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A regra impossível

O futebol aderiu tarde às tecnologias de verificação. Mas quando aconteceu, as consequências foram metafísicas. Esqueça as intermináveis discussões sobre o toque de mão involuntário ou a violência de uma falta. Todas as polêmicas do “árbitro assistente de vídeo” (ou VAR) empalidecem perante o fato de que uma das regras do esporte dito bretão é tornada inviável, desprovida de sentido, ontologicamente absurda, quando aplicada graças à imagem. Trata-se da lei do impedimento, criada há mais de 150 anos, sempre contestada e nunca abandonada, irritante, mas tenaz. Em casos de impedimento, seja para acertar ou errar, o VAR está sempre mentindo.

Deve ser um caso único. O uso da tecnologia para garantir decisões mais precisas e justas é coisa antiga no esporte. Já nos anos 80, aquele jogo americano da bola oval contava com juízes vendo as partidas pela televisão. Modalidades tradicionais, como atletismo e natação, instalam sensores nas linhas de chegada há tempos. Sem falar do turfe, com seu célebre photo finish. O futebol, esnobe que só, fez fama de refratário à modernidade, recusando-se a ouvir falar em dispositivos tecnológicos quando até mesmo as redes de televisão já se valiam de replay, câmera lenta, linha de impedimento e outras distrações para entreter o espectador.

Até que chegou o VAR, recebido como a salvação para os infindáveis erros de arbitragem. Foi em 2018, já valendo na Copa do Mundo da Rússia. Ironicamente, a IFAB, que estabelece as regras do futebol, escolheu como lema “mínima interferência, máximo benefício”. Como vamos ver, é por definição um mote inviável.

A novidade trouxe alguns pequenos problemas. Uma queixa comum é a frustração de esperar pela confirmação de um gol, desinflando a alegria de torcer. Mas em geral os vitupérios contra o VAR dizem respeito a erros de decisão; justamente o que se esperava que ele resolvesse, quem diria. Mas até aqui não temos nada de surpreendente: a esperança de que o vídeo fosse uma panaceia, que daria fim às brigas com a arbitragem, sempre foi exagerada.

Impactante mesmo é perceber que essa tecnologia, só por existir, inviabiliza a aplicação de uma regra específica, tal como está enunciada. Simplesmente porque o texto tem uma base metafísica com a qual a lógica do dispositivo bate de frente. Pois é isso que acontece no impedimento. Tão logo está disponível o recurso ao vídeo, ele se revela como a ficção que é. Isso, por si só, não seria um problema: regras são mesmo ficções, sem as quais todo jogo é impossível. Mas o VAR impõe tratá-la como uma realidade quase natural.

11a regra

Todo amante do futebol conhece sua 11a regra. Está impedido o jogador que, no momento em que o companheiro lhe passa a bola, tem menos de dois adversários à sua frente, ou seja, mais perto da linha de fundo; o goleiro costuma ser um deles, mas nem sempre. Isto só vale no campo de ataque e passes “para trás” estão excluídos. Mãos e braços não contam e “na mesma linha” não é posição irregular. Diz o livro de regras que deve ser considerado como momento do passe “o primeiro ponto de contato da ‘jogada’ ou ‘toque’ da bola”.

Uma fonte de controvérsias é o adendo de que a infração só é marcada se o jogador “em posição de” impedimento interfere ou participa do lance. São expressões difíceis de definir, deixando ao bom senso do juiz decidir quem participou do quê na jogada. Mas o verdadeiro problema, o que pode mesmo dar briga, é que a regra sempre exigiu da arbitragem uma atenção e um olho clínico a toda prova, sobretudo na velocidade em que o jogo é jogado hoje. É facílimo errar um impedimento. Justamente essa falha humana era o que se esperava resolver com o VAR. Em boa medida, funcionou, ainda que imperfeitamente.

Já se questionou de tudo na 11a regra: o jogador “em posição irregular” participou ou não do lance? O atleta bloqueou o campo de visão do goleiro? Seria o caso de restringir o impedimento para espaçar o jogo, ou quem sabe abrir mão dele, legalizando a “banheira”? E por aí vai. Mas uma coisa nunca foi posta em dúvida: o sentido da interessante expressão “momento do passe”. Jamais foi preciso perguntar o que é esse momento, nem tampouco o que quer dizer um momento, questão ainda mais obscura e, bem, metafísica.

