[N.B.: esta é a penúltima parte de um texto sobre a velha questão “homem/natureza”, inspirado no ecocídio de Mariana-MG e que está destruindo um dos nossos mais importantes rios – e agora também o mar! Nas partes anteriores, tratei de como foi conceitualizada a natureza no pensamento moderno, entre Bacon e Marx. Depois, lidei com os desconfortos que a relação entre natureza e técnica causou no século XX. Por fim, examinei como uma noção de natureza mais imanente, a partir do conceito de physis, pode ser reaproveitada para tratar do impasse em que nos encontramos.]
Leia também a PARTE 1.
Leia também a Parte 2.
Leia também a Parte 3.
Leia também a Parte 4.
Leia também a Parte 5.

Apontamentos
Esta última parte é sempre a mais difícil; aquela em que se descreve algo que ou não existe ou só existe de maneira incompleta, sugerida; ou ainda, algo que se situa além das molduras de como concebemos o mundo e pensamos dentro dele. É um momento perigoso, tanto mais que se segue àquela cartada que as vozes integradas, das que subscrevem sem pudores a algum estado corrente do mundo (sabe como é), mais têm prazer em dar: quando puxam a manilha do “Tudo bem, mas o que você está propondo, hein?” e a lançam na mesa, certos de que é um zap.
Ou, como se diz: “criticar é fácil, quero ver apontar soluções”.
Até certo ponto, a objeção faz sentido, se quisermos acreditar que é pouca coisa identificar os vícios que nos conduzem a reiterar um modo de existência que claramente já se tornou inviável. Ainda assim, supondo que não se consiga “apontar uma solução”, não há por que imaginar que se esteja dando razão aos que preferem seguir pelo caminho sem saída em que nos encontramos, com antolhos e tudo.
À primeira vista, eu diria que quem sai triunfante é aquele cínico que dava de ombros para a destruição das condições de vida da humanidade e preferia ficar no sofá esperando a morte chegar. Afinal, quem garante que soluções sejam algo que se possa simplesmente apontar?
Em segundo lugar, um problema que aparece quando alguém se dispõe a simplesmente “apontar soluções” é que o instrumento que se usa para apontar é o mesmo e portanto obedece aos mesmos princípios de procedimento que aquilo que provocou o problema que se quer solucionar. Trata-se de uma linguagem e uma estrutura simbólica completamente viciadas.
Assim, quando alguém se propõe a superar o insustentável desenvolvimento por meio de um “desenvolvimento sustentável”, é sintomático que os narizes sejam torcidos justamente para quem lança a pergunta mais básica: não haveria algo de intrinsecamente errado na maneira como usamos o termo “desenvolvimento”?
E esse é mesmo um problema grande: será que ainda temos imaginação suficiente, vocabulário suficiente, coragem suficiente para nos dedicarmos à tarefa que temos pela frente? Será que estamos dispostos a reconhecer que passamos várias gerações nos cercando de um enorme engodo expressivo, a ponto de tornar inconcebível o caminho para o qual estamos rumando?
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Lembre disso ao ler notícias sobre taxas de carbono, fundos verdes, investimentos na transição energética e assim por diante. Por mais genuínas que sejam as preocupações por trás dessas propostas, a lógica pela qual se pretende “expulsar a natureza” ao modo de Horácio permanece intocada: as expulsões até hoje feitas deram errado porque provocaram a acumulação de venenos, lixo e sufocamento na natureza.
Então que se incorporem aos sentidos do processo produtivo as imagens outrora associadas ao rejeito. Em outras palavras: que se expulsem do sistema econômico (novo termo para o que antigamente se designava como “civilização”)… essas parcelas, essas imagens da natureza. Suma-se com as imagens, portanto.
Por essa lógica, o que está faltando seria traduzir cada vez mais da potência indeterminada, das virtualidades, do pré-individual, para a nossa linguagem alienada. Seria algo como a loucura ao quadrado, digamos assim, já que multiplicaria por si própria a financeirização do vocabulário. A próxima etapa, se houver tempo para isso, seria inventar mais potências (no sentido matemático) para redobrar a insanidade. É evidente que isso não pode resultar em outra coisa senão escapar para o infinito, no abismo de uma linguagem fora do controle.
Assim, a convocação para “apontar soluções” é uma armadilha, porque é circular – ou, antes, helicoidal como um rodamoinho: só será identificado como solução aquilo que reproduza o problema a solucionar-se, porém em temporalidade diferida. Ou seja: trata-se de mais uma instância do desejo de simplesmente “salvar os fenômenos”, que é como se chamavam os esforços renascentistas para evitar a aceitação definitiva do método de Copérnico.
