e achatamento de salários, seja batendo na porta de um governo amigo em busca de ajudas diretas. Diferentemente de grupos industriais, ou mesmo de serviços, da fronteira tecnológica, não precisam se preocupar com a concorrência de companhias que atuam em ambientes de muito maior segurança institucional e são pouco afetados pelas variações exageradas do câmbio.

Resumindo: o enraizamento da mentalidade autoritária e obscurantista no país é duplo: está tanto no dia-a-dia dos conflitos sociais quanto no âmbito daqueles que de fato controlam o país – isto é, sua economia, sua política, sua comunicação. Duplo, mas, é claro, articulado, já que um lado se alimenta do outro e os “donos do poder”, como diria Raymundo Faoro, têm todo interesse em fomentar uma sociedade atomizada, conflituosa e desesperançada. Livrar-se dessa mentalidade vai ser tarefa difícil e para muitas décadas.

Para terminar em tom um pouco menos funéreo, quero repetir o que disse antes, e que em condições normais nem precisaria ser dito: o Brasil não é, de modo algum, “essencialmente” autoritário e obscurantista, até porque essas “essências nacionais” são tolice, coisa digna dos Le Pen deste mundo, e nada mais. O autoritarismo e a violência que reconhecemos no nosso dia-a-dia se desenvolveram com o passar das gerações; são reforçados sempre que se reproduzem as estruturas de dominação e exploração herdadas do período colonial e transformadas a cada etapa histórica. Mas em outros planos a mesma sucessão de gerações produziu muito de criativo, gregário, solidário, nos interstícios dessas estruturas. Não é à toa que os estrangeiros nos veem como um povo tolerante e acolhedor.

Não faltam organizações, grupos e indivíduos que reafirmam e se alimentam desse Brasil solidário e cooperativo; somos, sim, perfeitamente capazes de atrofiar a abjeta e obscura aliança do fisiologismo com a barbárie, do fascismo com a predação; temos mais do que o necessário para articular um sistema sólido de cooperação e democracia. O terremoto político do último decênio teve o efeito lamentável de desagregar muito dessa trama de organizações que constituem a sociedade civil, abrindo o caminho para a avalanche de cacofonia e ruído que nos colocou na atual situação catastrófica e potencialmente suicida. Mas desagregação não é desaparecimento. Cá e lá, surgem novos cristais e novas coalizões. Inclusive, alianças até ontem improváveis. São sinais de caminhos que se abrem.

As ilustrações são desenhos de Käthe Kollwitz
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Da série citações: Celso Furtado

Passagem extraída do artigo “As ideias de Celso Furtado sobre a questão ambiental”, assinado por Renato Nataniel Wasques, Walter Luiz dos Santos Júnior e Danilo Duarte Brandão:

“Em uma entrevista concedida a Cristovam Buarque, em março de 1991 , Celso Furtado afirma que demorou a perceber a importância da ecologia na economia. A propósito disso, observou: “É difícil no Brasil se perceber a importância da ecologia, porque é um país que tem uma margem muito grande para o desperdício” (Furtado, 2007, p. 78). Ele relata que se deparou pela primeira vez com a questão ambiental no início dos anos 1960 , quando chefiava a Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste].

Naquela ocasião, Celso Furtado trabalhava no projeto do Maranhão. “[…] aí se colocou o problema das florestas e dos rios. Era uma coisa mais ou menos evidente que no centro da ecologia estava a própria preservação dos índios, o habitat dos que viviam ali” (Furtado, 2007, p. 79).

Elaborou-se, então, um plano de colonização para a região maranhense, com a finalidade de preservar a floresta . O autor comenta que foi influenciado por leituras sobre as técnicas dos
índios na Amazônia, principalmente pelo “[…] fato de eles usarem, nas margens dos rios, várzeas recuperáveis” (Furtado, 2007, p. 80). Essa constatação demonstrava que a agricultura praticada pelos indígenas não era predatória, pelo contrário, se recuperava permanentemente. Verificou-se, portanto, que era “[…] preciso partir da preservação da floresta, pois se houver destruição está tudo perdido, vem a desertificação” (Furtado, 2007, p. 80).

Nessa mesma entrevista, Celso Furtado busca responder à seguinte problemática: os recursos naturais não renováveis constituem um limite ao crescimento econômico? Ele argumenta que o uso predatório desses recursos “[…] está criando problemas tremendos para o planeta inteiro, não somente pela questão da escassez, mas pelas consequências, como a contaminação da atmosfera, a poluição geral, todos os problemas que vêm surgindo” (Furtado, 2007, p. 56). Apesar desse diagnóstico, o autor expressa certo otimismo em relação à capacidade da tecnologia em reverter aqueles problemas, inclusive na área energética. Nesse particular, assevera: “[…] creio que podemos pensar que a tecnologia vai, em grande medida, resolver esse problema dos recursos naturais” (Furtado, 2007, p. 57).”

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O Celso Furtado de 1991 se revela uma pessoa capaz de reconhecer suas limitações: demorou a perceber, diz, a importância da ecologia para qualquer pensamento que se queira econômico.

Ainda assim, na verdade, ele foi um dos primeiros economistas em todo o mundo a perceber que a questão ambiental seria decisiva. Em seu livro de 1974, O Mito do Desenvolvimento Econômico, o economista brasileiro já leva em conta o relatório Limites do Crescimento (1972), considerado um documento fundador da interface entre economia e ecologia. Furtado mostra ter familiaridade com nomes que apenas começavam a tratar do problema, como Nicholas Georgescu-Roegen, Herman Daly e Kenneth Boulding.