Leve em conta a vigilância da câmera e o cenário muda. Um exemplo concreto ocorreu em 2019 na Inglaterra. Um gol do Manchester City sobre o Tottenham foi anulado, provocando uma breve celeuma. O jogo terminou empatado e a anulação decorreu de um impedimento, como se diz, milimétrico. Acontece que a câmera que capta as imagens da partida gera 50 quadros por segundo, acima do dobro dos 24 tradicionais do cinema, mas bem abaixo da câmera “ultra-lenta”, que produz nada menos que 10 mil imagens nesse piscar de olhos.

A liga inglesa explicou que o encontro entre pé e bola, no “momento do passe”, ocorreu entre dois quadros, ou seja, no intervalo de 0,02 segundo. Porém, ponta-de-lança, atacante e zagueiro corriam a toda velocidade, o que implica um deslocamento de até 38 centímetros nesse vazio da imagem. Para uma decisão milimétrica, essa centimetragem é uma distância quase planetária. Os juízes, na sala do VAR e no campo de jogo, tiveram que escolher entre dois quadros congelados: no primeiro, não havia impedimento. No segundo, sim. Ficaram com o último. Acerto ou erro?

“Ora (direis), se pelo menos fossem mais quadros por segundo!” Ledo engano. Essa resposta erra o alvo completamente. O problema não está em determinar o instante do contato entre pé e bola; longe disso. Mesmo que fosse, ainda assim não tem velocidade da câmera que resolva. Toda a embrulhada está na noção do momento do passe. Quando fizeram a regra, ninguém podia prever que a tecnologia nos obrigaria a perguntar: que momento é esse?

O momento

Se agora, depois de tantas gerações, passa a fazer sentido perguntar o que é o momento do passe, é porque existe um aparelho que diz exibi-lo, explicitá-lo, para além da dúvida razoável. Esse objeto é a imagem congelada em um quadro. Nela se aplicam as linhas que, conforme aceitamos por convenção, marcam a posição do atacante e do defensor. Com isso, acreditamos piamente que está bem definida a condição de impedimento.

A primeira pergunta que vem à cabeça de qualquer um é a mesma que foi feita pela imprensa inglesa em 2019: como se chega a esse quadro? Por que não o quadro imediatamente anterior, ou posterior?

Antes do VAR, o momento não tirava o sono de ninguém. Não havia contradição entre a imprecisão da regra e o caráter arbitrário da decisão. Porque o passe não é um ponto no tempo, mas um movimento, ainda que rápido. Mesmo que se convencione determinar o primeiro toque do pé na bola como momento do passe, ainda falta explicar que primeiro toque é esse, em que escala devemos procurá-lo, se é a tangente geométrica, uma fricção molecular, um contato claramente visível na imagem, a deformação da bola. É o retorno do velho problema da lógica: quantos grãos de areia configuram um monte?

Mas a verdadeira crise não é lógica, é metafísica. Olhando mecanicamente para o momento do passe, supondo que seja um chute, o que vemos? Uma perna que se ergue, avança, impõe sua força à bola; cujo couro se deforma, cujo ar se comprime, enquanto o pé segue avançando impulsionado pela musculatura; até que o material da pelota reage, volta a se expandir, e as trajetórias do pé e da esfera se separam. Tudo isso é o passe, realizado em frações de segundo.

Não é à toa que usamos termos tão imprecisos: “momento”, “instante”, “hora”. Tempo curto, porém espesso. E durante esse intervalo, os demais jogadores também se movimentam. Não se trata de nenhum ponto no tempo, coisa que aliás não existe, exceto como recurso que inventamos para facilitar nossos cálculos.

A definição do “momento do passe” como “primeiro contato” é uma admissão velada de que o enunciado da regra tem uma imprecisão intrínseca. Talvez isso explique por que, no livro das “leis do jogo”, está expresso em uma mísera nota de rodapé. O “primeiro contato” não só não corresponde ao momento do passe, como não é nem sequer o que diz ser, seu “início”. Com a mesma validade, poderíamos considerar que o passe nasce antes: quando o jogador começa a tomar a atitude de chutar, levantando a perna; ou depois: quando a bola já se desgarrou do pé e o gesto já não pode mais ser outra coisa senão um passe, descartando o drible e o arremate. Qualquer uma dessas definições seria convencional e insuficiente.