O problema é que desta vez não podemos esperar, já que o correspondente atual do geocentrismo escolástico é venenoso, perverso e suicida.
Deste modo, o que precisamos enfrentar é uma reformulação de fundo, que é antes de mais nada epistêmica, lógica e semiótica, e que se desdobra, aí sim, em desafios técnicos, políticos e econômicos. Passar de uma idéia de natureza “expulsável” (porque hipostasiada) para uma physis ubíqua e pré-individual (ou, melhor dizendo: ubíqua porque pré-individual).
No plano da expressão, passar da linguagem sobredeterminante para a linguagem imanente a sua própria atualização, à sua potência performática, isto é, que seja capaz de operar analogamente ao gesto técnico pelo qual os corpos e coletivos se agenciam com o território. Passar de uma estrutura simbólica que busca o controle sobre a atividade (“mestres e possessores”…) para uma dinâmica simbólica que acompanha a atividade, como a própria atividade acompanha as potências do meio em que se exerce.
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É claro que isso não é nada fácil e, sem a companhia de exemplos, fica parecendo excessivamente abstrato, desconectado da realidade. Mas a esse respeito pode ser dito, antes de mais nada, que já temos um mínimo instrumental para repensar certos usos que fazemos da linguagem. Voltemos ao caso da destruição do Rio Doce: foi fruto do rompimento de uma barragem de rejeitos.
Esse termo, “rejeitos”, expressa o quê? Primeiro, a gigantesca concentração (são 62 milhões de metros cúbicos! Pense naquelas garrafas de cerveja “litrão”: são nada menos que 62 bilhões. BILHÕES, eu disse!) de elementos químicos com enorme potencial destrutivo sobre nossos corpos – ou seja, sobre os potenciais de nossos corpos, sobre a natureza como aparece ao atravessar nossa corporalidade. Uma massa colossal de veneno contida por uma parede de concreto, objeto técnico, como se vê, nada confiável.
Mas expressa também, em outra camada, a responsabilidade operativa da maneira como aquilo se produziu, dentro de uma lógica que, com o uso de “insumos”, gera um “produto” (um bem, uma mercadoria…) ao qual se somam os “rejeitos”. Muito bem: “insumo”, nesse caso, é o nome que se dá a um elemento isolado graças aos potenciais que contém (potenciais que serão aproveitados no produto, mas antes de tudo como potencial de gerar o produto). E “produto”, por sua vez, é entendido como o resultado de um processo operativo que despende energia e entrega algo que se vê como útil.
Com isso, logo se pode perceber como um processo que imprime uma infinidade de modificações topológica aos potenciais virtuais da physis é sobredeterminado por esse vício expressivo. Isso para não entrar na questão dos cálculos venais aos quais esse mesmo objeto está submetido, soterrando também as próprias dinâmicas técnicas das quais ele participa sob uma camada de finança que lhe é estranha.
Vantagens comparativas

Na parte 3, citei uma passagem do Livro V da Riqueza das Nações, de Adam Smith. Preciso mencioná-la mais uma vez. Nela, o pai dos economistas começa a se dar conta de que existe um outro lado, potencialmente deletério, para o que até então lhe parecia uma belíssima novidade: a divisão social do trabalho, que permitia extraordinários ganhos de eficiência. Mas a pesquisa do escocês não se limita ao que se passa dentro das quatro paredes de uma fábrica: ele começa a se perguntar sobre o funcionamento das sociedades como um todo a partir desse princípio.
E Smith se dá conta de que o custo de tanto ganho de eficiência é um completo embotamento da capacidade social, cognitiva e mesmo técnica do indivíduo. Sujeito a passar dias inteiros entregue a uma única tarefa repetida, bitolado pelo controle extremamente rigoroso da atividade de seu corpo, pela canalização de sua enorme e indeterminada potência a um único duto de produção via trabalho, como esse indivíduo poderia desenvolver de fato suas capacidades? Como adquiriria a versatilidade que faz do humano algo diferente de um animal de colônia (digamos… as abelhas de Mandeville…)?
Nesse trecho, Adam Smith está preocupado com a formação dos exércitos. Seria possível montar um exército inteiro com pessoas incapazes de fazer qualquer coisa além daquele gesto repetido, daquela tarefa que embota e aliena? O escocês teme que não.