Nesse livro, Furtado já escreve: “A evidência à qual não podemos escapar é que, em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”.

Passaram-se 46 anos desde esse livro e 29 anos desde a entrevista. Na política brasileira atual, nem no governo, nem na oposição, encontramos alguém com a clarividência de Celso Furtado. Inspirar-se nos índios para uma agricultura regenerativa? Implementar projetos para desenvolver as potencialidades da própria floresta, dos próprios rios, sem destruí-los e àqueles que vivem deles? Nem pensar. Aqui, alguns são pelo fogo, outros pelo concreto.

À parte isso, poderíamos perguntar, tomando por base o otimismo tecnológico do final da passagem destacada: o que pode, de fato, a tecnologia, perante a crise ecológica? O que é preciso para tornar a tecnologia uma efetiva mediação entre a vida econômica e a vida como um todo, no planeta?

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Sábado: o veranico

Saio para regar as plantas e avisto à distância, no meio de um céu ocre e desolado, uma andorinha voltejando. Uma única andorinha, ágil como sempre, mas estranhamente solitária. Estranha como o próprio céu – que cheira a lenha, ou a cinzas de cambarás, piúvas, bocaiúvas e carandás.

Perto da janela dos fundos, as andorinhas fizeram um ninho, então estou acostumado a vê-las em bando. Só que, desta vez, é uma só. O velho dito popular sobre o “não fazer verão” me vem à mente, mas impregnado de ironia: pelo calendário oficial, estamos em pleno inverno, mas a imagem que me ocorre é a do estio, que a presença da andorinha vem negar.

É inverno e faz calor. E antes mesmo da primavera, a natureza já indica que o verão foi abolido.

Se fosse no tempo da minha adolescência, os jornais já estariam dando alguma trivialidade sobre o “veranico”: uma ou duas semanas de calor, que permitiam enxertar uma retranca prosaica no meio da torrente de notícias pesadas.

“Veranico”, palavrinha recorrente em outro século! Desapareceu, foi esquecida, junto com o período que servia para nomear – a breve interrupção do inverno em São Paulo.

Hoje é sábado, faz calor no meio do inverno, mas não é um veranico. É só mais um dia quente, acima dos trinta graus. Como foi ontem e como amanhã deve ser.

O noticiário, então, tem que se contentar em fazer o oposto: dar palanque a gente do naipe de Aldo Rebelo ou Eduardo Bolsonaro, quando se aproveitam da semaninha de frio que tem feito no inverno para negar a evidência de que os anos têm ficado cada vez mais quentes.

Virou notícia, fazer frio no inverno! Por que não adotamos “invernico”, como antes tínhamos um “veranico”? Fica a ideia: se por acaso calhar de fazer frio no inverno em São Paulo, podemos pautar um “invernico” e aligeirar o noticiário. Que tal?

Falando nisso, esse frio passou por aqui faz uma quinzena, mais ou menos. Agora, só ano que vem – com sorte. Vamos deixar o “invernico” guardado, então.

Hoje, a andorinha voa no calor e no céu ocre que cheira a cinzas. No sentido literal, ela não fazer verão seria até boa notícia. Como costumavam dizer os cariocas, e agora dizemos todos, o oposto do inverno é o inferno.

No sentido figurado, ao contrário, parece que nunca mais teremos um verão. Pensando bem, parece mesmo é que estamos presos indefinidamente num monstruoso inverno escaldante.

A andorinha volteja atrás de insetos, sozinha. Será que ela baila no ar para informar que não podemos almejar um verão, que nunca mais viveremos uma primavera?

No fundo, nem penso em primaveras, mal lembro o que é isso. Penso nas plantas, que estavam secas e agora estão molhadas. Penso por um instante na garganta, que arranha, e nos olhos, irritados pelo ar denso, carregado com os restos de biomas mortos. Fecho a torneira, volto para dentro, lembro de não deixar a janela aberta.

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Imagens que não fizeram história (3): candangos e índios

A terceira fotografia da série de “imagens que não fizeram história” – e eu aqui pensando que iam ser só duas! – talvez cause um certo estranhamento; afinal, é uma fotografia muito recente, que nem “fez história”, nem deixou de fazer. Posso tentar contornar esse estranhamento dizendo que a imagem “ainda” não “fez história”, mas fará, por tais e tais motivos. Então este texto é uma aposta? Não faz mal, que seja. Estou disposto a apostar de vez em quando.

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Por outro lado, tudo gira em torno dos jogos que se possam fazer com essa fórmula: “fazer história”, que é dúbia e ainda mais maleável quando a usamos no negativo: “não fez”! Seja como for, quando dizemos que uma imagem “fez” história, geralmente estamos ressaltando seu caráter icônico, ao sintetizar nosso conceito de um determinado período ou acontecimento, esse sim “essencialmente” histórico. A imagem em questão é, portanto, a imagem visual referente a uma imagem mental de valor coletivo. A imagem que efetivamente “fez” história é aquela que aparece nos manuais escolares, nas retrospectivas dos telejornais, nas páginas não-numeradas, impressas em papel mais caro, de livros editados décadas depois, mas só para reforçar uma outra imagem e uma outra narrativa, da história que “se fez”, retratada ou não.

