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A barbárie se acelera?

Chegamos a meados de 2022 e parece que já não é mais a cada poucos meses que somos confrontados com um novo episódio de barbárie em algum canto do Brasil – agora, poucas semanas separam o anúncio de um massacre no Rio, uma câmara de gás em Sergipe, um assassinato brutal na Amazônia ou no Cerrado, para citar só os mais midiatizados. São todos acontecimentos hediondos, à primeira vista sem conexão direta entre si, mas temos a impressão de que estão mais frequentes.

Viramos as páginas dos jornais – quem ainda faz isso – para a seção nacional ou de política e damos com um noticiário de outra natureza, mas igualmente perturbador. Ou melhor, igualmente bárbaro: a diferença é que o sangue não salta diretamente das páginas. Uma decisão como a do rol taxativo no STJ; a pressão dos militares sobre o processo eleitoral; os bilhões canalizados pelo orçamento secreto; os milhões gastos por municípios com concertos misturados a propaganda; a proposta, ou ameaça, de um estado de calamidade que permitiria desviar ainda mais recursos para fins eleitoreiros, e por aí vai. Desta vez, estamos falando de degradação institucional, mas a sensação é a mesma: o processo está se intensificando ou acelerando.

O que dizer desse sentimento de aceleração? Os golpes estão mesmo cada vez mais frequentes ou seria apenas um reflexo de nossa ansiedade com a aproximação de um período já normalmente tenso, como é o processo eleitoral? Ou ainda: se os episódios de barbárie e degradação institucional estiverem mesmo se precipitando, é justo imaginar que exista alguma coordenação entre eles, proposital ou involuntária? Se houver, realmente, algum mecanismo pelo qual uma causa comum leva à sucessão desabalada de iniciativas destruidoras, ele pode ser identificado?

Coloquei as perguntas nessa ordem porque uma das características do conflito assimétrico e informal, majoritariamente cibernético, que caracteriza nosso tempo é justamente torná-las quase irrespondíveis. Mesmo assim, creio que, se atravessarmos esse “irrespondível” e a confusão que o acompanha, podemos identificar um movimento que talvez seja proteiforme, mas é coeso. Lamento dizer, o que parece estar atrás da cortina é aterrador.

Chegamos a meados de 2022 e tudo indica que está em curso uma iniciativa de “guerra total” quase – veja bem, quase – espontânea, e por isso mesmo ainda mais potencialmente destruidora. Mas antes de começar qualquer tentativa de diagnóstico, é preciso recuar alguns passos e buscar um olhar um pouco mais abstrato, para que o cenário de fundo esteja minimamente acessível. Seja paciente.

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Começado pela última questão: a coordenação e a causa comum a todos esses episódios é indemonstrável, porque é desnecessária. Ou melhor, o que é desnecessário é um centro inspirador ou decisório único. Basta que exista alguma modalidade de comunicação – que pode ser um único sistema ou a conjunção de vários – capaz de alinhar o desejo de realizar determinada ação com a capacidade de levá-la a cabo. A única coisa indispensável para conseguir que algo se opere, tenha efeitos, é que os agentes mobilizados na ponta – digamos assim, os “terminais” ou “receptores” – obedeçam a motivações mais ou menos coerentes – ou seja, coerentes o bastante. Em outras palavras, não são as ações que precisam ser coordenadas, mas as motivações; aquilo que, cá e lá, dispara uma ação.

Ora, é precisamente essa questão comunicacional que conduz ao irrespondível das primeiras perguntas. Se ficamos ansiosos ao ser confrontados com a repetida barbárie, em sua versão sanguinolenta e em sua versão institucional, parte da razão é que as mesmas modalidades de comunicação que alinham motivações também semeiam ansiedade. Os mesmos estímulos emitidos constantemente, a mesma cacofonia, que galvaniza as ações de um lado, do outro geram confusão. A avalanche de imagens e mensagens é tanto paralisadora quanto mobilizadora, conforme a predisposição das pessoas espalhadas pelo território – os “terminais”.

Por isso, não faz sentido opor a sensação do horror intensificado e a realidade material que poderia sustentar essa percepção. Essa condição da comunicação reticular, entranhada no tecido social, provoca a impressão de que esses acontecimentos horríveis que testemunhamos podem ser postos em ação, um tanto paradoxalmente, por si próprios. Somos quase conduzidos a dizer que ninguém é responsável, mas, como já não conseguimos nem mesmo afirmar a realidade do complexo de eventos que estamos testemunhando, não chega a ser surpreendente.

Poderíamos contrastar essa nebulosidade, por exemplo, com o que aprendemos no caso Cambridge Analytica, em que agentes muito específicos manipularam indivíduos em um vasto território, com ferramentas discretas e disponibilizadas com essa precisa finalidade. Algo semelhante ocorreu em torno de 2018, com os disparos de mensagens e os robôs que todos conhecemos, a começar por Carluxo. Também dá para fazer um contraste com o episódio da invasão do congresso americano, em 6 de janeiro do ano passado. Também aí havia um centro emissor na figura de Trump, que colocou em movimento seus seguidores a partir da acusação de fraude eleitoral e o slogan, ou grito de guerra, “stop the count”.

Mas mesmo nesses dois casos, o que realmente disparou as atitudes, as ações, até mesmo as crenças – o que poderíamos chamar de sua “causa eficiente” – foi a disposição dos próprios receptores, cultivada ao longo de um extenso período e disponíveis para aquelas mensagens. O caso Cambridge Analytica é mais evidente, porque justamente aqueles com alguma inclinação a se conectar com as mensagens enviadas eram focalizados – e vendidos como alvos.

