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A barbárie se acelera?

Chegamos a meados de 2022 e parece que já não é mais a cada poucos meses que somos confrontados com um novo episódio de barbárie em algum canto do Brasil – agora, poucas semanas separam o anúncio de um massacre no Rio, uma câmara de gás em Sergipe, um assassinato brutal na Amazônia ou no Cerrado, para citar só os mais midiatizados. São todos acontecimentos hediondos, à primeira vista sem conexão direta entre si, mas temos a impressão de que estão mais frequentes.

Viramos as páginas dos jornais – quem ainda faz isso – para a seção nacional ou de política e damos com um noticiário de outra natureza, mas igualmente perturbador. Ou melhor, igualmente bárbaro: a diferença é que o sangue não salta diretamente das páginas. Uma decisão como a do rol taxativo no STJ; a pressão dos militares sobre o processo eleitoral; os bilhões canalizados pelo orçamento secreto; os milhões gastos por municípios com concertos misturados a propaganda; a proposta, ou ameaça, de um estado de calamidade que permitiria desviar ainda mais recursos para fins eleitoreiros, e por aí vai. Desta vez, estamos falando de degradação institucional, mas a sensação é a mesma: o processo está se intensificando ou acelerando.

O que dizer desse sentimento de aceleração? Os golpes estão mesmo cada vez mais frequentes ou seria apenas um reflexo de nossa ansiedade com a aproximação de um período já normalmente tenso, como é o processo eleitoral? Ou ainda: se os episódios de barbárie e degradação institucional estiverem mesmo se precipitando, é justo imaginar que exista alguma coordenação entre eles, proposital ou involuntária? Se houver, realmente, algum mecanismo pelo qual uma causa comum leva à sucessão desabalada de iniciativas destruidoras, ele pode ser identificado?

Coloquei as perguntas nessa ordem porque uma das características do conflito assimétrico e informal, majoritariamente cibernético, que caracteriza nosso tempo é justamente torná-las quase irrespondíveis. Mesmo assim, creio que, se atravessarmos esse “irrespondível” e a confusão que o acompanha, podemos identificar um movimento que talvez seja proteiforme, mas é coeso. Lamento dizer, o que parece estar atrás da cortina é aterrador.

Chegamos a meados de 2022 e tudo indica que está em curso uma iniciativa de “guerra total” quase – veja bem, quase – espontânea, e por isso mesmo ainda mais potencialmente destruidora. Mas antes de começar qualquer tentativa de diagnóstico, é preciso recuar alguns passos e buscar um olhar um pouco mais abstrato, para que o cenário de fundo esteja minimamente acessível. Seja paciente.

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Começado pela última questão: a coordenação e a causa comum a todos esses episódios é indemonstrável, porque é desnecessária. Ou melhor, o que é desnecessário é um centro inspirador ou decisório único. Basta que exista alguma modalidade de comunicação – que pode ser um único sistema ou a conjunção de vários – capaz de alinhar o desejo de realizar determinada ação com a capacidade de levá-la a cabo. A única coisa indispensável para conseguir que algo se opere, tenha efeitos, é que os agentes mobilizados na ponta – digamos assim, os “terminais” ou “receptores” – obedeçam a motivações mais ou menos coerentes – ou seja, coerentes o bastante. Em outras palavras, não são as ações que precisam ser coordenadas, mas as motivações; aquilo que, cá e lá, dispara uma ação.

Ora, é precisamente essa questão comunicacional que conduz ao irrespondível das primeiras perguntas. Se ficamos ansiosos ao ser confrontados com a repetida barbárie, em sua versão sanguinolenta e em sua versão institucional, parte da razão é que as mesmas modalidades de comunicação que alinham motivações também semeiam ansiedade. Os mesmos estímulos emitidos constantemente, a mesma cacofonia, que galvaniza as ações de um lado, do outro geram confusão. A avalanche de imagens e mensagens é tanto paralisadora quanto mobilizadora, conforme a predisposição das pessoas espalhadas pelo território – os “terminais”.

Por isso, não faz sentido opor a sensação do horror intensificado e a realidade material que poderia sustentar essa percepção. Essa condição da comunicação reticular, entranhada no tecido social, provoca a impressão de que esses acontecimentos horríveis que testemunhamos podem ser postos em ação, um tanto paradoxalmente, por si próprios. Somos quase conduzidos a dizer que ninguém é responsável, mas, como já não conseguimos nem mesmo afirmar a realidade do complexo de eventos que estamos testemunhando, não chega a ser surpreendente.

Poderíamos contrastar essa nebulosidade, por exemplo, com o que aprendemos no caso Cambridge Analytica, em que agentes muito específicos manipularam indivíduos em um vasto território, com ferramentas discretas e disponibilizadas com essa precisa finalidade. Algo semelhante ocorreu em torno de 2018, com os disparos de mensagens e os robôs que todos conhecemos, a começar por Carluxo. Também dá para fazer um contraste com o episódio da invasão do congresso americano, em 6 de janeiro do ano passado. Também aí havia um centro emissor na figura de Trump, que colocou em movimento seus seguidores a partir da acusação de fraude eleitoral e o slogan, ou grito de guerra, “stop the count”.

Mas mesmo nesses dois casos, o que realmente disparou as atitudes, as ações, até mesmo as crenças – o que poderíamos chamar de sua “causa eficiente” – foi a disposição dos próprios receptores, cultivada ao longo de um extenso período e disponíveis para aquelas mensagens. O caso Cambridge Analytica é mais evidente, porque justamente aqueles com alguma inclinação a se conectar com as mensagens enviadas eram focalizados – e vendidos como alvos.