Então “fazer história”, no fundo, significa nada mais do que reaparecer a cada vez que alguém quer pontuar a memória social e, para isso, recorre ao ícone mais à mão. “Renúncia de Jânio”; “Guerra do Vietnã”; “Exército Soviético em Berlim”: para cada um desses sintagmas, imediatamente aflora na mente do leitor uma determinada imagem. E dificilmente vou perder dinheiro se apostar, para cada caso, que imagem será essa.

Se a fotografia que escolhi, como imagem, não fez história ainda, porque acabou de ser tirada; mas intimamente sentimos que está em sua essência um certo “fazer história”, será que estamos falando do mesmo caráter icônico?


Valter Campanato, da Agência Brasil, é o profissional responsável por esta peça tão linda. Na terça-feira, a manifestação de 1500 lideranças indígenas contra a PEC 215, no eixo monumental, acabara de ser interrompida por um temporal. Temporais, como sabemos, não são exatamente o evento mais corriqueiro em Brasília. Mas este grupo de índios (algo entre 12 e 14) continuou a fazer a dança ritual que estava fazendo como parte do protesto.

O fotógrafo capturou a dança na chuva bem quando ela passava diante do Monumento aos Candangos, que parece reverberar, na vertical, a marcha dos índios. O pé d’água, que borra as figuras, deixa impassível o bronze do monumento, mas aproxima ambas as formas por realçar seus contornos e esconder os detalhes. Passam a ser índios tão abstratos quanto aquelas duas figuras estilizadas, supostamente representando os construtores da “novacap”, tantos deles vítimas fatais do delírio de ocupação do Planalto Central…

Os candangos que empunham cajados; os índios que empunham armas. Alinhados em cruz, como se buscassem sinalizar uma simetria histórica. Com isso, a própria composição se torna o vetor pelo qual a imagem lança seu apelo ao passado e situa-se na história, fazendo-se perante a história e, se não propriamente “fazendo história”, pelo menos fazendo da história alguma outra coisa.

Ou melhor, para ficar menos enigmático, talvez seja o caso de inverter a exposição: enquadrados diante da simbologia presente de figuras do passado (o Monumento aos Candangos), os índios trazem o que “já foi” para junto do que “está sendo”, fazendo-os colidir, transformando-os em uma terceira coisa.

Uma constelação, como diria Benjamin?

Afinal, o que é um candango? O que é um índio? Em mais de um sentido, o candango (não o morador de Brasília, bem entendido, mas seu construtor) é o paradigma do lugar reservado ao índio, e não só a ele, no projeto nacional brasileiro. A mão-de-obra precária, depauperada, aculturada (esse talvez seja o traço mais essencial), disposta a deslocar-se em péssimas condições pelo território, na medida do avanço do extrativismo e demais atividades que reproduzem sua lógica. Disposta a morrer por acidentes de trabalho, por doenças que resultam da insalubridade, por violência.

É o mestiço, mas não segundo a perspectiva brilhosa de um amalgamento das raças ou coisa que o valha, e sim pelo esvaziamento das identidades (étnicas, raciais, lingüísticas) do colonizado e/ou escravizado. Esvaziamento que se opera enquanto é barrado o acesso à identidade do colonizador: o branco, europeizado, herdeiro de Dom Antônio de Mariz. É o “pardo”, aquele de cujo rosto não se desenham nem se esculpem os traços, como no monumento que o homenageia na Praça dos Três Poderes. A imagem nítida da construção de Brasília, que guardamos como ícone no fundo da memória, é a do rosto sorridente de Juscelino Kubitschek, acenando à frente de um Congresso cercado de andaimes.

Já o índio é o oposto disso: o obstinado caiapó, ashaninka, tukano, ianomâmi. É o muro em que esbarra o projeto nacional, naquele momento surpreendente em que alguém insiste na autodeterminação. É o desmentido de Rondon. É o rosto cujos traços a chuva pode borrar numa fotografia, mas o escultor não borrará no monumento. Se lá atrás o bronze dos candangos pesa sobre a Praça dos Três Poderes, com seus oito metros de altura – como uma sentença, podemos dizer –, aqui na frente a dúzia, pouco mais, de índios a atravessa, com a leveza realçada pela chuva.

Talvez seja esse o motivo pelo qual muita gente fica tão horrorizada e perturbada quando vê um índio de bermuda ou com a camisa do São Cristóvão. Ali está, materializada, a assinatura da aculturação. Então por que a recusa em admiti-la? A bermuda não é, nesse raciocínio, objeto de uso, mas mercadoria; não pode ser vista como concessão do mundo civilizado, só como porta de entrada ao sistema produtivo e à cultura que passou a lhe servir de penduricalho. O renitente índio que aceita a bermuda mas não aceita ser “pejotizado”, que continua empunhando seu arco mas não quer ir para a favela empunhar um .38 contra a polícia, está enfiando seu tacape bem no meio da engrenagem dos tempos modernos. Ou seria dos Tempos Modernos?


Mas… se é possível enxergar na fotografia um vetor de conexão cronológica, nada impede de procurar nela também um vínculo topológico, afirmando que a imagem é capaz de operar uma amarração que ressignifica a geografia. E se fizer isso, ela também dá um novo sentido ao território, com seus conflitos internos e seu enraizamento no planeta, do qual aparentemente não é tão fácil escapar. Acho que é possível ler essa imagem assim, mas vai ser necessária uma certa dose de sarcasmo. Não que isso me incomode!