No caso da extrema-direita brasileira, a radicalização se deu por vias semelhantes, mas não idênticas. Ao inundar os dispositivos com mensagens que tocavam em todos os temores possíveis do brasileiro – raciais, sociais, religiosos, o que for –, era praticamente garantido que uma quantidade suficiente de pessoas seriam capturadas para uma rede de influência que se retroalimenta e se torna cada vez mais coesa.

Em tempo: não estou falando especificamente das tecnologias algorítmicas usadas no disparo de propaganda (explícita ou implícita), embora elas sejam, é claro, um elemento capital do problema. Mas elas se articulam com todo tipo de dispositivo que dissemina opiniões, impressões e convocações: dos púlpitos aos editoriais, das mesas de bar aos seminários, da sala de jantar aos intervalos entre aulas. Quanto mais modulações diferentes um estímulo lograr, melhor ele se embrenha no tecido social e se naturaliza.

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Entre contrastes e semelhanças, o que se passa hoje no Brasil tem suas singularidades, que me parecem determinantes para esclarecer a questão da aceleração do horror, a “guerra total” a que estamos submetidos. Em primeiro lugar, estamos falando de um complexo com ao menos duas dimensões, como já mencionei. De um lado, os atos de barbárie estúpida, espalhados por várias regiões e no quotidiano das pessoas; do outro, a degradação institucional no Congresso, nos tribunais, em determinadas autarquias, no Executivo federal e também nas esferas inferiores – menção desonrosa para as ditas forças de segurança, tanto as forças armadas quanto as polícias.

É preciso olhar um pouco para o cenário em que tudo isso se desenrola, ou seja, o contexto, a massa preparada com fermento para se tornar o bolo de destruição hoje se expandindo tão rápido.

Primeiro ponto: não é difícil remeter a barbárie quotidiana ao discurso funesto que se expandiu assustadoramente no país a partir de 2014, mais ou menos, e que explodiu com a candidatura e eventual vitória do atual ocupante do Planalto, quatro anos mais tarde. A “foice no pescoço da Funai”, o envio de adversários à “ponta da praia”, o “fuzilar a petralhada”, e assim por diante, são sementes que se espalham e, juntando-se a outras emitidas por personagens menos notórios – alguns deles, inclusive, hoje nominalmente de oposição –, criam um terreno de naturalidade para que atos de violência e crueldade emerjam conforme as circunstâncias.

Veja bem: criam o terreno, mas o potencial para a violência e a crueldade estavam disponíveis, já compunham a massa complexa do dia-a-dia brasileiro; caso contrário, não poderiam vingar. O caráter claramente racial de muita dessa violência; a tentativa de acelerar a eliminação dos povos indígenas, e dos biomas em que vivem, para avançar o extrativismo; o elitismo presente em alguns desses crimes; a virada opressiva e aniquiladora de certa religiosidade. Nada disso foi inventado em 2018. Foi, isso sim, realçado, em detrimento de tantas outras características igualmente presentes no quotidiano do país, das formas de solidariedade à disposição em abraçar o outro, o diferente – o que é mais que tolerância e, sim, pode estar em baixa hoje, mas é um traço bastante frequente no brasileiro.

O segundo ponto é um pouco mais difícil de tratar; tentei fazer isso neste texto de 2018. Hoje, já está em plena vista muito do que, naquele momento, ainda tínhamos que tentar demonstrar. É evidente que, ao menos desde meados de 2020, o atual governo só se sustenta porque funciona como uma espécie de mediador, um “buffer” para que forças políticas de dominação local – leia-se centrão – e grupos de interesse encastelados, a começar pelo latifúndio, ampliem seu controle já enorme sobre o Estado e os recursos do país. O que esses grupos identificam como principal inimigo? Muito simplesmente, o conjunto de todos os ganhos trazidos pela redemocratização e os anos seguintes. Ganhos institucionais, como o SUS e o controle sobre as decisões de agentes públicos (e aí se contam desde os tribunais de contas até a LRF, com todos os seus defeitos). Ganhos sociais, como os programas de distribuição de renda, a proteção de terras indígenas, as cotas no ensino superior. E, principalmente, tudo que possa ser um obstáculo a uma economia primária e dependente. Como previsto, vamos sair dessa lamentável experiência com um país ainda mais oligárquico, parasitário e paralisado.

Assim, quando sentimos que algo parece estar se acelerando, trata-se de uma conjunção, uma espécie de aliança informal (às vezes formal) entre os aspectos mais nefastos da nossa realidade social, realçados e coordenados por um sistema de comunicação quase orgânico, e os aspectos mais atrasados – e também nefastos, por que não dizer – da nossa realidade política. Se muitas vezes você pensou que o pior de nós está no poder, é porque está.

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Resta tentar explicar por que estou falando em “guerra total” para me referir à aceleração dos horrores, sanguinolentos e institucionais. Com o risco de estar cometendo uma “reductio ad Hitlerum”, algo ainda mais delicado em se tratando de grupos políticos que evidentemente têm o fascismo como princípio ativo em sua fórmula, acho que não é absurdo enxergar no que está se passando hoje no Brasil a atitude de quem vê o fim, aliás a derrota, se aproximando e, sem poder apagar o rastro de seus crimes, escolhe o caminho inverso: intensificá-los. Nesse caso, é difícil não fazer um paralelo com “der Totale Krieg” (guerra total).

