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Imagens que não fizeram história (3): candangos e índios

A terceira fotografia da série de “imagens que não fizeram história” – e eu aqui pensando que iam ser só duas! – talvez cause um certo estranhamento; afinal, é uma fotografia muito recente, que nem “fez história”, nem deixou de fazer. Posso tentar contornar esse estranhamento dizendo que a imagem “ainda” não “fez história”, mas fará, por tais e tais motivos. Então este texto é uma aposta? Não faz mal, que seja. Estou disposto a apostar de vez em quando.

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Por outro lado, tudo gira em torno dos jogos que se possam fazer com essa fórmula: “fazer história”, que é dúbia e ainda mais maleável quando a usamos no negativo: “não fez”! Seja como for, quando dizemos que uma imagem “fez” história, geralmente estamos ressaltando seu caráter icônico, ao sintetizar nosso conceito de um determinado período ou acontecimento, esse sim “essencialmente” histórico. A imagem em questão é, portanto, a imagem visual referente a uma imagem mental de valor coletivo. A imagem que efetivamente “fez” história é aquela que aparece nos manuais escolares, nas retrospectivas dos telejornais, nas páginas não-numeradas, impressas em papel mais caro, de livros editados décadas depois, mas só para reforçar uma outra imagem e uma outra narrativa, da história que “se fez”, retratada ou não.

Então “fazer história”, no fundo, significa nada mais do que reaparecer a cada vez que alguém quer pontuar a memória social e, para isso, recorre ao ícone mais à mão. “Renúncia de Jânio”; “Guerra do Vietnã”; “Exército Soviético em Berlim”: para cada um desses sintagmas, imediatamente aflora na mente do leitor uma determinada imagem. E dificilmente vou perder dinheiro se apostar, para cada caso, que imagem será essa.

Se a fotografia que escolhi, como imagem, não fez história ainda, porque acabou de ser tirada; mas intimamente sentimos que está em sua essência um certo “fazer história”, será que estamos falando do mesmo caráter icônico?


Valter Campanato, da Agência Brasil, é o profissional responsável por esta peça tão linda. Na terça-feira, a manifestação de 1500 lideranças indígenas contra a PEC 215, no eixo monumental, acabara de ser interrompida por um temporal. Temporais, como sabemos, não são exatamente o evento mais corriqueiro em Brasília. Mas este grupo de índios (algo entre 12 e 14) continuou a fazer a dança ritual que estava fazendo como parte do protesto.

O fotógrafo capturou a dança na chuva bem quando ela passava diante do Monumento aos Candangos, que parece reverberar, na vertical, a marcha dos índios. O pé d’água, que borra as figuras, deixa impassível o bronze do monumento, mas aproxima ambas as formas por realçar seus contornos e esconder os detalhes. Passam a ser índios tão abstratos quanto aquelas duas figuras estilizadas, supostamente representando os construtores da “novacap”, tantos deles vítimas fatais do delírio de ocupação do Planalto Central…

Os candangos que empunham cajados; os índios que empunham armas. Alinhados em cruz, como se buscassem sinalizar uma simetria histórica. Com isso, a própria composição se torna o vetor pelo qual a imagem lança seu apelo ao passado e situa-se na história, fazendo-se perante a história e, se não propriamente “fazendo história”, pelo menos fazendo da história alguma outra coisa.

Ou melhor, para ficar menos enigmático, talvez seja o caso de inverter a exposição: enquadrados diante da simbologia presente de figuras do passado (o Monumento aos Candangos), os índios trazem o que “já foi” para junto do que “está sendo”, fazendo-os colidir, transformando-os em uma terceira coisa.

Uma constelação, como diria Benjamin?

Afinal, o que é um candango? O que é um índio? Em mais de um sentido, o candango (não o morador de Brasília, bem entendido, mas seu construtor) é o paradigma do lugar reservado ao índio, e não só a ele, no projeto nacional brasileiro. A mão-de-obra precária, depauperada, aculturada (esse talvez seja o traço mais essencial), disposta a deslocar-se em péssimas condições pelo território, na medida do avanço do extrativismo e demais atividades que reproduzem sua lógica. Disposta a morrer por acidentes de trabalho, por doenças que resultam da insalubridade, por violência.