O olho treinado pela televisão – que é o meu e, muito provavelmente, o seu também – quase certamente fará a imediata associação entre índios avançando em grupo debaixo de um toró e a expressão “dança da chuva”. Para o olho treinado pela televisão, o que é um índio? Ora, é alguém que faz uma dança da chuva. Porque quem dança “na” chuva não é o índio, é Gene Kelly, mas só porque tem uma câmara na frente, a chuva é de mangueira e a cantoria vem em playback.

Sem essa tecnologia toda, prossegue o raciocínio, o índio convoca a chuva dançando. E assim o reconhecemos como índio, com nosso olhar formado pela televisão. Digna de nota é a poesia embutida na idéia de convocar a chuva com uma dança: o moderno, o branco, o tecnológico, o civilizado, convoca a chuva bombardeando nuvens. Um bombardeio, pois: notória invenção do moderno, branco, tecnológico, civilizado.

Mas às vezes nem o bombardeio funciona, então é preciso recorrer… à dança? Parece ser o que fez o governo de São Paulo – moderno, branco, tecnológico e civilizado – no fim do ano passado, quando, a crer na imprensa local, entrou em contato com a Fundação Cacique Cobra Coral para ver se fazem chover em São Paulo. A fundação em questão não é indígena; é espírita, mas parte da premissa de que sua presidente recebe o espírito do cacique Cobra Coral (do qual temos poucas informações, senão que seu espírito também teria sido [sic] o de Galileu Galilei e Abraham Lincoln, o que me deixa intrigado, porque não vejo a relação desses dois senhores com a chuva). Pois esse cacique “tem poderes para interferir em fenômenos meteorológicos”, ou seja, faz chover.

Trocando em miúdos: enquanto o grupo de índios dava uma de Gene Kelly (que era moderno, branco, tecnológico, civilizado) e dançava “na” chuva, o branco e nem tão moderno, vagamente tecnológico e nada civilizado governador de São Paulo convocava uma dança “da” chuva.

Eu disse que seria preciso sarcasmo, e acho que esse sarcasmo começa a partir de agora. Afinal, São Paulo define-se como o “Estado bandeirante”, como testemunham os nomes de tantas de suas ruas e rodovias, sem falar na estátua de célebre mau gosto na avenida Santo Amaro. Mas o que é um bandeirante, senão um brutamontes descalço que leva a vida a se embrenhar pela mata para escravizar índios – e matar, estuprar…? Senão aquele cuja função histórica era limpar o terreno para a emergência de uma população aculturada e depauperada, ou seja, destinada a se tornar alguma das variantes daquele fenômeno do candango, homenageado no monumento de Brasília?

Que divina ironia! O líder político do “Estado bandeirante” recorre ao espírito de um índio para ter a chuva, enquanto os índios que conseguiram escapar à escravização e à proletarização, na capital do país, interrompem um protesto pela própria sobrevivência por causa… da chuva! E passeiam nela, dançam nela, e parecem mesmo estar se deleitando, esses maledettos nietzscheanos!


Está bom de ironia? Calma que tem mais. Se estou tratando de uma imagem e das conexões que ela é capaz de fazer, não posso deixar de citar um dos maiores marcos do “bandeirantismo” do Estado em questão. É também uma escultura, como o Monumento aos Candangos: o mais que famoso cartão-postal paulistano, o “empurra-empurra”, que pretendia ser conhecido como “Monumento às Bandeiras”.

Lá está ele, no meio do engarrafamento, retratando os maiores heróis do genocídio em traços enrijecidos, angulosos, um descarado flerte de Victor Brecheret com a estética fascista que florescia em seu tempo (há muito disso em São Paulo, a começar pelo Pacaembu). E não é que, debaixo do toró, os índios de 2015 lembram vagamente o formato da escultura-símbolo da ressecada capital paulista? De um lado, os corpos vivos, com membros flexionados; do outro, a postura marcial e os corpos de pedra.

De um lado, o protesto pela sobrevivência; do outro, a conquista do território e das populações. De um lado, o toró; do outro, o volume morto.

Em constelação, como diria Benjamin?

Resta ainda uma última questão, que não consegui identificar, com meus olhos formados pela televisão: de que etnia são esses índios? Vêm de que parte do Brasil? Sei que em Brasília, nesta semana, estiveram índios dos quatro cantos do território. Mas e esses em particular? Por sorte, posso ser preguiçoso e recorrer a meus olhos formados pela televisão, repetindo com meus confrades de televisionismo: “se é índio, deve ser da Amazônia”.

Então, em nome da poesia que pode haver nas imagens, vou simplesmente pressupor que o olhar formado pela televisão está certo, desta vez, e que os índios em questão são de uma etnia amazônica. Simplesmente porque isso convém à minha retórica: se eles vêm da Amazônia, então vivem na região do país de onde saem os rios voadores que irrigam com chuvas abundantes grande parte do resto do país… a começar por São Paulo.