Guardadas as devidas proporções, foi o que se passou a partir de 1943, quando Goebbels fez seu chamado ao “Totaler Krieg”, em discurso no Sportspalast de Berlim. Naquele momento, já era evidente que as chances de vitória do Eixo na guerra eram ínfimas. Duas semanas antes, o exército alemão havia sido humilhado em Stalingrado, a campanha no norte da África estava praticamente perdida, a economia germânica já não tinha condições de fazer frente às demandas do front. A derrota era certa.

Na camada mais superficial de seu infame discurso, Goebbels decretou que o país não aceitaria os fatos e que estava disposto à completa aniquilação, como se ainda houvesse uma vitória no horizonte. Na realidade, o que estava sendo formalizado era um suicídio coletivo: o nazismo exigia da população como um todo um sacrifício, para esticar por um par de anos a sobrevivência de seu grupo criminoso.

Mas este resumo não dá conta de descrever o que se passaria nos anos seguintes, com o arquiteto Albert Speer como ministro dos armamentos: a escravidão dos prisioneiros de guerra (e dos campos de extermínio) foi intensificada, levando à morte por inanição de milhares de trabalhadores forçados; adolescentes foram enviados ao front sem treinamento para missões inviáveis; populações inteiras foram deixadas sem comida; toda matéria prima possível foi desviada para a produção militar. As vítimas se contam aos milhões, não só entre os povos ocupados, mas também entre os próprios alemães. E o mais importante: quanto mais os soviéticos de aproximavam de Berlim, maior era a disposição para a infâmia suicida.

Como eu disse, é preciso “guardar as devidas proporções”. Não estou dizendo que houve no Brasil algo semelhante ao Sportspalastrede. Pelo contrário, sua ausência é o que mais me perturba, porque acredito, sim, que o princípio de radicalização suicida que mobilizou Speer está disseminado, mesmo sem um apelo direto. É por não precisar da convocação explícita à barbárie que o caso brasileiro é ainda mais insidioso. Ao contrário do que ocorria num sistema totalitário como o alemão, não é preciso moldar o conjunto da população para uma ação coordenada, em bloco, comandada a partir de um ponto singular. Basta multiplicar a emissão de estímulos, que se reproduzem de um jeito que parece orgânico; quando chegam na ponta, esses estímulos entram em consonância com motivações e convicções, gerando atos ao mesmo tempo isolados e conectados. E mais: não é preciso arregimentar a todos, como nas massas uniformizadas de Nuremberg. Basta que, cá e lá, a destruição emerja, faça seu dano e perpetue a angústia e a confusão. E o medo.

No plano mais propriamente institucional, a coordenação é um pouco mais explícita, principalmente porque há um evidente núcleo de tratoramento do princípio republicano. Tendo conquistado um poder quase irrefreável e com o Executivo na coleira, o enorme pântano fisiológico do Congresso procura consolidar sua posição e garantir que ela dure além do atual mandato. Os casos das emendas de relator e da execução impositiva, são cristalinos: deixarão qualquer governo futuro à mercê de deputados que controlarão um naco maior do orçamento sem responder a ninguém. O que serviu na origem, ao que parece, para comprar apoio a um governo inepto, torna-se assim um mecanismo de perenização de poderes despóticos. Ao mesmo tempo, pautas caras aos lobbies mais retrógrados avançam com urgência, como a mineração em terra indígena ou o “PL do Veneno”, sem falar em todos os projetos que almejam implodir a educação e a saúde no país.

Resumindo: a intensificação da barbárie, esse “totaler Krieg” a que aparentemente estamos submetidos, responde à urgência que certos grupos de poder provavelmente estão experimentando de obter o tanto de espólio que puderem até a implosão do governo ou do país como um todo – que país consegue aguentar tanta morte, tanta fome, tanta frustração? E se não ficou evidente como a cacofonia dos constantes estímulos se reflete nos avanços de bancadas predatórias, grupos fisiológicos e corporações burocráticas sobre os recursos e as leis do país, eu coloco em palavras: a velocidade de renovação das pautas – no sentido jornalístico e no sentido administrativo – favorece a aprovação das piores medidas, porque a resistência não consegue se organizar. Quantas vezes as oposições não comemoraram a vitória de bloquear uma votação aqui e outra ali, enquanto passavam outras tantas igualmente anti-republicanas?

Talvez o sintoma mais grave e de efeitos mais duradouros da sanha antidemocrática seja a apresentação do documento preparado por três assim chamados “think tanks” ligados aos militares, com um projeto de terra arrasada para o Brasil a ser implementado até 2035. Em que pese o tom delirante de algumas das análises e o teor regressivos das propostas de política pública, é mais um caso em que se consolida como normalidade as forças armadas se apresentarem como partido político, com fundo programático – no caso, “desprogramático” – e, no lugar da “força de lei”, a força de um cano de canhão apontado contra nossas têmporas. A presença do vice-presidente da República no evento de lançamento do tal projeto é, não custa repetir, um acinte. Somado à tentativa de intervir no processo eleitoral, temos aí mais um caso de agressão à sociedade civil – mas até aí, nada de novidade em tempos de bolsonarismo.

Na verdade, neste caso, vale atentar mais para a própria apresentação do documento, a fanfarra em torno dele, associada à insistência em intervir nas eleições, com envio de “sugestões” ao TSE e reclamação de falta de “prestígio”. Do ponto de vista institucional, esse tipo de atitude corresponde às bravatas do próprio presidente, suas repetidas “motociatas”, das quais a mais funesta é essa última, a de Manaus – metrópole da Amazônia sob ataque e da população sem oxigênio. Muito mais do que o conteúdo de qualquer dessas iniciativas, dessas imagens, desses memes, o que conta é o estímulo afetivo, para correligionários e para inimigos. Aos primeiros, o que se diz é: “vocês têm rédea solta!” E aos últimos: “confundam-se! Protestem para cá e para lá! Tremam de medo!”