É o mestiço, mas não segundo a perspectiva brilhosa de um amalgamento das raças ou coisa que o valha, e sim pelo esvaziamento das identidades (étnicas, raciais, lingüísticas) do colonizado e/ou escravizado. Esvaziamento que se opera enquanto é barrado o acesso à identidade do colonizador: o branco, europeizado, herdeiro de Dom Antônio de Mariz. É o “pardo”, aquele de cujo rosto não se desenham nem se esculpem os traços, como no monumento que o homenageia na Praça dos Três Poderes. A imagem nítida da construção de Brasília, que guardamos como ícone no fundo da memória, é a do rosto sorridente de Juscelino Kubitschek, acenando à frente de um Congresso cercado de andaimes.

Já o índio é o oposto disso: o obstinado caiapó, ashaninka, tukano, ianomâmi. É o muro em que esbarra o projeto nacional, naquele momento surpreendente em que alguém insiste na autodeterminação. É o desmentido de Rondon. É o rosto cujos traços a chuva pode borrar numa fotografia, mas o escultor não borrará no monumento. Se lá atrás o bronze dos candangos pesa sobre a Praça dos Três Poderes, com seus oito metros de altura – como uma sentença, podemos dizer –, aqui na frente a dúzia, pouco mais, de índios a atravessa, com a leveza realçada pela chuva.

Talvez seja esse o motivo pelo qual muita gente fica tão horrorizada e perturbada quando vê um índio de bermuda ou com a camisa do São Cristóvão. Ali está, materializada, a assinatura da aculturação. Então por que a recusa em admiti-la? A bermuda não é, nesse raciocínio, objeto de uso, mas mercadoria; não pode ser vista como concessão do mundo civilizado, só como porta de entrada ao sistema produtivo e à cultura que passou a lhe servir de penduricalho. O renitente índio que aceita a bermuda mas não aceita ser “pejotizado”, que continua empunhando seu arco mas não quer ir para a favela empunhar um .38 contra a polícia, está enfiando seu tacape bem no meio da engrenagem dos tempos modernos. Ou seria dos Tempos Modernos?


Mas… se é possível enxergar na fotografia um vetor de conexão cronológica, nada impede de procurar nela também um vínculo topológico, afirmando que a imagem é capaz de operar uma amarração que ressignifica a geografia. E se fizer isso, ela também dá um novo sentido ao território, com seus conflitos internos e seu enraizamento no planeta, do qual aparentemente não é tão fácil escapar. Acho que é possível ler essa imagem assim, mas vai ser necessária uma certa dose de sarcasmo. Não que isso me incomode!

O olho treinado pela televisão – que é o meu e, muito provavelmente, o seu também – quase certamente fará a imediata associação entre índios avançando em grupo debaixo de um toró e a expressão “dança da chuva”. Para o olho treinado pela televisão, o que é um índio? Ora, é alguém que faz uma dança da chuva. Porque quem dança “na” chuva não é o índio, é Gene Kelly, mas só porque tem uma câmara na frente, a chuva é de mangueira e a cantoria vem em playback.

Sem essa tecnologia toda, prossegue o raciocínio, o índio convoca a chuva dançando. E assim o reconhecemos como índio, com nosso olhar formado pela televisão. Digna de nota é a poesia embutida na idéia de convocar a chuva com uma dança: o moderno, o branco, o tecnológico, o civilizado, convoca a chuva bombardeando nuvens. Um bombardeio, pois: notória invenção do moderno, branco, tecnológico, civilizado.

Mas às vezes nem o bombardeio funciona, então é preciso recorrer… à dança? Parece ser o que fez o governo de São Paulo – moderno, branco, tecnológico e civilizado – no fim do ano passado, quando, a crer na imprensa local, entrou em contato com a Fundação Cacique Cobra Coral para ver se fazem chover em São Paulo. A fundação em questão não é indígena; é espírita, mas parte da premissa de que sua presidente recebe o espírito do cacique Cobra Coral (do qual temos poucas informações, senão que seu espírito também teria sido [sic] o de Galileu Galilei e Abraham Lincoln, o que me deixa intrigado, porque não vejo a relação desses dois senhores com a chuva). Pois esse cacique “tem poderes para interferir em fenômenos meteorológicos”, ou seja, faz chover.

Trocando em miúdos: enquanto o grupo de índios dava uma de Gene Kelly (que era moderno, branco, tecnológico, civilizado) e dançava “na” chuva, o branco e nem tão moderno, vagamente tecnológico e nada civilizado governador de São Paulo convocava uma dança “da” chuva.