Assim sendo, o que a imagem mostra é uma espécie de dança triunfal que sintetiza as contradições fundamentais do Brasil, tal como elas se manifestam hoje: o índio que protesta para garantir a sua sobrevivência e a de sua terra também é aquele cuja terra fornece o elemento indispensável à sobrevivência de todos os demais. E notadamente dos que querem forçar a aprovação da PEC que põe em risco o território dos índios. Como pano de fundo, temos a informação de que a demarcação de terras indígenas é um poderoso instrumento para frear o desmatamento, cuja consequência mais imediatamente visível para metade da população, que vive longe da floresta, é a paulatina diminuição das chuvas.

A história que se faz quase por conta própria nesta fotografia pode ser descrita como a materialização de uma anti-história do Brasil, em que o primeiro plano apresenta aqueles que são ao mesmo tempo anti-candangos e anti-bandeirantes em plena procissão triunfal, justamente no instante em que mais estão ameaçados. E quem é que vem fornecer as condições para que tudo isso seja sintetizado num único enquadramento, numa composição com basicamente dois elementos, muito pouco contraste de cor e uma simplicidade formal deliciosa? Ora, ninguém menos que a chuva. Terá sido mandada pelo cacique Cobra Coral, em resposta à convocação dos paulistas?

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O Inconcebível

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“Colapso”. Nossas conversas do dia-a-dia, aquelas do bar, da calçada, do elevador, ganharam agora uma nova palavra, um novo clichê. Colapso, como quando as fundações de um prédio se rompem e ele cai, ou quando um sistema complexo se revela mal planejado e ele entra em parafuso. Ou quando a defesa de algum time bate cabeça e toma uma goleada.

Dizemos assim: daqui a pouco a água acaba em São Paulo e a cidade vai entrar em colapso. Às vezes avançamos no raciocínio, citando que a estiagem veio para ficar, por causa da mudança climática e do desmatamento – afinal, já faz anos que tem chovido paulatinamente menos. Então toda a economia do Sudeste vai entrar em colapso: sem chuvas e com tanto calor, as hidrelétricas não agüentam.

Ocasionalmente, tendo mencionado o clima, o pensamento continua avançando e dizemos: se não fizerem algo, o mundo todo é que vai entrar em colapso. E, de fato, é pequena a probabilidade de “fazerem” alguma coisa, uma vez que, vivendo de abstrações, a humanidade, essa que poderia fazer alguma coisa, passou as últimas décadas espoliando o planeta. No máximo, dá para contar com alguns arranjos perfeitamente dribláveis por quem tem imaginação – coisa que não falta aos empreendedores mundo afora.

Às Últimas Conseqüências

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Esse termo, “colapso”, merece um olhar mais atento. Escutando suas três sílabas, percebo que saímos pronunciando a palavra de modo um pouco leviano, como diria o senador Neves. Quantas vezes não afirmei por aí, para puxar papo com um vizinho ou o porteiro, que “o colapso” está ficando cada vez mais provável? Mas será que eu consigo imaginar o que essa expressão implica realmente? Será que sou capaz de representar na minha cabeça o que é o tal colapso? Acho que não. Continuar lendo

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O Brasil é uma dádiva da Amazônia

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Há duas semanas, enfim chegou aos ouvidos da opinião publicada a relação entre o desmatamento da Amazônia e o sumiço das águas no Sul. Não deveria ter sido surpresa para ninguém: a informação vem correndo mundo há anos e já tinha saído até num canto da grande imprensa. Agora, parece só ter chamado a atenção porque um autêntico caos é iminente em São Paulo e, no resto do Sudeste, daqui a pouco ele se instala também. Nas cercanias da Cantareira, graças à irresponsabilidade da Sabesp e do governo estadual, temos hora marcada com o desastre, como sabemos graças ao boletim da Camila.

Mas a coisa vai muito além das fronteiras de São Paulo: a dar crédito ao que diz a ciência (a outra opção sendo dar crédito a lobistas e seus interesses pouco imparciais), sem os chamados rios voadores vindos do Norte, aqui onde um dia houve a Mata Atlântica, em poucos anos haverá uma savana ou algo assim. Nada como descobrir que dependemos de rios voadores!

O que fazer? Ao que consta, já nem bastaria mais só interromper o processo de desmatamento da Amazônia – que, falando nisso, voltou a se acelerar durante o governo Dilma, depois de alguns anos de queda no governo Lula. Seria preciso recorrer a uma iniciativa muito mais ambiciosa: um programa massivo de reflorestamento.

É possível? Deixo essa pergunta mais para o final. Por enquanto, faço um parêntese em nome da dramatização.

Parêntese para dramatizar

Heródoto, que escreveu no século V a.C., referiu-se ao Egito como uma dádiva do Nilo. A mais duradoura e uma das mais espantosas civilizações da Antiguidade, pela qual Platão, entre tantos outros, sentia uma inveja incontrolável, devia toda a sua existência ao ciclo de cheias de um fluxo d’água que descia do Sudão. A várzea daquele rio enche todos os anos, fertilizando uma faixa de terra não muito larga (exceto no delta), e isso bastou para manter vivos os súditos dos faraós por bons quatro mil anos. O resto do país não passava de areia, cuja serventia não ia muito além de preservar as carcaças de monarcas e animais de estimação.

Repito: um dos mais brilhantes feitos da humanidade era a dádiva de um rio.

De repente, descobrimos todos que o Brasil tem qualquer coisa de Egito. Se existe mesmo alguma mistura do Brasil com o Egito, ei-la: este país é uma dádiva da Amazônia. Não tão especificamente o rio Amazonas, mas a floresta como um todo. Essa vasta mata, que já foi chamada de “terra sem homens”, é o que permite empilhar tantos homens deste outro lado do subcontinente. Impunemente, ou quase.