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Nesse meio-tempo, lemos algo quase todo dia sobre o perigo de que a patota hoje encastelada no Planalto tente um golpe de Estado no sentido clássico, ou quase. O golpe se aproveitaria do questionamento ao resultado das urnas para semear o caos, recorrendo ao extenso apoio nas forças armadas e nas de segurança estaduais, além de grupos civis armados – esses mesmos cujo armamento vira e mexe é encontrado nas mãos de criminosos comuns. A partir dessa situação de descontrole, conforme a expectativa de golpe clássico, o governo teria uma desculpa para fechar o regime.

É uma preocupação legítima, considerando todas as manifestações dessa intenção nos últimos anos, o motim cearense de 2019 e a prévia de sete de setembro do ano passado. Isso para não falar no exemplo americano, a invasão do capitólio em 6 de janeiro, agora sob investigação no Congresso de lá. Mas essa perspectiva de golpe bolsonarista, em geral, deixa de lado um detalhe quase prosaico. Um golpe tramado às claras, à vista de todos, não é bem um golpe; é antes uma ameaça ou uma promessa. Por isso, traz consigo a perspectiva de um acordo, já que alguém ameaçado é colocado diante da possibilidade de escolher entre diferentes caminhos.

Por isso, do ponto de vista deste texto, é mais importante se concentrar no próprio fomento a essa projeção do possível golpe. Uma vez mais, ele serve tanto para estimular a sanha agressiva dos apoiadores quanto para intensificar a confusão e o medo dos opositores. Enquanto houver ameaça de que as eleições sejam meladas, a mensagem está no ar: toda barbárie é aceitável, para não dizer desejável. Há sustentação institucional, há garantias das lideranças políticas. A impunidade é certa. Tudo somado, parece que não é no sentido clássico que estamos diante de um golpe – ou dentro dele; mais parece um extenso período de exceção não declarada, mas sugerida nas entrelinhas e reafirmada a cada episódio de horror impune e sancionado por meias-palavras dos centros de poder.

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Dito isto, é difícil não lançar a pergunta mais incômoda, que, devo confessar, não tenho ideia de como responder. Como agimos, sabendo da radicalização em curso, da guerra total em que o inimigo somos todos nós? Como se comportar no dia-a-dia, como bloquear a barbárie, como escapar da espiral de angústia?

A maior dificuldade, na tentativa de dar uma resposta a essas perguntas, é que o problema comunicacional não é uma via de mão dupla. Para o funcionamento regular dos mecanismos de manutenção de uma certa estabilidade social e institucional, não há nada que corresponda à cacofonia de estímulos, esses que constantemente mobilizam e desmobilizam afetos. A democracia, no sentido formalizado em que a conhecemos, depende, ao contrário, de uma comunicação capaz de produzir sentido e relevância, não entropia e espasmos violentos; opiniões e ideias, e não pavor e ódio. Assim, não adianta ficar procurando estratégias para contrabalançar o bombardeio simbólico com um outro bombardeio, mas de anticorpos.

Já ajudaria bastante se pudéssemos escapar da armadilha que consiste em reagir individualmente, repetidamente, a cada novo episódio, correndo atrás dos estímulos e passando de exasperação a exasperação, de desespero em desespero. Tenha a impressão de que o que de melhor se pode conseguir é que o vínculo estreito e reticular entre esses sucessivos atos horrendos e decisões políticas regressivas seja reconhecido, e que nosso repúdio seja estruturado, voltando-se para o conjunto como um todo. Seria bastante desejável se pudéssemos reinventar os estímulos que poderiam trazer à tona a capacidade de organização coletiva, de solidariedade, daquilo que tem sido chamado de tolerância, palavra talvez um pouco fraca demais para o que realmente é necessário.

Mas falar é fácil. Estamos cientes, em maior ou menor grau, de como todos esses episódios e todas essas iniciativas estão conectados. Constantemente, repetidamente, denunciamos a normalidade, aliás a hegemonia, de uma linguagem regressiva, obscurantista, fascista, no dia-a-dia do Brasil, e associamos esse estado de coisas a personagens que detêm poder e incentivam o avanço da barbárie. Se isso não basta para murchar o estímulo à guerra total, talvez seja apenas a expressão de que esse discurso segue forte no país e essa bomba só possa ser desarmada em um prazo mais longo, para nossa infelicidade.

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O que conduz à última questão: basta derrubar essas figuras funestas para afastar de vez a cacofonia? Bastaria reagrupar uma “coalizão democrática” em torno de um novo governo a partir do ano que vem? (Melhor não perguntar se existe disposição para uma tal coalizão em nossos grupos políticos.)

Dificilmente. Não foi o caso em outros países e não deverá ser aqui. Um dos núcleos do problema é que esse discurso, com um pé no fascismo e outro na tradição colonial, se legitimou suficientemente na sociedade brasileira para se fixar. A cacofonia ainda reverbera, mesmo que seus pólos emissores desapareçam – aliás, não vão desaparecer, só vão perder alguns de seus dispositivos e uma parcela de seus recursos. Ou seja, devemos reconhecer que não vamos retornar tão cedo a uma condição que poderia ser considerada normal. A bem dizer, um olhar um pouco mais detido sugere que já não há mais sentido no termo “normalidade”, se quisermos aplicá-lo ao que vivemos nas décadas de 1990-2000.