Não adianta. O passe é um movimento, ainda que rápido. Aliás, é um gesto, movimento humano. No mais das vezes, o atacante que pretende receber a bola e o defensor que quer evitar o perigo também estão se movendo. Assim como o bandeirinha, cujo dever é fiscalizar as posições. Sua percepção, que é humana, deve captar os deslocamentos e coordenar suas temporalidades, para tirar uma conclusão sobre a adequação das trajetórias à 11a regra.

Parece impreciso, prenhe de erros. No entanto, tudo vai bem enquanto todos os envolvidos estão no mesmo plano de realidade: o da capacidade humana de agir, reagir, perceber e relacionar. O momento do passe, então, é uma coisa só, captada em sua duração, junto com a duração dos outros jogadores e a do próprio bandeirinha. O impedimento é imperfeito, mas viável. Faz sentido para todos, porque é da mesma natureza de qualquer experiência que temos do simultâneo. Podemos aceitar, com falha humana e tudo.

O VAR implode essa naturalidade porque lança por terra a coerência do mover-se, questionando a essência do movimento. O vídeo congelado trata como realidade e concretude o que é convenção, ferramenta do pensamento: a decomposição do tempo em pedaços ou, em outras palavras, a divisão do deslocamento em uma série de etapas, todas imóveis. Esquecemos que fatiar o tempo é um recurso intelectual, talvez porque costuma ser eficaz, talvez porque com a câmera em alta velocidade não chegamos a ver a imagem borrada.

Mas continua sendo um recurso mental. Há um século, o filósofo Henri Bergson já insistia que o deslocamento, como tal, é indecomponível: cada parte do movimento é também um movimento. Ainda contém algum passado e já envolve algum futuro. A imagem congelada promete o impossível: ao decompor o gesto do atleta, deveria revelar milagrosamente o momento do passe, o instante fixo, um “T0” que não aceita se limitar a ser uma abstração, exigindo a condição de prova definitiva no julgamento do lance. Quando vemos a imagem congelada, acreditamos nesse instante fixo, esquecendo que o quadro anterior e o seguinte mostrariam algo um pouco diferente, sem deixar de ser também momento do passe.

Mentira

Com as demais regras para as quais a tecnologia tem sua contribuição a dar, nada parecido acontece. A diferença entre o impedimento e infrações como a falta violenta ou o toque de mão é de natureza, não de grau. Por exemplo, a introdução do VAR provocou uma enxurrada de pênaltis por bola na mão. É provável que acabem fazendo algum ajuste na interpretação dessas infrações, antes que o jogo se torne uma sucessão de penalidades “braçogênicas”. Mas casos como esse são um mero problema de adequação, talvez incômodo, mas circunstancial: ajustada a orientação dos árbitros, segue o jogo.

Ou então: pode um sensor nas traves julgar se a bola entrou inteira ou não no gol? Perfeitamente. Não é preciso determinar em escala nanométrica onde terminam a bola e a linha no gramado. A convenção basta: se o dispositivo no poste captou a passagem da pelota, então o tento será validado. Para todos os efeitos, isso é uma regra, talvez a nova definição de gol, levando em conta a existência da tecnologia.

Mas o caso do impedimento não é de convenção. Não está em jogo o limite espacial em que ocorre o primeiro contato do pé com a bola. O problema é, de fato e de direito, metafísico: o que é o momento do passe? Como lidamos com a duração? Que violência podemos fazer ao tempo e seu modo de fluir? E, de fato, decompô-lo dessa maneira, postulando uma noção vaga como o primeiro contato do pé para especificar o momento do passe, é uma violência.

A lei do impedimento foi criada tendo em vista a sensibilidade humana. Não no sentido de que leva em conta as suas limitações, mas no de que corresponde à sua estrutura, ou melhor, ao seu funcionamento. Enquanto não surgisse um aparelho que operasse segundo o princípio específico da decomposição do tempo, o problema metafísico jamais teria emergido.

Mas o dispositivo veio, o problema emergiu. O VAR abala o impedimento na essência. O enunciado faz perfeito sentido quando o passe é um movimento, ocorrendo no meio de uma série de outros: atacantes, defensores, árbitros. Mas é absurdo quando ele é um ponto, um quadro fixo, uma imagem congelada. Não pode haver mínima interferência se a própria natureza da regra é posta em xeque. A interferência é absoluta, para o bem e para o mal. O VAR é enganador quando dá a crer que captou o momento do passe. O que ele fez foi decompor o movimento em quadros estáticos, decretando um deles como matriz de uma determinação que é toda sua, pouco tem a ver com o texto da regra e colide com a matéria do jogo. Isso não quer dizer que ele não funcione, não cumpra seu papel. A máquina, para funcionar, não precisa dizer verdades. Só precisa dar um resultado que nos sirva – ou que aceitemos, ao fim e ao cabo. E isso, em geral, o VAR faz, graças à sua falsidade metafísica.