É claro que ele não vivenciou a revolução tecnológica do século XX, nem as exigências de maior formação da força de trabalho (veja só essa expressão…) que surgiriam daí. Poderia parecer que as preocupações do filósofo moral foram superadas pela história, já que as economias de ponta já não são mais propriamente industriais no sentido de Smith e a produção contemporânea exige o domínio de tecnologias complexas, que não podem ser atingidas sem muitos anos de educação.
Mas o alerta está dado, e deveríamos aproveitá-lo. Por que não perguntar além: será que o embotamento não está restrito ao domínio do gesto, mas também alcança nossa capacidade cognitiva e, por extensão, nossa concepção do mundo? Será que, ao tentar descrever o que é o ambiente em que vivemos, a estrutura dos costumes dentro da qual nos movemos, as exigências da nossa atividade, nossas expectativas (basicamente, as perguntas da antropologia de Kant…), não estamos igualmente condicionados e embotados, ao ponto de responder com a mesma limitação cognitiva que o operário descrito por Smith?
Será que a maneira como planejamos e executamos até mesmo a transmissão do fabuloso conhecimento que foi necessário acumular para que tivéssemos o sistema econômico pós-industrial hoje dominante não é, de certa forma, também muito limitadora? Será que nossas escolas e universidades não estão simplesmente cuspindo diplomados aos quais falta um mínimo daquilo que os irmãos Humboldt denominavam Bildung, a verdadeira formação, por oposição à mera Ausbildung, a educação para uma profissão, para um trabalho?
Será que estou falando de algo que já não sabemos ou, ao menos, intuímos no nosso dia-a-dia?
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Às vezes é difícil nos darmos conta do quanto vivemos aquém do que seria possível – e desejável, e cada vez mais indispensável. O quanto poderíamos ser mais efetivamente prósperos e, por que não dizer, de fato felizes com uma carga bem menor de trabalho, digno daquela profetizada por Keynes! – Sem falar que, nesse caso, é muito provável que deixássemos de nos referir ao trabalho como carga, já que passaria a manifestar nossa potência, em vez de nossa sujeição.
Se ao menos não estivéssemos presos ao imperativo cartesiano dos “mestres e possessores”, e a ilusões de expansão do “produto” medido em um grande ícone monetário… Se entendêssemos que a formação dada às futuras gerações poderia torná-las algo muito além de “mais produtivas”: para criar um jogo de palavras, poderiam ser mais “producentes” – ou mais “efetivas”, no sentido de trazer a efeito algo além da mera reprodução incessante de um mesmo ciclo de produto e lixo, mercadoria e rejeitos, consumir e consumar.
Chega a ser um exercício interessante pensar na facilidade ingênua com que transformamos uma idéia, por exemplo, como a das vantagens comparativas de Ricardo em verdadeiro dogma. Uma peça de propaganda destinada a convencer parlamentares ingleses a abrir o país à importação de trigo! Nem chegamos a pensar em como a modelização que justifica uma pequena verdade perde de vista inteiramente a enorme cadeia de outras verdades que vão se formando na esteira desta primeira, e que lá adiante podem resultar em miséria e desastre.
Pois hoje, quase duzentos anos depois, cada grande cargueiro que despeja óleo no Pacífico e gás carbônico na atmosfera reflete nossa fé na necessidade de “especializar-se” e subscrever às “cadeias globais de valor”, para corresponder às as vantagens comparativas, como se o modelo valesse pela realidade como um todo.
Valor, pois sim. Assim, se é verdade que uma tabela com “vinho” e “trigo” demonstra a fabulosa vantagem de concentrar esforços na produção de apenas um “bem” (ou conjunto de bens), dessa verdade decorrem outras verdades menos agradáveis. Primeiro, claro, o já mencionado congestionamento nos mares. Em seguida, como se vê atualmente, o sufocamento das sociedades civis sob gigantescos tratados que, em nome da eficiência, submetem o processo político ao poder de gigantescos conglomerados. E é claro que, em se tratando de um mundo que enxerga nos mercados oligopolizados a quintessência da liberdade, esses conglomerados não têm de responder a ninguém – nem quando põem em risco a sobrevivência de todo o sistema econômico, esse mesmo do qual eles são “mestres e possessores”…
O mesmo tipo de análise pode ser aplicado à proliferação recente de termos que visam a completa absorção da capacidade expressiva na linguagem da dialética do esclarecimento, para falar como Adorno e Horkheimer mais uma vez. Por exemplo: coisas como o “capital humano” que se tornou moda na esteira de Gary Becker. Ou a recente mania de chamar o preço dos cursos e seminários de “investimento”. Ou ainda, reservar o verbo “empreender”, que outrora designava qualquer esforço com vistas a um resultado, ao mero domínio da busca de lucro. São todas fórmulas que forçam uma distorção da expressão para obter paralelamente uma distorção da realidade à qual se destinam.