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Falei em empilhar gente? Foi por querer. A fotografia aí acima mostra o que é o Egito, dádiva do Nilo na Antiguidade, dádiva do Nilo hoje. Oitenta e sete milhões de pessoas espremidas como uma cobra de luz e cercadas pela escuridão escaldante do deserto. Olhando assim, de longe, me parece um país inviável. Mas não será, enquanto houver Nilo. O Egito é o Nilo, mas o Nilo não é o Egito.

O mesmo vale para este nosso país de ruralistas. O Brasil é a Amazônia, mas a Amazônia não é o Brasil. Não existe comércio nessa relação. Não há paga, não tem ciclo do valor, trata-se de uma irredutível ecologia da dádiva, num sentido tão puro que chega a ser perturbador. Toda economia da dádiva de que tenho notícia inclui a reciprocidade, a obrigação de dar, receber, retornar e até iniciar uma outra dádiva, sob pena de uma profunda violência. Até mesmo no sistema cristão do sacrifício de si absoluto existe a noção de um retorno, ainda que em outro reino.

O caso dos rios voadores da Amazônia, e também do Nilo, é bem outro. A natureza entrega fertilidade e umidade, cheias e rios voadores. Mas não quer nada em troca, senão ser deixada em paz. A vegetação amazônica concentra vapor, mas não o acumula. Ele se espalha e cria rios, ecossistemas, faunas. Voa como uma enorme bacia hidrográfica flutuante e se transforma na neve dos Andes, na bacia do Paraná, nas tantas formas de vida da América do Sul.

A Mata Atlântica, ou o que resta dela, é uma dádiva da Amazônia. O São Francisco, enquanto não secar de vez, é uma dádiva da Amazônia. A briosa terra bandeirante é uma dádiva da Amazônia. A Cidade Maravilhosa é uma dádiva da Amazônia.

Falei em ecologia da dádiva e esqueci de falar de seu anverso: a financeirização de uma economia que finge ter esquecido da existência da dádiva. Tendo recebido da Amazônia o formidável presente de existir e ter água, o que faz o Brasil? Ora, manda essa água para o outro lado do mundo. Como uma boa parte dos produtos de exportação do Brasil (soja, frango, carne) é composta majoritariamente por água, o Brasil é exportador de água, algo como 112 trilhões de litros por ano. Não consigo nem sequer me representar o quanto isso significa, mas fico me perguntando onde essa água toda vai parar depois que a soja, o frango etc. já foram consumidos.

O major e a floresta

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Voltemos à pergunta: é possível o país se entregar a uma mobilização intensa, digna de períodos de guerra, para recuperar pelo menos uma parte suficiente da cobertura vegetal da Amazônia? Deixando de lado a questão da escala, não seria a primeira vez que faríamos algo assim.

Entrei no Google Maps e procurei por uma rua no Rio de Janeiro que fizesse referência ao major Manoel Gomes Archer. Tem duas: uma minúscula, de dois quarteirões, no Santíssimo, e um caminho no meio do parque da Tijuca. Esta última, pelo menos, é bastante apropriada. Mas pálida. O major Archer, como se vê, não é um personagem que consideremos importante.

Eis a história: no século XIX, a água potável das cidades não vinha de grandes reservatórios interligados, como hoje, mas dos rios que serpenteavam os morros e atravessavam a área urbana. No máximo, um cano captava a água de um desses cursos d’água e a conduzia por dentro de um aqueduto até o Centro. Um desses aquedutos está de pé até hoje e tem servido bastante para apoiar despachos na madrugada, já que o bondinho de Santa Teresa, que passava por cima dele, está fora de circulação.

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Acontece que, lá por 1860, a água do Rio de Janeiro, capital do Império, começou a faltar. As encostas dos morros cariocas tinham virado plantações de café (mais detalhes neste link ou neste, que faz um panorama histórico interessante). As nascentes secaram e a erosão assoreava o restante dos córregos. Os cariocas de 1860 estavam numa situação parecida com a dos paulistanos de 2014. O motivo era simplesmente a ausência da mata, ali onde hoje temos a floresta da Tijuca.

Com sua característica atenção para a vanguarda dos saberes de seu tempo, o imperador Pedro II deu a ordem do replantio e o responsável foi nosso Archer. Para recriar a mata sem a qual hoje não reconheceríamos o Rio, o major precisou de 80 mil mudas (alguns dizem 100 mil; para recuperar uma parte ao menos suficiente da Amazônia, provavelmente precisaríamos de centenas de milhões). O trabalho durou 13 anos a partir de 1862, e o resultado está visível até hoje. Quem toma banho de cachoeira nas Paineiras tem ao major Archer para agradecer.

Mas ele não é nenhum dos heróis no nosso panteão nacional. Considerando tudo que estamos vivendo neste início de século tão crítico, talvez fosse o caso de elevá-lo finalmente a essa condição. Instaurar o Dia do Major Archer, ou algo que o valha. Para resumir, eu diria que precisamos nos tornar um país Archer.