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45 minutos de um início de século

Decido esticar um pouco mais o motor, abusar da energia que resta ao fim de uma jornada já intensa, aproveitar que os olhos e os neurônios ainda estão embalados para trabalhar até a pane no sistema nervoso. Um erro, nem preciso dizer: não bastasse a epopéia de encontrar uma porta aberta para deixar o edifício, é subúrbio, é noite, e em meio de semana há menos trens. Um quarto de hora na plataforma, à espera da composição, acompanhando o vapor que minha respiração lança no ar, dificilmente constitui um prazer. São nove horas.

Já a meio caminho ouço à distância – na verdade, não tão longe – o buzinaço. Cinco para as nove, provavelmente. Sigo meu caminho. De imediato, imagino que seja o trânsito na via expressa, agravado por um acidente, quem sabe. Mas essa interpretação é tola e logo se dissipa: não buzinas, buzinaço. Coisa muito diferente. Só pode ser futebol, percebo, corrigindo-me. Lembro de uma notícia lida pela manhã: é noite de jogo da França e os autóctones estão exasperados, temerosos de ficar fora da Copa. Está esclarecido o mistério, julgo, e me engano novamente. Prossegue a barulheira. Estremeço como Proust (com o perdão do paralelo) estremeceu ao sentir o pavimento irregular da rua e ser atirado em memórias de Veneza e Balbec. Quanto a mim, é como se estivesse diante de uma UERJ da vida. Em noite de gala.

Por um momento, me perco da realidade. Faltando dois para as nove, sou despertado por um berro agudo. Percebo que já subo a rampa da estação e uma motoca com dois molecotes vem descendo bem rápido e em ziguezague. O berro é da buzina, desagradável mas ridícula, descontado o risco de atropelamento. Salto de lado, desejando secretamente esticar a pasta para causar um acidente. Deve ser o mesmo desejo secreto da pequena senhora que, poucos passos atrás de mim, também dá um pulo e dirige à motoca um palavrão. Já vão longe os meninos, empunhando uma bandeira que, no escuro, não consigo divisar.

Uma tela azul informa que o próximo trem só chega às nove e quinze. Suspiros meus e de quem mais tenha visto a informação. Desço as escadas e conto, por falta do que fazer, os gatos-pingados que esperam sob a luz tíbia das lâmpadas parcas. São 21; mas sou mais um, não posso esquecer de contar a mim mesmo: somos 22. Segue o buzinaço. Os franceses, imagino, vão animados para o Stade de France . Nove e cinco.

Além do alambrado, escuto mais berros. Posso enxergar uma pequena multidão à distância e logo concluo que é mais gente a caminho do estádio. Surpreende-me, porém, o mantra entoado: nada de “Allez les bleus!”, mas algo diferente. Impossível decifrar, com a concorrência de um trem que passa vazio. Passa ao meu lado um menino, doze anos talvez, vestindo uma camiseta branca, com um escudo verde. Reconheço a bandeira da Argélia. Apuro o ouvido e consigo distinguir as palavras do canto: One, two, three! Vive l’Algérie! Uma rima bilíngüe, coisas da globalização, e de autoria de um povo que fala ainda um terceiro idioma. Nove e dez, o frio já trinca a minha mandíbula, o barulho dos torcedores embandeirados vai se aproximando. Seria então um França x Argélia? Seria no Stade de France? Nesse caso, que coragem demonstram os magrebinos. Vão atravessar a cidade torcendo contra o mandante! Ali no subúrbio, onde os conjuntos habitacionais escondem e contêm os tons de pele e as línguas menos estimados no país, eles estão seguros, diria mesmo que estão em casa. Mas no centro da capital, sabem os deuses o que pode suceder.