Eu disse que seria preciso sarcasmo, e acho que esse sarcasmo começa a partir de agora. Afinal, São Paulo define-se como o “Estado bandeirante”, como testemunham os nomes de tantas de suas ruas e rodovias, sem falar na estátua de célebre mau gosto na avenida Santo Amaro. Mas o que é um bandeirante, senão um brutamontes descalço que leva a vida a se embrenhar pela mata para escravizar índios – e matar, estuprar…? Senão aquele cuja função histórica era limpar o terreno para a emergência de uma população aculturada e depauperada, ou seja, destinada a se tornar alguma das variantes daquele fenômeno do candango, homenageado no monumento de Brasília?

Que divina ironia! O líder político do “Estado bandeirante” recorre ao espírito de um índio para ter a chuva, enquanto os índios que conseguiram escapar à escravização e à proletarização, na capital do país, interrompem um protesto pela própria sobrevivência por causa… da chuva! E passeiam nela, dançam nela, e parecem mesmo estar se deleitando, esses maledettos nietzscheanos!


Está bom de ironia? Calma que tem mais. Se estou tratando de uma imagem e das conexões que ela é capaz de fazer, não posso deixar de citar um dos maiores marcos do “bandeirantismo” do Estado em questão. É também uma escultura, como o Monumento aos Candangos: o mais que famoso cartão-postal paulistano, o “empurra-empurra”, que pretendia ser conhecido como “Monumento às Bandeiras”.

Lá está ele, no meio do engarrafamento, retratando os maiores heróis do genocídio em traços enrijecidos, angulosos, um descarado flerte de Victor Brecheret com a estética fascista que florescia em seu tempo (há muito disso em São Paulo, a começar pelo Pacaembu). E não é que, debaixo do toró, os índios de 2015 lembram vagamente o formato da escultura-símbolo da ressecada capital paulista? De um lado, os corpos vivos, com membros flexionados; do outro, a postura marcial e os corpos de pedra.

De um lado, o protesto pela sobrevivência; do outro, a conquista do território e das populações. De um lado, o toró; do outro, o volume morto.

Em constelação, como diria Benjamin?

Resta ainda uma última questão, que não consegui identificar, com meus olhos formados pela televisão: de que etnia são esses índios? Vêm de que parte do Brasil? Sei que em Brasília, nesta semana, estiveram índios dos quatro cantos do território. Mas e esses em particular? Por sorte, posso ser preguiçoso e recorrer a meus olhos formados pela televisão, repetindo com meus confrades de televisionismo: “se é índio, deve ser da Amazônia”.

Então, em nome da poesia que pode haver nas imagens, vou simplesmente pressupor que o olhar formado pela televisão está certo, desta vez, e que os índios em questão são de uma etnia amazônica. Simplesmente porque isso convém à minha retórica: se eles vêm da Amazônia, então vivem na região do país de onde saem os rios voadores que irrigam com chuvas abundantes grande parte do resto do país… a começar por São Paulo.

Assim sendo, o que a imagem mostra é uma espécie de dança triunfal que sintetiza as contradições fundamentais do Brasil, tal como elas se manifestam hoje: o índio que protesta para garantir a sua sobrevivência e a de sua terra também é aquele cuja terra fornece o elemento indispensável à sobrevivência de todos os demais. E notadamente dos que querem forçar a aprovação da PEC que põe em risco o território dos índios. Como pano de fundo, temos a informação de que a demarcação de terras indígenas é um poderoso instrumento para frear o desmatamento, cuja consequência mais imediatamente visível para metade da população, que vive longe da floresta, é a paulatina diminuição das chuvas.

A história que se faz quase por conta própria nesta fotografia pode ser descrita como a materialização de uma anti-história do Brasil, em que o primeiro plano apresenta aqueles que são ao mesmo tempo anti-candangos e anti-bandeirantes em plena procissão triunfal, justamente no instante em que mais estão ameaçados. E quem é que vem fornecer as condições para que tudo isso seja sintetizado num único enquadramento, numa composição com basicamente dois elementos, muito pouco contraste de cor e uma simplicidade formal deliciosa? Ora, ninguém menos que a chuva. Terá sido mandada pelo cacique Cobra Coral, em resposta à convocação dos paulistas?