Para ficar só naquilo que foi transformado por esses quatro anos de barbárie oficial, há vários problemas já fáceis de identificar. Sabemos que os grupos radicalizados permanecem, seguirão com a mesma radicalidade e alguma forma de coordenação, ainda que os atuais líderes acabem sendo substituídos por outros, talvez até mais sagazes e, portanto, perigosos. O caso do professor de cursinho para agentes rodoviários federais que, filmado, ensinou a improvisar uma câmara de gás, sem o menor constrangimento, é ilustrativo. É preciso um estado muito degradado da mentalidade em um país para que alguém se disponha a falar daquela maneira em público, sendo registrado ou não.

O perigo maior, neste caso, é que se os membros mais ativos desses núcleos se sintam traídos e prejudicados quando o golpe clássico não ocorrer, pelo menos não com intensidade suficiente para sacramentar o triunfo da barbárie. A partir daí, dois caminhos opostos são possíveis, e ambos são perspectivas assustadoras. Eles podem reforçar seus laços, renovando a coordenação fascistizante; ou podem se fragmentar em pequenos grupos violentos, atuando espalhados pelo território e mais presentes no dia-a-dia da sociedade. Com fácil acesso a armas e um ódio dirigido a categorias vulneráveis, não é absurdo esperar o pior, em ambas as hipóteses.

Também devemos nos preocupar, e muito, com a renovação da fantasia característica dos militares – e ao chamar de fantasia não estou querendo dizer que não possa ter impacto real – de que constituem um dos poderes da república, ou melhor, um de seus alicerces. O tal documento dos “think tanks” é, além de uma ameaça (mal e mal) velada a todos nós, um sinal de que essa auto-imagem falsa, perigosa e inconstitucional segue sendo cultivada nos quartéis.

Outro elemento importante é o expressivo apoio ao projeto regressivo e recolonizador no meio empresarial, inclusive depois que se tornou evidente o caráter fraudulento da imagem intelectual e gestora de Paulo Guedes. Olhando nome a nome a lista de empresários que mergulharam com mais gosto no universo do bolsonarismo, encontramos um perfil ligado a setores pouco produtivos, como o comércio de grandes superfícies e a alimentação rápida, ao lado de exportadores de soja e gado. Uma característica que reúne esses nomes é sua pouca dependência da estabilidade econômica, social e política do país. É diferente, por exemplo, do que foram as lideranças do setor privado no passado (pense em Roberto Simonsen, Horácio Lafer etc.). E também é diferente de quem investe em mercados altamente tecnológicos, como os setores ligados à chamada “bioeconomia” – por mais questionável que o conceito possa ser, do ponto de vista ecológico. Para esses empresários da baixa produtividade, embora possam perder receitas com a instalação do caos e da pobreza, suas empresas são capazes de absorver o choque, seja por meio de demissão e achatamento de salários, seja batendo na porta de um governo amigo em busca de ajudas diretas. Diferentemente de grupos industriais, ou mesmo de serviços, da fronteira tecnológica, não precisam se preocupar com a concorrência de companhias que atuam em ambientes de muito maior segurança institucional e são pouco afetados pelas variações exageradas do câmbio.

Resumindo: o enraizamento da mentalidade autoritária e obscurantista no país é duplo: está tanto no dia-a-dia dos conflitos sociais quanto no âmbito daqueles que de fato controlam o país – isto é, sua economia, sua política, sua comunicação. Duplo, mas, é claro, articulado, já que um lado se alimenta do outro e os “donos do poder”, como diria Raymundo Faoro, têm todo interesse em fomentar uma sociedade atomizada, conflituosa e desesperançada. Livrar-se dessa mentalidade vai ser tarefa difícil e para muitas décadas.

Para terminar em tom um pouco menos funéreo, quero repetir o que disse antes, e que em condições normais nem precisaria ser dito: o Brasil não é, de modo algum, “essencialmente” autoritário e obscurantista, até porque essas “essências nacionais” são tolice, coisa digna dos Le Pen deste mundo, e nada mais. O autoritarismo e a violência que reconhecemos no nosso dia-a-dia se desenvolveram com o passar das gerações; são reforçados sempre que se reproduzem as estruturas de dominação e exploração herdadas do período colonial e transformadas a cada etapa histórica. Mas em outros planos a mesma sucessão de gerações produziu muito de criativo, gregário, solidário, nos interstícios dessas estruturas. Não é à toa que os estrangeiros nos veem como um povo tolerante e acolhedor.

Não faltam organizações, grupos e indivíduos que reafirmam e se alimentam desse Brasil solidário e cooperativo; somos, sim, perfeitamente capazes de atrofiar a abjeta e obscura aliança do fisiologismo com a barbárie, do fascismo com a predação; temos mais do que o necessário para articular um sistema sólido de cooperação e democracia. O terremoto político do último decênio teve o efeito lamentável de desagregar muito dessa trama de organizações que constituem a sociedade civil, abrindo o caminho para a avalanche de cacofonia e ruído que nos colocou na atual situação catastrófica e potencialmente suicida. Mas desagregação não é desaparecimento. Cá e lá, surgem novos cristais e novas coalizões. Inclusive, alianças até ontem improváveis. São sinais de caminhos que se abrem.