Mas, porém

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A área que seria necessário reflorestar é gigantesca, milhares de vezes maior do que o Parque Nacional da Tijuca, e está tomada por grandes plantadores de soja e gigantescas pastagens. A pastagem costuma vir antes da soja, por sinal. Outras notícias recentes dão conta de que o plantio da soja no Mato Grosso atrasou porque a chuva não veio. Fala-se também em quebra de safra para vários produtos plantados cá nos brasis. Aliás, uma listinha de notícias a respeito pode estarrecer (verbo da moda) qualquer um.

Essas informações todas, somadas à crise hídrica mais ao Sul, poderia soar um alarme até mesmo nos produtores. Afinal, o avanço do desmatamento deixou de ser apenas homicida para tornar-se francamente suicida. Ainda assim, parece que estamos indo na direção contrária à que seria recomendável.

Por que o alarme não soa? Por que o plantador não teme as condições que poderão comprometer sua própria atividade econômica? Tenho até medo de pensar em qual pode ser a resposta a essas perguntas. Não me contento em acreditar que seja ignorância. Afinal, estamos diante de um comportamento recorrente, para não dizer atávico. A predação pura e simples deu a tônica de muitos ciclos econômicos brasileiros desde a Colônia, a ponto de Monteiro Lobato dar o título de “Cidades Mortas” a seu volume de contos dedicados ao Vale do Paraíba. Quando a terra ali se esgotou para a exploração do café, a especulação agro-fundiária simplesmente deslocou-se mais adiante, São Paulo adentro, deixando para trás os personagens lombriguentos que o escritor de Taubaté representou tão bem, a começar pelo Jeca Tatu imortalizado por Mazzaropi.

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Mas isso também vale para ciclos mais recentes, como a industrialização, a consolidação financeira dos anos 90, até mesmo a expansão mais recente do consumo. Todos levados ao limite de maneira irresponsável, tentando extrair o máximo do sumo antes de largar o bagaço. Daí resultaram nossas inflações, nossos juros, nossos déficits. Mas também nossas cidades opressivas, nossas ruas apinhadas de carros, nossa célebre falta de qualificação da mão-de-obra.

Portanto, nada de surpreendente em que grandes donos de terra e cuspidores de commodities dêem pouca atenção para o risco em que sua própria atividade-mãe está incorrendo. Do ponto de vista do investimento, reorientar as escolhas de portfólio não é nada difícil. Qualquer gerente de fundos ou gestor de grandes fortunas, muito bem instalado na Faria Lima (e tomando água mineral, porque a do filtro não presta) saberá indicar boas alternativas, até mesmo levando em conta as flutuações de preços resultantes da mudança climática.

Do ponto de vista da própria terra, o custo da improdutividade futura é largamente compensado pelos retornos atuais do cultivo predatório, que, no meio-tempo, poderão ser aplicados de maneira para lá de rentável – vide o último parágrafo. Também é bom lembrar que, para atividades econômicas que se tornaram estratégicas dentro de um país (como os serviços financeiros nos EUA e a exportação de produtos de baixo valor agregado no Brasil), as perdas podem muito facilmente ser socializadas. Ainda mais na configuração política do Brasil contemporâneo, em que todo e qualquer governo é refém – que digo… – é necessariamente aliado das forças políticas mais ancoradas no poder do oligopólio.

Afinal de contas, quando falamos de oligarcas, latifundiários e ruralistas, sabemos que são indivíduos bastante poderosos politicamente, além de financeiramente e também, não raro, belicamente. Alguns estão aliados ao governo, outros à oposição. Tanto faz: do ponto de vista programático, não são muito diferentes do “pântano” (marais) que, na assembléia da França revolucionária, se aproximava dos grupos governantes ao sabor dos benefícios que poderiam obter. No que tange à possibilidade de efetivar seu comando sobre os rumos do país, são quase intocáveis.

O que fazer?

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Dá para imaginar Dilma Rousseff dando uma de Pedro II e ordenando um grandioso reflorestamento da Amazônia? Em que pese sua postura imperial e autoritária, eu diria que Dilma está mais para Floriano Peixoto que para Pedro II. Seu desenvolvimentismo toma como ponto de partida um país e um mundo que não existem mais. Como resultado, os ruralistas que se aproximaram dela, em particular a célebre Kátia Abreu, lhe aparecem como porta-estandartes de um Brasil desenvolvido. Nada mais anacrônico, além de falso.

Como resultado, enquanto China e Estados Unidos chegam a um acordo climático bilateral, o Brasil se recusa a assinar um documento global para zerar o desmatamento (e olha que nem chegaram a falar em replantar). A Alemanha desenvolve tecnologias que a colocam na vanguarda da energia renovável. A Inglaterra consegue reduzir sua pegada ecológica pesquisando métodos produtivos apropriados para um futuro, como se diz, sustentável. Israel racionaliza o uso da água ao nível das gotas. Países árabes investem em produção de alimentos em pequenas propriedades em pleno deserto. Outros tantos países já começam a idealizar a geração de energia com os chamados “smart grids”, que tornam as cidades quase autônomas na sua gestão energética, sem falar no reuso da água. Helsinki e outras cidades nesse mundão sem porteira estão começando a expulsar o automóvel de seu quotidiano.

Nós insistimos em Belo Monte, Tapajós e quetais. E comemoramos como loucos um punhado de usinas eólicas do Ceará (ainda mal e porcamente interligadas à rede) e os primeiros leilões de painéis solares. Incentivamos a produção de carros. Já as bicicletas não têm isenção de IPI, como as montadoras. E, para piorar, quando alguém resolve timidamente instalar algumas ciclovias, a população reage com tachinhas e ameaças de processo judicial. Nada muito animador.