Se é para “apontar soluções”, podemos começar por aí. Uma das primeiras soluções consistiria em abandonar esse tipo de vocabulário, que obscurece o entendimento e é uma maneira subreptícia e bastante perniciosa de “expulsar a natureza”.
Nos resquícios

Mas é melhor passar ao próximo ponto, que é mais, se posso dizer assim, alegre. O fato é que já existem pequenas transformações ocorrendo cá e lá, e que são muitas vezes belíssimas. Gosto de evocar a paulatina multiplicação de estudos e iniciativas vinculados em maior ou menor grau à noção de permacultura, cujo princípio básico está formulado de uma maneira particularmente interessante.
Nas palavras de Bill Morrison, trata-se de “uma filosofia em que se trabalha (work, que poderíamos traduzir como “agir”) com a natureza, em vez de contra ela; que consiste em “observar longamente e com concentração, em vez de se concentrar longamente em trabalhar” (labor, o “trabalho” no sentido de esforço repetido e algo forçado). E ele prossegue: deve-se encarar cada animal e planta segundo todas as suas funções, e não apenas como um sistema de produção único.
Se voltarmos aos textos de Simondon sobre o gesto técnico, fortemente influenciados pelo paleo-antropólogo André Leroi-Gourhan e fortemente influentes sobre os autores de Capitalismo e Esquizofrenia, veremos como uma definição sua do gesto técnico consiste em dizer que a potência técnica, para ser eficaz, deve acompanhar as potências da matéria sobre a qual ela age.
Caso contrário, será uma violência destrutiva: o carpinteiro que corta a tábua sem respeitar os veios da madeira entregará um produto quebradiço e torto. O ferreiro que desconheça a temperatura da água em que mergulha a espada escaldante fará os soldados de sua aldeia perderem a guerra.
O mesmo vale para a agricultura que trata a terra como patrimônio a ser explorado e as formas vivas como parâmetros a serem aperfeiçoados. Essa é a agricultura que desmata, desertifica, envenena com agrotóxicos e seca lençóis freáticos. A agricultura que tenta expulsar a natureza. Não à toa, é a agricultura praticada no Brasil, país onde a tal da natureza já começa a voltar e bastante furibunda. É uma agricultura que não acompanha as potências do território e do material, mas simplesmente se agarra a eles. É o oposto de uma idéia de agricultura que seria permanente.
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Para citar rapidamente algumas coisas que acontecem no Brasil no campo da agricultura, uma iniciativa poderosa e bela é a do suíço Ernst Götsch na Bahia, provavelmente o exemplo mais vistoso daquilo que tem sido chamado de agrofloresta. Gosto de voltar a esse exemplo (que não é o único, quero frisar) porque sua produtividade põe em xeque a idéia de que, para conseguir alimentar toda a população do mundo, é preciso recorrer a venenos e à destruição do solo – como se a destruição do solo não fosse uma hipoteca sobre a própria capacidade de alimentar as populações.
Para quem tiver interesse nesse tema, sugiro também o relato que Michael Pollan faz da fazenda Polyface.
Outros exemplos semelhantes se espalham pelo território, fundindo noções que pareciam ser, se não propriamente opostas, no máximo complementares. Afinal, a mesma potência de crescimento (physis…) que faz subirem as florestas é aquela que permite a cultura de cereais e outros alimentos. Por sinal, perdemos de vista a presença do termo “cultura” em “agricultura”, e isso é algo que precisa ser recuperado: a noção de que a atividade do agricultor (seu trabalho, sob determinadas condições…) é um cuidado com a terra, uma relação de quase simbiose, mas certamente de agenciamento entre potências, entre as virtualidades de seu próprio corpo e as do território. Não se trata de “arrancar” a subsistência do fundo da terra, mas de ressoar com ela, de subsistir junto com ela. Caso contrário, é parasitismo, exploração e suicídio.
Há outros campos em que a questão da atividade como cuidado estão reaparecendo, mas não vou entrar nelas. Por ora, o que me parece indispensável é apontar como a atividade humana pode perfeitamente ser enriquecedora de outras dimensões, outras formas, outros regimes da virtualidade da physis, isto é, da natureza. A atividade humana é incrivelmente poderosa: incrivelmente tanto no sentido de assustadoramente quanto no sentido de fabulosamente. Ou seja, o mesmo sentido que já encontramos no texto de Sófocles, que aparece na palavra deinon.