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O Inconcebível

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“Colapso”. Nossas conversas do dia-a-dia, aquelas do bar, da calçada, do elevador, ganharam agora uma nova palavra, um novo clichê. Colapso, como quando as fundações de um prédio se rompem e ele cai, ou quando um sistema complexo se revela mal planejado e ele entra em parafuso. Ou quando a defesa de algum time bate cabeça e toma uma goleada.

Dizemos assim: daqui a pouco a água acaba em São Paulo e a cidade vai entrar em colapso. Às vezes avançamos no raciocínio, citando que a estiagem veio para ficar, por causa da mudança climática e do desmatamento – afinal, já faz anos que tem chovido paulatinamente menos. Então toda a economia do Sudeste vai entrar em colapso: sem chuvas e com tanto calor, as hidrelétricas não agüentam.

Ocasionalmente, tendo mencionado o clima, o pensamento continua avançando e dizemos: se não fizerem algo, o mundo todo é que vai entrar em colapso. E, de fato, é pequena a probabilidade de “fazerem” alguma coisa, uma vez que, vivendo de abstrações, a humanidade, essa que poderia fazer alguma coisa, passou as últimas décadas espoliando o planeta. No máximo, dá para contar com alguns arranjos perfeitamente dribláveis por quem tem imaginação – coisa que não falta aos empreendedores mundo afora.

Às Últimas Conseqüências

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Esse termo, “colapso”, merece um olhar mais atento. Escutando suas três sílabas, percebo que saímos pronunciando a palavra de modo um pouco leviano, como diria o senador Neves. Quantas vezes não afirmei por aí, para puxar papo com um vizinho ou o porteiro, que “o colapso” está ficando cada vez mais provável? Mas será que eu consigo imaginar o que essa expressão implica realmente? Será que sou capaz de representar na minha cabeça o que é o tal colapso? Acho que não. Continuar lendo

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Notas esparsas sobre a água

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I

Alguns meses atrás, um urbanista me contou que é impossível estar em São Paulo a mais de 300 metros de um curso d’água. Tome um mapa da cidade e procure ruas tortas, difíceis de explicar por qualquer racionalidade dos traçados. É quase certo que ali tem um riacho escondido. Existem mais ruas dessas que peixinhos a nadar no mar.

Perto de onde moro há um beco famoso pela arte de rua. Ao longo do ano, clipes e videobooks são realizados naquelas ruelas. Turistas estrangeiros adoram, ficam pasmos. No verão, costuma se transformar em corredeira.

Mais adiante, as mesmas vielas são quase desconhecidas. Ainda assim, têm grafites. Alguns buracos no chão de cimento permitem ouvir um gorgulho. E cheirar. É fétido.

A viela começa numa quadra de basquete e termina num muro, antes de chegar à Cardeal. Ali, um buraco um pouco maior, em forma de sarcófago e tomado por uma árvore que brotou de rebelde, permite espirar o fio d’água que resiste. Esse fio d’água é aquele que, quarteirões para trás, transborda no verão e faz carros escalarem uns nos outros.

O estacionamento do SESC Pompeia tem uma placa enorme e alarmista segundo a qual os motoristas que se arriscam ali devem retirar seus preciosos bólidos quando chover. Três quilômetros distante está a estação de metrô da Vila Madalena. Ali nasce o Córrego da Água Preta, ameaça poderosa aos carros do SESC.

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A estação da Vila Madalena poderia ser um monumento à água, e não ao concreto. Ali também nascem o córrego das Corujas (que, na rua homônima, está no centro de um ambiente bem agradável) e o córrego Verde, esse que inunda o beco aqui perto.

Nos bairros mais afastados, as crianças ainda brincam em córregos, segundo o que aprendi na entrevista que fiz com o urbanista. Mas, na falta de saneamento, a água começa a feder e é imediatamente tapada com uma laje. Fim da brincadeira. O riacho acaba esquecido, a não ser que, à noite, ainda se possa ouvi-lo, como um fantasma.

É o mesmo processo que ocorreu no que hoje é centro: Anhangabaú, Vila Buarque, Bom Retiro, Pinheiros, Paraíso, Vila Mariana, Ipiranga. No século XIX, chegou a haver um banho público no Bom Retiro. Durou pouco. Falando nisso, as margens plácidas do Ipiranga, hoje, são canos.