Resumindo: um desenvolvimentismo cujo horizonte não seja a fronteira tecnológica, social e política não é desenvolvimentismo nenhum. É um engodo. Esse é o desenvolvimentismo de Dilma.

Itamar Franco visita a Volkswagen

Por outro lado, dá para imaginar a oposição liderando os esforços para romper com o ruralismo (e as oligarquias em geral)? Não se for uma oposição liderada por Aécio Neves (oligarca), José Serra (desenvolvimentista) e Geraldo Alckmin (o termo que eu ia colocar entre parênteses aqui poderia ser considerado ofensivo demais). Não enquanto Ronaldo Caiado for um de seus principais nomes. Não enquanto o mote oposicionista for um antipetismo aproveitador e cínico, incapaz de formular uma concepção de mundo para além do já mencionado escritório da Faria Lima. Não enquanto o opositor típico for um saudoso do poder discricionário e elitista da República Velha. Alguém que empunha a bandeira do liberalismo econômico simplesmente porque parece lhe permitir uma liberdade de atuação opressiva, redundante e, claro, insustentável.

Uma oposição cujo horizonte não seja a superação das insuficiências daquele desenvolvimentismo mencionado acima não passa de intriga palaciana e sede de controlar os aparelhos de Estado. Nada mais. É outro engodo.

Mais uma vez: o que fazer?

Confesso que estou começando a esgotar meu estoque de cenários para imaginar e tenho vontade de terminar este texto com um honestíssimo “não sei o que fazer”. Até mesmo Marina Silva chegou a fazer declarações de simpatia pelos ruralistas durante a campanha presidencial. A meus ouvidos, isso soa como um furacão Katrina. Parece que a iminência do desastre é invisível, como os rios voadores de vapor. Com uma diferença: esses estão começando a sumir. Já a crise hídrica está começando a aparecer.

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Acontece que desaprendemos a conceber a idéia de uma dádiva tão pura como a água dos rios voadores amazônicos. Compreendemos muito bem o que seja eficiência. Sabemos calcular os pontos de equilíbrio quando há troca, preferências reveladas, sinais de preços: monetização. Temos plena noção do que seja a entrada de um insumo, com seu custo, e a saída de um produto, com seu preço de mercado. Mas o que significa que a vida moderna de todo um subcontinente seja simplesmente uma dádiva? Como responder com dignidade, e não só com eficiência, a uma entrega desprovida de cálculo, interesse ou reciprocidade? Como reconhecer que o plano em que ocorre esse gênero de ciclo geofísico (e também ecológico, biológico…) é irredutível às determinantes do nosso modo de vida? Ou seja, como reconhecer que, ao contrário, são esses nossos determinantes que só podem até mesmo ser postulados a partir desses ciclos?

Com essas perguntas todas, tateando um muro espesso e alto, parece que chegamos a uma janela que apresenta a paisagem ainda mais carregada do que tínhamos conseguido ver. Se a pergunta ainda gira em torno do que fazer para gerar a impulsão necessária para mobilizar o reflorestamento, ela agora abandonou o campo do convencimento político para entrar numa esfera quase antropológica. Ou seja: se nos entendemos apenas como agentes de uma reciprocidade interessada, podemos chegar a algum lugar? Seremos capazes de dar aos nossos gestos e aos nossos projetos uma outra nomenclatura, que possa fazer frente à condição de profunda assimetria em que nos encontramos perante os ciclos do planeta?

Daí o apelo para que ponhamos o foco na figura do major Archer, nem que seja como símbolo. Mais ou menos como o fusca, na época de Juscelino, era o símbolo daquele antigo, já ultrapassado desenvolvimentismo, que ao menos teve o mérito de jogar o Brasil finalmente no século XX. Archer era um membro da elite imperial que ganhou o título de “major” por pertencer à Guarda Nacional, uma força semioficial, basicamente uma daquelas milícias oitocentistas que deram tanto trabalho a nossos vizinhos hispanofônicos. Foi alguém que reagiu ao desastre que tinha diante do nariz com uma atitude sagaz, corajosa e humilde.

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Com isso, introduziu a silvicultura no Brasil. Com isso, também, garantiu que as gerações seguintes de cariocas tivessem uma relação com seu entorno, sua cidade, que é única – apesar de todas as forças no sentido oposto, tantas e tão fortes. A experiência foi aprendida na tentativa e erro, observando a reação da terra, das plantas pequenas, das pedras. Deu tão certo que não só a floresta segue lá, linda e majestosa (e é majestosa mesmo, o adjetivo cai como uma luva), como o major foi convocado para repetir o trabalho serra acima, em Petrópolis.

A figura do major Archer, como símbolo, sugere essa disposição para o aprendizado, a experimentação, a reversão dos hábitos, a construção de uma nova realidade urbana e social. Hoje, não há desenvolvimentismo digno do nome que não passe por esse ícone Archer, o ícone da humildade perante o desastre, ou melhor, da disposição de transformar-se para não se deixar deformar. Não quero dizer que um símbolo sozinho consiga fazer frente a poderes políticos tão enraizados, poderosos e violentos como os que terão de ser enfrentados. Mas posso afirmar que, sem passar por um processo de ressignificação como esse, dificilmente chegaremos a acumular as forças de que precisamos para ontem.

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