São nove e dez. O garoto uniformizado está mais uma vez por perto. Peço licença e pergunto com quem a Argélia vai jogar. Ele me encara como se eu viesse de cair da lua. Em poucas palavras, ele explica: já jogou, já ganhou, está na Copa e nós vamos comemorar em Saint Michel. Eu também me sinto como um alienígena. Parabenizo o rapaz e desejo sorte no Mundial. Meu inconsciente, enquanto isso, divide-se em duas ponderações. O menino fala um francês perfeito. Ele é francês. Certamente nasceu por aqui. Mas está identificado é com o país de seus ancestrais, como toda aquela multidão que vai se aproximando da estação, cada vez mais barulhenta.

Rumo a Saint Michel, a praça apinhada de turistas onde têm lugar todas as comemorações esportivas da cidade. Como quando os bleus ganharam da Nova Zelândia no rúgbi ou, hélas, do Brasil no futebol. Esta noite, outro país fará sua celebração de vitória, no coração da antiga capital imperial, diante da fonte onde o Arcanjo degola o dragão. Sabem os deuses, ainda, o que pode acontecer. Ponho-me a especular se não haveria um certo fundo político, de cunho étnico, histórico, sei lá eu, nessa manifestação esportiva. Pode ser. Mas certamente não para o menino afogueado e imberbe que se posta à minha frente. Tento parecer simpático e explico que não acompanho muito, na verdade quase nada, do futebol europeu ou, no caso, africano. Por outro lado, e a despeito de um amortecimento em mantas e cachecóis, também estou num espírito futebolístico. Meu time joga hoje, estou apreensivo, e ainda por cima o jogo cai no meio da madrugada, em função do fuso horário. O garoto não quer saber, está provavelmente incomodado por aquele sujeito – talvez até eu lhe apareça como um velho – que puxa assunto assim, sem mais, na plataforma do trem.

Ele não está para confraternizações. Não com brasileiros, ao menos. São nove e doze, o one-two-three já desce os degraus para tomar o trem que passa em três minutos. Mais uma vez, sinto como se fosse a estação Maracanã, aquela massa humana magnificada pelo próprio número, estapeando os painéis publicitários como se fossem tambores e provocando os poucos que permanecem alheios, fingindo ignorá-los. Nada no muito é mais importante do que o destino daquela equipe, é o que crêem os argelinos, como creram e seguirão crendo todos os torcedores em todos os tempos. Reis e generais não fazem a história, mas centroavantes e arqueiros. Acho curioso como eles falam em francês entre si, sem sotaque algum, afora as gírias do subúrbio. Estranha situação, penso. Estar ligado a uma terra pelo corpo e a outra pela alma. O imperialismo deixa suas chagas, não apenas nas colônias, mas na própria metrópole. Clemenceau dificilmente terá imaginado que um dia a juventude argelina tomaria de assalto a praça de Saint Michel. Pois é o que farão, esta noite, os netos e bisnetos de um povo que, naquele tempo, nada mais era do que carne para moer na luta contra o Kaiser.

Chega a composição às nove e quinze, numa surpreendente pontualidade. Os torcedores fazem também o trem de tambor. Pá Pá Pá! Os passageiros se assustam. O canto ainda é o mesmo: one-two-three, vive l’Algérie! Não sem um certo desprezo bairrista, concluo que o brasileiro é muito mais criativo, cheio de cantos diferentes, alguns brilhantes, outros dementes, incitando uma violência tão à toa quanto um jornal esportivo. Procuro um vagão com menos bandeiras e apitos, na esperança de viajar sentado. Qual. Sou obrigado a seguir em pé e o trem ainda vai lento, suponho que por causa dos torcedores, talvez se pendurando para fora ou qualquer coisa dessas que torcedores fazem, como sabemos. Na primeira parada, nove e vinte, entra uma moça de xador e bandeirola na mão. Ela agitará seu brinquedinho timidamente. Não deve ter o hábito do futebol.

Mais alguns minutos e estamos na estação central, onde vamos nos separar. Sigo ao norte, eles ao sul, rumo ao grande objetivo estratégico, a praça Saint Michel. Consigo descer mais rápido e avanço na direção das catracas e da esteira rolante. Nove e vinte e quatro, ouço à distância a aritmética anglo-saxã dos argelinos, felizes da vida. Mas já nada tenho com eles, ou pelo menos é o que creio.