As ilustrações são desenhos de Käthe Kollwitz
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What if…

Eu tentava há dias formatar na cabeça um texto sobre aquilo que chamo de “o paradoxo europeu”, se me permitem sair batizando problemáticas. Mas, como sabe quem leu a postagem anterior, minha cabeça não se encontrava no estado mais propício para formatar o que quer que fosse. Além do mais, um tema com nome tão pomposo quanto “o paradoxo europeu” exige um texto à altura, rigorosamente argumentado, cheio de sutileza e argúcia, palavras difíceis, o escambau. Mas, se é para colocar em poucas palavras, posso dizer o seguinte:

Quando vim morar na França, tinha uma idéia que, se não chegava a convicção, parecia fazer muito sentido. Acreditava eu que, depois de tanto sangue e tantos crimes, tantos traumas, tantas guerras, o continente europeu, obrigado a encarar a decadência e o crescimento político e econômico de suas antigas colônias, teria aprendido a tornar-se cosmopolita, tolerante, definitivamente civilizado. Antes que me tomem por um pobre ingênuo, aviso que essa forma de ver não estava tão equivocada assim.

Os europeus têm uma tendência ligeira mas perceptivelmente menor do que nós, americanos (falo do continente, por favor) para entrar em farras e modismos como foi, por exemplo, o falecido Consenso de Washington. Antes de cometer suas enormes besteiras, eles debatem muito, se questionam à exaustão, entojam uns aos outros com conceitos e teorias adquiridos por meio de leituras exaustivas dos autores mais qualificados e presunçosos. Os europeus, apesar de ainda se considerarem o centro do mundo (atire a primeira pedra…), se interessam pelas culturas mais distantes, não raro se apaixonam por uma culinária, língua ou dança muito exótica (para eles; e no meio dessa salada está a nossa). Verdade seja dita, o europeu médio, e em particular o francês, toma esse interesse (muito simpático, por sinal) como um selo de autoridade para definir, em poucas palavras, o que é ou deixa de ser tal ou tal país. Infelizmente, porém, eles não aceitam ser desmentidos nem mesmo por alguém que nasceu e cresceu no lugar em questão. Mas, nesses momentos, o melhor a fazer é contar até dez e mudar de assunto.

Mas é claro que não seria esse elogio mitigado que inspiraria o texto que eu ruminava na semana passada. Não sou de distribuir elogios gratuitamente. A triste realidade é que há tempos ficou claro que o aprendizado desse povo teimoso ficou muito aquém do necessário. O holocausto mal conseguiu abafar um antisemitismo renitente, que transparece em pequenas frestas dos discursos de todos e na quase indiferença com que se tratam os repetidos ataques a sepulturas judaicas, entre outras pequenas barbaridades. A flutuação interminável das fronteiras, o muro que rasgou Berlim, a Cortina de Ferro que, pela enésima vez, cindiu radicalmente o continente, nada disso serviu para que as populações abraçassem com honestidade a idéia de uma União Européia digna do nome. E mal adianta explicar que países pequenos como os europeus tendem à irrelevância, se continuarem se estranhando, num mundo altamente competitivo e de grandes blocos. Para encerrar, pergunte se alguém por aqui sente remorso pelos inúmeros genocídios cometidos por seus ancestrais em três continentes: a resposta será um ar se surpresa e algo como um “nunca pensei nisso”…

Até aqui, tratei no máximo de anedotário, curiosidades pitorescas, embora às vezes irritantes. O que há de verdadeiramente triste é constatar que o repertório de grandes tolices que os europeus têm para praticar ainda não está esgotado. Movimentos obscurantistas de bloqueio ao avanço da integração continental; a incrível volta do fascismo na Itália, patrocinada por ninguém menos do que Silvio Berlusconi, que dispensa apresentações, e implementada por pequenos governadores e prefeitos que culpam imigrantes e turistas pela notória e exagerada falta de educação dos italianos; o abandono de séculos de cultura e civilização, em nome de uma admiração cega e infantil pelo famoso american way of life, patente no estilo fashion victim de Sarkozy, talvez a figura mais medíocre e molenga da política mundial; a incapacidade, incrível numa terra tão cheia de sábios, de aparecer com respostas sensatas a problemas como a pirataria pela internet ou o afluxo interminável de imigrantes, o que resulta em medidas claramente antidemocráticas e discriminatórias. Se, no século XIX, EUA, Brasil e Argentina tivessem agido assim, os Europeus teriam comido uns aos outros, um enorme continente de Ugolinos. Eis meu “paradoxo europeu”. Esse, sim, é um aspecto que me surpreende profunda e negativamente numa terra com uma história tão conturbada quanto a européia.

Mas a cereja do bolo é aquele que me deu o ensejo de finalmente escrever este texto e, ainda por cima, inspirou a idéia do “E se…” do título. Jörg Haider, que morreu neste fim-de-semana ao enfiar seu carro num poste a 140 km/h, era provavelmente a figura mais preocupante de todas, ao menos para as consciências democráticas. Muito mais do que Jean-Marie Le Pen, que, com o perdão da falta de respeito, não passa de uma múmia gagá. Haider, ao contrário, tinha um carisma raro, parecia fisicamente (e se comparava a) Tony Blair, era jovem, conhecia os caminhos da política. Não gostava nada de imigrantes, considerava os europeus não-austríacos como rivais, admirava as Waffen SS e não considerava particularmente condenáveis as coisas que aconteceram em seu país entre 1938 e 1945 (chegou a chamar os campos de extermínio, como Auschwitz, de “campos de punição”…).