(Citei casos agrícolas; iniciativas interessantes em outros domínios ficam para a última parte…)
* * *

Outro exemplo: um antropólogo americano de nome William Balée vem mostrando há algumas décadas que a atividade dos ocupantes da Amazônia, ao longo dos últimos dois ou três mil anos, modificou profundamente a floresta, não para esgotá-la – como se faz lá hoje, com a desculpa do desenvolvimento e do enriquecimento –, mas de um jeito que a tornou ainda mais pujante, forte e rica. As melhores terras da Amazônia, ele afirma, podem ser encontradas em antigos sítios de ocupação humana.
Nas últimas décadas, a horrenda devastação que caracteriza o mundo contemporâneo trouxe, por outro lado, slgumas interessantes revelações sobre as técnicas passadas de ocupação do território. Era, surpreendentemente, uma atividade de acompanhamento da potência natural, de agenciamento conjunto, esse pelo qual a técnica devém com a matéria.
Debaixo de terras desmatadas, vêm sendo descobertos geoglifos e outros sinais da presença humana, tal como era milênios atrás. São diques, terraços e outras formas claramente vinculadas à agricultura, em plena Amazônia. E o mais surpreendente nessas formas é que as mesmas áreas são associadas a um acréscimo, e não a uma redução, da fertilidade do solo e da biodiversidade.
Descobertas como essa levaram Balée e seu colega Clark Erickson a esboçar um retrato da América pré-colombiana muito mais rico, pujante e, para usar um termo que teima em não sair da moda, desenvolvido do que imaginávamos. E não se trata dos grandes impérios do México ou dos Andes: a bacia Amazônica tinha condições de vida que se perderam depois da chegada dos europeus.
O que sobrou foi uma imensa floresta, que hoje está sendo destruída por uma técnica mal feita, mal entendida e amplamente equivocada. Deixo como aperitivo este trecho de uma matéria da revista The Atlantic:
Ao plantar seus pomares, os primeiros habitantes da Amazônia transformaram grandes áreas da bacia do rio em algo mais habitável para seres humanos. Em artigo muito citado de 1989, o antropólogo de Tulane William Balée estimou cautelosamente que cerca de 12% da floresta amazônica não-alagada tinha origem antropogênica – direta ou indiretamente criada por humanos. Hoje, esta é vista em muitos círculos como uma estimativa conservadora. “Acredito basicamente que é tudo criação humana”, disse-me Clement no Brasil. Ele argumenta que os índios mudaram a distribuição e a densidade das espécies através da região. O mesmo diz Clark Erickson, arqueólogo da Universidade de Pensilvânia, que me disse na Bolívia que as florestas tropicais das terras baixas da América do Sul estão entre as mais belas obras de arte do planeta. “Alguns de meus colegas diriam que isso é um tanto radical”, afirmou, com um sorriso maroto. Segundo Peter Stahl, antropólogo da State University de Nova York, em Binghamton, “muitos” botanistas crêem que “o que a idéia dos ecologistas gostaria de representar como um Urwelt [mundo primevo] intocado e puro foi, na verdade, manuseado por humanos durante milênios”. A fórmula “ambiente construído”, diz Erickson, “se aplica à maior parte, senão a todas as paisagens neotropicais”.
Para não deixaar dúvidas: áreas que costumavam conter seres humanos há alguns séculos têm hoje uma biodiversidade maior. Em outras palavras, o ser humano que, hoje, extingue a biodiversidade e piora as terras é que é a exceção, a parte doente, a perversão. A técnica, quando vista não como subsumida ao trabalho, mas como gesto humano por excelência, é enriquecedora para a natureza. Por quê? Porque ela é natureza e age como tal. Não nutre ilusões a esse respeito, nem manias de grandeza.
A rigor, como vamos ver na parte conclusiva, o ser humano passa a constituir-se como tal quando pode viver apenas em ambientes construídos, de modo que a noção desse gesto mesmo que consiste em construir seu ambiente é decisiva para a perenização (a “sustentabilidade”, poderíamos dizer, se essa palavra não etivesse tão gasta) dos corpos como dos territórios.
Durma-se com um barulho desses, nós que estamos acostumados à técnica como Gestell e com a ilusão imperialista de tornar-nos “como mestres e possessores”…
Continua…
Notas

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