O Parque do Ibirapuera tem um lago bem famoso, com jatos d’água e iluminação. O urbanista me mostrou mapas e fotos do córrego que, descendo pelo Paraíso e pela Vila Mariana, por baixo do asfalto e de algumas construções, vai dar ali. Antes de se tornar cartão postal, passa por um processo de limpeza que mal dá conta de o deixar em condições mínimas. Tudo isso é invisível.

Vizinhos dos córregos nem sempre sabem de sua existência. Nem desconfiam do por quê de sua rua ter enchente e a do vizinho, não. Alguns até sabem. Tem gente que economiza a conta da Sabesp recolhendo água da nascente para lavar o carro ou a louça. Para beber e tomar banho, é claro que não.

Isso não é proibido. Fazer poço artesiano privado é. Quem mora perto de um riacho desses, sabe de sua existência e tem a sorte de o encontrar não tão sujo… sofre menos com a crise da Sabesp que você.

II

As árvores ainda não murcharam, apesar do calor e da estiagem, porque absorvem a água do lençol freático. A mesma que, pressionada pelo peso do solo e, muitas vezes, pelo peso das construções também, emerge nas minas que criam esses riachos e córregos.

Nós é que não nos beneficiamos dessa água. Ela se torna um estorvo, porque cheira mal, atrai ratos, fomenta o mofo atrás dos armários e ainda transborda com as chuvas de verão. Nenhum de nós jamais fez um passeio romântico à beira de um riozinho paulistano, com banquinhos, amoreiras e bares com espreguiçadeiras. No máximo, corremos à beira do córrego das Corujas.

“Isto aqui não é Berlim”, poderia dizer uma professora da ECA, horrorizada com a idéia de que a vida em São Paulo poderia ser tão agradável quanto nas capitais europeias. Pode não!

Só quem se beneficia do córrego Pirajussara são os remadores da USP. A avenida Eliseu de Almeida é cheia de curvas não para homenagear Copacabana, mas para acompanhar esse córrego. Poderia ser uma das avenidas mais lindas da cidade. Hoje, pelo menos tem ciclovia. A Ricardo Jafet, a Pacaembu, a Nove de Julho e tantas outras também poderiam ser bulevares espantosamente belos. Mas são avenidas feias.

São Paulo foi fundada no encontro de dois rios hoje canalizados e escondidos. Os rios que acabaram se tornando os mais famosos da cidade foram retificados e cercados por avenidas. “Dá para pensar em São Paulo sem as marginais?”, pergunta o prefeito da época, pessoa de fama pouco invejável. Pensar é o que nos resta, eu diria.

Décadas depois, as marginais foram ampliadas com uma terceira pista. Continuam engarrafando.

Um desses rios, além de retificado, teve seu curso invertido. “Usina Elevatória de Traição”, lê-se a certa altura. Traição é o nome de um córrego que também ninguém vê. Esse rio abastece uma represa pontilhada de clubes de campo e de iatismo. A represa é cercada de favelas e bairros irregulares. Todos sabemos como é.

A Guarapiranga abastece parte da cidade, principalmente a Zona Sul. Outros sistemas de represas que abastecem São Paulo são a agora famosa Cantareira, o Alto e o Baixo Cotia, o Rio Grande, o Alto Tietê. Os de Cotia estão bem, ao que parece. Os outros estão secando, assoreados ou contaminados. A Guarapiranga ainda tem bastante água, mas está ficando suja demais.

Falando em Cantareira, também é o nome de uma enorme área verde ao norte da cidade. Como se sabe, não são muitas as áreas verdes da cidade. Uma mudança de rotas do aeroporto de Guarulhos está fazendo os aviões passarem por cima da serra da Cantareira. Isso ameaça a vida selvagem dali, incluindo a vegetação. Tudo muito coerente.

Marilena Chauí estranha que um dos maiores responsáveis por deixar a cidade sem água potável tenha sido reeleito com tanta facilidade. Seus eleitores são os mesmos que fizeram tudo que está descrito acima.

III

Outro entendido em água que entrevistei há alguns meses é engenheiro hidráulico. Ele comentou a disputa em torno do rio Paraíba do Sul, o primeiro no país a ter o uso de sua água cobrado. Lembra disso?

O Paraíba do Sul, que nasce em São Paulo, abastece o sistema Guandu, que fornece água e energia para a Baixada Fluminense e o Rio de Janeiro. Depois segue para o Norte Fluminense. Puxam tanta água dele que não sobra o suficiente para a agricultura nessa região.