Muita gente o considerava uma espécie de novo “você sabe quem”; mas o compatriota mais famoso de Haider fez seu nome na cena política alemã numa época em que a injustiça do tratado de Versalhes, a hiperinflação e a Grande Depressão fizeram da terra de Goethe um país de gente ressentida e sedenta por vingança. Mesmo assim, cabe lembrar que o NSDAP não conseguiu mais de 35% dos votos limpamente. Para tornar-se partido majoritário, teve de incendiar o parlamento (Reichstag, um edifício lindo, por sinal) e jogar a culpa nos comunistas. Já Haider andava na casa dos 11% com sua Aliança para o Futuro da Áustria (nome que levanta desconfianças, não?), o que, somando os votos se seu antigo partido, também de extrema direita Partido da Liberdade da Áustria (antigo partido de Haider), dá aos obscurantistas e revisionistas algo como um quarto das cadeiras e um lugar na coalizão que governa. Trocando em miúdos, era uma força política cada vez maior, por incrível que pareça.

Mas eis que morreu Jörg Haider, aos 58 anos, figura mais emblemática do retrocesso europeu. É claro que o eleitor reacionário não vai mudar de posição, mas a perda de uma figura tão carismática é sempre um golpe duro. Andam dizendo que os dois partidos extremistas talvez consigam reatar, sem a figura acachapante de Haider, o que os tornaria, aí sim, de fato fortíssimos na cena nacional austríaca. A ver-se. Mas eu, de minha parte, lendo sobre o assunto, não consegui evitar a lembrança de uma mania tipicamente americana, que aliás é título (ou era, as coisas mudam tanto) de uma série de revistas em quadrinhos da Marvel: “What if…

Várias vezes, já me perguntei o que teria sido do mundo se, por exemplo, Marco Aurélio tivesse conquistado as terras ao norte do Danúbio. Se os portugueses não tivessem conseguido expulsar Villegagnon da Guanabara. Se os ingleses tivessem consolidado seu domínio na França, durante a Guerra dos 100 anos. Se Amaury Kruel não tivesse mudado de lado na última hora e 1964 marcasse não um golpe, mas o início de uma guerra civil. Se os alemães tivessem atacado para valer em Dunquerque e aniquilado o exército britânico. Se, e isso seria ainda mais engraçado, quando se escolheu a língua oficial dos EUA, em vez de dar inglês por um voto contra o alemão, fosse o contrário. E por aí vai.

Mas a questão mais terrível que se coloca é a seguinte: e se o jovem Adolf Hitler tivesse sido abatido quando era cabo do exército austríaco na Primeira Guerra Mundial? Se ele jamais pudesse escrever Mein Kampf, queimar livros e exterminar minorias? Não teria havido Segunda Guerra? Não teria existido a catarse suicida da Europa, bombardeios e carnificinas mútuos? O que teria sido a história do século XX sem Muro de Berlim, sem Comunidade Européia, sem Plano Marshall? Israel jamais teria sido fundado, provavelmente. Toda a reflexão, todo o sentimento de culpa, toda a vergonha pela colaboração com o nazismo, forte em todos os países que a Alemanha ocupou e mesmo em alguns que seguiram livres, nada disso teria acontecido. A maneira de pensar elitista e, sem dúvida, racista do século XIX, que até o holocausto nunca tivera necessidade de esconder o rosto, ganharia mais um bom meio século de hegemonia escancarada. Certamente, menos sangue teria sido derramado no período infernal do domínio de Hitler. Mas também cabe se perguntar quanto sangue a mais não teria sido derramado depois. E eis uma pergunta mais difícil, porém talvez mais importante: a bomba, não tendo estourado em 1939, demoraria quanto tempo a mais para estourar? E teria estourado mais forte, com armamento atômico já desenvolvido?

Ninguém sabe, é claro. Mas sabemos, isso sim, que hoje, no início do século XXI, uma outra bomba está armada. Desta vez, o crescimento das hostilidades é mais lento e mais disfarçado. O mundo é outro, mais global, mais competitivo, mais exausto por uma exploração predatória e irresponsável. Há mais gente para se sentir injustiçada, há mais gente para empobrecer com a crise. Mas a idéia de que haja inimigos espalhados pelo mundo inteiro está voltando à moda. Jörg Haider, a figura emblemática, na Europa, deste tipo de pensamento, acaba de morrer. Talvez os ânimos se acalmem um pouco por enquanto, ao menos na Áustria, na falta de um grande líder irresistível.

Mas e depois? E se (what if…) surgir um outro? E nem precisa ser aqui. Os Estados Unidos, que não têm a mesma história, nem a mesma cultura, nem os mesmos problemas, nem o mesmo “paradoxo” da Europa, estão loucos, mal se segurando nas calças, para entrar pelo mesmo caminho de sandices. E já que atravessamos o Atlântico, por que não estender as perguntas: e se Obama não for eleito? E se for eleito, mas não puder assumir? E se…

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Brasil, descoberta, economia, história, ironia, opinião, reflexão, São Paulo, trânsito, tristeza

Se um estoura, estouram todos (ou O Sapo de La Fontaine)

Sapo gordo prestes a estourar (La Fontaine)
É feio dizer “eu avisei” ou “eu já sabia”; mas acontece que, bem, eu avisei. E eu já sabia. Com as ferramentas rudimentares do raciocínio econômico que tinha aprendido a manusear ao final de uma formação quase involuntária, consegui provar por A+B que, não importa em que direção aponte o gráfico de crescimento do PIB brasileiro, a cidade de São Paulo caminhava com destino certo para o colapso definitivo. Isso, perdoe reiterar, é o que eu dizia há coisa de cinco anos. Mas só hoje, ao tentar discutir soluções para o problema do trânsito, a sociedade e seus governantes percebem o óbvio.