Mais veloz que eu, chega à esteira rolante uma pequena companhia de policiais. São sete. Caminham bem à minha frente. Como de hábito, ponho-me a considerar sua aparência ameaçadora. Todos grandes, fortes como colheitadeiras, com suas jaquetas e calças negras, estofadas para aumentar a impressão de musculatura. Nada que lembre os tradicionais e simpáticos uniformes da política francesa. São todos muito brancos e nenhum parece interessado na vitória da Argélia. Cabeças raspadas debaixo das boinas também negras e um cinto de utilidades à la Batman, com pistola, lanterna e um mostruário de bugigangas que não sei identificar. Com seus coturnos de sola grossa, são todos muito altos, e cada passo ribomba pelo subterrâneo. Quem passa no sentido oposto espia discretamente, com uma certa perplexidade e um grande receio de encarar diretamente aqueles agentes da, como se diz, ordem. Alguns olhares também se dirigem para mim. Esses deixam entrever uma certa pena, como se imaginassem que estou sendo detido.

Aquelas figuras, com seus cassetetes, suas luvas, suas algemas, também me incomodam. Espero poder me afastar deles assim que termine a esteira. Mas, para minha grande decepção, eles tomam o mesmo túnel que eu, sobem os mesmos degraus. Esmagam a escada rolante como se a quisessem escangalhar. Nem imagino de onde vem esse ódio. Nove e vinte e oito, estamos todos, os policiais e eu, na mesma plataforma do metrô. O que querem aqui? Para onde vão? E por que sete, cáspite?

A resposta aparece espontaneamente às nove e meia em ponto. Do outro lado, uma vibração abafada parece vir do túnel. Ela cresce e se transforma num som conhecido: one-two-three, vive l’Algérie. Em poucos instantes, a plataforma oposta está inundada de jovens em verde e branco, empunhando as bandeiras com o crescente – uma delas enorme –, pulando como crianças e fazendo desta vez as máquinas de refrigerante de tambores, que denunciam a falta de ritmo. (Nisso os brasileiros também somos melhores.) Notável, me dizem meus botões, como as torcidas se parecem no mundo inteiro.

Ao mesmo tempo, minha visão periférica capta um movimento rápido. São os policiais, que afastam os viajantes sem grande gentileza e se perfilam diante dos trilhos, olhos petrificados e fixos na pequena multidão festiva. Espinhas retesadas, todos. Alguns cruzam os braços, outros apóiam os punhos na cintura. O que para mim era uma torcida, para eles é um bando de baderneiros, pelo visto. Mas os baderneiros não dão bola para a posição de ataque dos predadores, separados da enorme presa por uma vala eletrificada. A festa continua, a cantoria, a barulheira. O poder de dissuasão dos mamutes públicos é nula diante do contentamento magrebino.

É nove e trinta e três quando chega o metrô para os torcedores e demais passageiros na direção contrária à minha. Eles embarcam sem conceder um mínimo olhar às hostes da repressão e da ordem, aos sete bravos touros que não deixam de encará-los, mesmo quando as portas se fecham. Não há contato, não há comunicação. A disparidade das emoções e intenções é tão radical que encerra os dois grupos em universos isolados. Ainda bem, concluo. Provocações de parte a parte não poderiam terminar bem.

Restabelecido o silêncio na estação, penso que os policiais vão retomar sua conversa ali mesmo. Qual nada. Mal partiu o trem, nove e trinta e cinco, o mais velho e provavelmente mais graduado dá um tapa ligeiro no ombro de um outro e sentencia: “pronto, podemos ir”. Como se abrissem uma comporta, todos relaxam. Os rostos de pedra se tornam milagrosamente humanos. Contando piadas e trocando receitas, eles viram as costas e partem, de volta para casa ou para o quartel – ou ambos, por que não? Eles estavam ali com o fito único de se revelar em ameaça diante da multidão de argelinos. Nada mais. Exercida a pressão, missão cumprida. Todos os presentes vão se lembrar de que, afinal de contas, não estamos seguros coisa nenhuma.

Finalmente, tudo está tranqüilo. Sem tambores, sem rimas bilíngües, sem tropa de choque. Reflexivo e algo entristecido, tomo o metrô às nove e trinta e seis. Às nove e quarenta, estou caminhando para casa. Não me encontro mais no subúrbio, mas ainda muitos carros passam na avenida como bandeiras alviverdes, crescentes, buzinaços, one-two-three e Yallah, yallah. Esfomeado e morto de frio, aperto o passo, mas só tenho um pensamento: oxalá a polícia não invente de ir à praça Saint Michel.

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