Agora o governo paulista quer tirar uma lasquinha um pouco maior. Mas nada garante que sobrem muitas lascas para tirar.

Falando nisso, o Paraíba do Sul, milênios atrás, corria para o sul. O Amazonas, na mesma época, corria para o Pacífico. Hoje, erros de cálculo em usinas amazônicas causam enchentes. O desmatamento no Norte eliminou a nuvem de umidade que cobria o Sudeste. Essas poucas frases já servem para explicar o uso do termo “antropoceno”.

“Puseram uma usina no mar, talvez fique ruim pra pescar”. Chico rimou em eufemismo. Pescar é o de menos.

IV

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Esse engenheiro hidráulico gostava de reiterar o vínculo entre o cuidado com a água e a própria idéia de civilização, seja essa idéia o que for. Agora entendo por quê.

Depois que o poder militar, político e econômico de Roma colapsou, Lugdunum continuou sendo um centro urbano respeitável. O que se perdeu foi a técnica de manutenção dos aquedutos. Depois de um tempo, os canos entupiram e a cidade foi esvaziada. Isso deve valer para muitos outros centros urbanos da Antigüidade.

Por baixo dos fóruns de Roma, aliás, bem no coração da cidade, passava a Cloaca Maxima. Era uma cidade limpa. Deixou de ser na Idade Média, como todas as demais cidades do Continente.

Quando os espanhóis chegaram para a destruir e massacrar sua população, Tenochtitlan tinha 200 mil habitantes. Paris, maior cidade da Europa, tinha 300 mil. Tenochtitlan era alimentada por dois aquedutos e diversos canais de estilo veneziano. O centro urbano era limpo e fresco. Não resistiu à fúria de Cortez.

Naquele tempo, não fazia sentido falar em “vingança de Montezuma”.

Tifo, cólera, difteria e doenças semelhantes matavam dezenas de milhares de pessoas por ano nas maiores cidades da Europa. Hegel, que sucumbiu ao cólera, talvez seja o caso mais ilustrativo. Criou-se o sistema de esgoto tal como o conhecemos hoje. A população dessas cidades explodiu.

O que uma sociedade faz com sua água é um indício do que faz consigo mesma.

Nossa água contém flúor. É uma iniciativa de saúde pública. Ou seja, uma política pública. Ideólogos de um liberalismo hiperbólico vêem nisso a interferência do Estado-Leviatã na vida dos indivíduos. A água é um campo de batalha político.

Hoje, a água do paulistano vem do volume morto do sistema Cantareira. O racionamento foi descartado por motivos político-eleitorais. O dinheiro que deveria ser investido na expansão do sistema não estava disponível por motivos ideológico-econômicos. E talvez por outros motivos também. A ordem do Ministério Público para fazer, de uma vez por todas, as obras necessárias foi ignorada e contornada por 11 anos. A água é um campo de batalha político.

O que uma sociedade faz com sua água é um indício do que faz consigo mesma.

Além de flúor, sabe-se lá o que vem na água que estamos bebendo. Os filhos de uma amiga da minha mulher ficaram doentes e o médico culpou a água. Há quem fale em metais pesados. Há quem ataque caminhões-pipa. Há quem queime ônibus. Há quem ridicularize os que queimam ônibus porque o ônibus não tem nada a ver com a água. Há quem venda água e esteja jogando os preços lá em cima. A chance é agora de garantir o fim do ano.

O governador primeiro comprou briga com o Rio de Janeiro. Depois, comprou briga com a ANA. Agora, comprou briga com a ONU. Não vai ter tropa de choque pra agüentar tanta briga.

Da minha janela, vejo pelo menos seis piscinas. Domingo, dia quentíssimo, as piscinas estavam cheias de gente. Como vão estar essas piscinas no mês que vem?

V

Para encerrar, alguns versos apocalípticos:

cidade com luz

É noite em São Paulo
A cidade está com aspecto de morte.
As distopias nos alcançarão.
Incauto, penso no trabalho; em vão
Acredito que isso ainda importe.

Até o ar respirado é sombrio,
Anunciando as ruínas futuras
Das fachadas, que nossas amarguras
Testemunharam, ante o eterno estio.

Se tratamos por distante o presente,
Somos mais covardes ou ignorantes?

Se o corpo o golpe fatal já sente,
Não se passou algo na mente antes?

Sufocamos. Já estamos afogados.
Cidades prenunciam nossos fados.

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