Bem que tento conter o impulso de me vangloriar. Mas lembro dos fins-de-tarde nos botecos da Augusta, contemplando a guerra entre carros, motos e ônibus, tomando cerveja gelada enquanto os afoitos profissionais derretiam na tentativa de voltar a casa; lembro dos amigos a rir, já altos, da exposição detalhada de minha teoria. Lembro que eles consideravam impossível duas tendências opostas darem o mesmo resultado. Enfim, só quero lembrar a eles que estava tudo previsto.

Aqueles meus cálculos contemplavam duas possibilidades, ou seja, um Brasil em franco crescimento econômico, digamos, quase um novo milagre; ou um Brasil estagnado, irremediavelmente estagnado, pior ainda do que foi nos anos 80 e 90. Em ambos os casos, a própria concentração pantagruélica de riqueza na terra que um dia teve garoa se encarregaria de sufocá-la. Vejamos, em primeiro lugar, o que aconteceria se o país não conseguisse retomar o crescimento:

À primeira vista, a idéia não parece má para a vida paulistana. Sem crescimento econômico, vendem-se menos carros, constroem-se menos arranha-céus, menos pessoas se espremem nas plataformas do metrô, menos aviões chegam e partem de Congonhas. Olhando assim, não parece terrível, para a cidade de São Paulo, que o país siga estagnado. Acontece que, como de hábito, a coisa não é tão simples. Mesmo estagnado, o país produz novas pessoas; é gente que precisa encontrar trabalho e, como já se viu durante décadas em nosso país, vai atrás dele onde ele está. Conseqüência: o fluxo de gente em desespero, fugindo da miséria, que chegaria em São Paulo em busca de emprego não deixaria de aumentar. A cidade ficaria ainda mais apinhada, mais favelizada, mais desigual e, bem provavelmente, mais violenta. Em duas palavras, ela sufocaria.

E se o país enriquecesse, (sem redistribuir a economia pelo território)? Nesse caso, o crescimento dos investimentos, o aumento da renda, a queda do desemprego, a pressão por novos empreendimentos – em resumo, tudo que acompanha o crescimento econômico vigoroso – tornaria a cidade intransitável em dois segundos. E irrespirável, naturalmente. O horizonte sumiria de vez, as aeronaves se chocariam, tentando pousar no meio da cidade, o barulho de helicópteros ficaria insuportável; no metrô, um grito de “fogo”, “rato” ou “tarado” causaria uma onda de choque que atiraria os cidadãos mais próximos da linha sobre os trilhos eletrificados (já é assim). O caos, que estava evidente para qualquer um com o mínimo senso de civilização, ficaria patente.

Na última semana, li diversos comentários sobre os recordes de engarrafamento em São Paulo. 180 quilômetros, 190, 200, 220. O metrô teria sido uma solução, mas é tarde, não dá tempo. Tampouco bastaria a proposta de pedágio urbano: por falta de opções, os carros pagariam, mas continuariam circulando quase tanto quanto hoje. Há mais de dez anos, li que o prejuízo com o trânsito, só em São Paulo, passava da casa do bilhão e meio de dólares por ano. Hoje, deve ser o triplo disso. Já era uma cidade em que eu não conseguia trabalhar direito, porque já chegava “no serviço” (como se diz) esgotado. Hoje, tremo de lembrar.

A única solução para São Paulo e, de maneira geral, para o Brasil e suas metrópoles, é repensar nossa lógica econômica. Precisamos tomar consciência de nossa dificuldade em romper com a tradição do Convênio de Taubaté. Eis o ponto-chave nefasto de nossa história, que escancarou, em papel passado, nossa escolha pelo latifúndio. Passamos dos cafeicultores aos industriais, depois aos bancos, mas ainda somos os mesmos. Queremos concentrar a lavoura (em sentido metafórico), queremos crescer com a energia que sugamos dos vizinhos, e ainda acreditamos demais em superlativos: de que vale termos o maior estádio, a segunda maior frota de automóveis e terceira de helicópteros, a maior sala de concertos, as maiores cidades? Do outro lado, o país ainda produz miséria, ignorância e barbárie em profusão. Voltando à realidade de São Paulo, temos uma Berrini que vai se verticalizando, enquanto, ao nível do solo, a vida é, há tempos, insuportável. Má escolha.

Sem desconcentrar a economia, integrar o país e desenvolver as regiões, ou seja, o território como um todo, o país e sua maior cidade estão condenados. É o anátema da cobiça. Mas isso é apenas o evidente. São Paulo, primeiro, cresceu como centro industrial e era um modelo para o resto do país; locomotiva, dizia-se. No meio do caminho, o maquinista parece ter exagerado no carvão; achacado pelo espírito do Convênio de Taubaté, depenou das tábuas os demais vagões, para continuar acelerando. A cidade se pôs a concentrar o setor financeiro, o cultural, o varejista, o esportivo, o editorial, o aéreo…

Faz lembrar o sapo da fábula de La Fontaine, que queria ficar do tamanho de um boi. Foi se enchendo de ar, cresceu, cresceu, até que estourou. No caso de Sampa, o maior problema é que tem um país em volta. Se um sapo estoura, estouram todos. Parece que a barriga do bicho já apresenta algumas rachaduras preocupantes. E as perspectivas de crescimento para o PIB brasileiro em 2008 vão além dos 5% de 2007. Não tem metrô, pedágio ou rodízio que sirva de esparadrapo para um sapo tão inchado.

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