No caso da extrema-direita brasileira, a radicalização se deu por vias semelhantes, mas não idênticas. Ao inundar os dispositivos com mensagens que tocavam em todos os temores possíveis do brasileiro – raciais, sociais, religiosos, o que for –, era praticamente garantido que uma quantidade suficiente de pessoas seriam capturadas para uma rede de influência que se retroalimenta e se torna cada vez mais coesa.

Em tempo: não estou falando especificamente das tecnologias algorítmicas usadas no disparo de propaganda (explícita ou implícita), embora elas sejam, é claro, um elemento capital do problema. Mas elas se articulam com todo tipo de dispositivo que dissemina opiniões, impressões e convocações: dos púlpitos aos editoriais, das mesas de bar aos seminários, da sala de jantar aos intervalos entre aulas. Quanto mais modulações diferentes um estímulo lograr, melhor ele se embrenha no tecido social e se naturaliza.

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Entre contrastes e semelhanças, o que se passa hoje no Brasil tem suas singularidades, que me parecem determinantes para esclarecer a questão da aceleração do horror, a “guerra total” a que estamos submetidos. Em primeiro lugar, estamos falando de um complexo com ao menos duas dimensões, como já mencionei. De um lado, os atos de barbárie estúpida, espalhados por várias regiões e no quotidiano das pessoas; do outro, a degradação institucional no Congresso, nos tribunais, em determinadas autarquias, no Executivo federal e também nas esferas inferiores – menção desonrosa para as ditas forças de segurança, tanto as forças armadas quanto as polícias.

É preciso olhar um pouco para o cenário em que tudo isso se desenrola, ou seja, o contexto, a massa preparada com fermento para se tornar o bolo de destruição hoje se expandindo tão rápido.

Primeiro ponto: não é difícil remeter a barbárie quotidiana ao discurso funesto que se expandiu assustadoramente no país a partir de 2014, mais ou menos, e que explodiu com a candidatura e eventual vitória do atual ocupante do Planalto, quatro anos mais tarde. A “foice no pescoço da Funai”, o envio de adversários à “ponta da praia”, o “fuzilar a petralhada”, e assim por diante, são sementes que se espalham e, juntando-se a outras emitidas por personagens menos notórios – alguns deles, inclusive, hoje nominalmente de oposição –, criam um terreno de naturalidade para que atos de violência e crueldade emerjam conforme as circunstâncias.

Veja bem: criam o terreno, mas o potencial para a violência e a crueldade estavam disponíveis, já compunham a massa complexa do dia-a-dia brasileiro; caso contrário, não poderiam vingar. O caráter claramente racial de muita dessa violência; a tentativa de acelerar a eliminação dos povos indígenas, e dos biomas em que vivem, para avançar o extrativismo; o elitismo presente em alguns desses crimes; a virada opressiva e aniquiladora de certa religiosidade. Nada disso foi inventado em 2018. Foi, isso sim, realçado, em detrimento de tantas outras características igualmente presentes no quotidiano do país, das formas de solidariedade à disposição em abraçar o outro, o diferente – o que é mais que tolerância e, sim, pode estar em baixa hoje, mas é um traço bastante frequente no brasileiro.

O segundo ponto é um pouco mais difícil de tratar; tentei fazer isso neste texto de 2018. Hoje, já está em plena vista muito do que, naquele momento, ainda tínhamos que tentar demonstrar. É evidente que, ao menos desde meados de 2020, o atual governo só se sustenta porque funciona como uma espécie de mediador, um “buffer” para que forças políticas de dominação local – leia-se centrão – e grupos de interesse encastelados, a começar pelo latifúndio, ampliem seu controle já enorme sobre o Estado e os recursos do país. O que esses grupos identificam como principal inimigo? Muito simplesmente, o conjunto de todos os ganhos trazidos pela redemocratização e os anos seguintes. Ganhos institucionais, como o SUS e o controle sobre as decisões de agentes públicos (e aí se contam desde os tribunais de contas até a LRF, com todos os seus defeitos). Ganhos sociais, como os programas de distribuição de renda, a proteção de terras indígenas, as cotas no ensino superior. E, principalmente, tudo que possa ser um obstáculo a uma economia primária e dependente. Como previsto, vamos sair dessa lamentável experiência com um país ainda mais oligárquico, parasitário e paralisado.

Assim, quando sentimos que algo parece estar se acelerando, trata-se de uma conjunção, uma espécie de aliança informal (às vezes formal) entre os aspectos mais nefastos da nossa realidade social, realçados e coordenados por um sistema de comunicação quase orgânico, e os aspectos mais atrasados – e também nefastos, por que não dizer – da nossa realidade política. Se muitas vezes você pensou que o pior de nós está no poder, é porque está.

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Resta tentar explicar por que estou falando em “guerra total” para me referir à aceleração dos horrores, sanguinolentos e institucionais. Com o risco de estar cometendo uma “reductio ad Hitlerum”, algo ainda mais delicado em se tratando de grupos políticos que evidentemente têm o fascismo como princípio ativo em sua fórmula, acho que não é absurdo enxergar no que está se passando hoje no Brasil a atitude de quem vê o fim, aliás a derrota, se aproximando e, sem poder apagar o rastro de seus crimes, escolhe o caminho inverso: intensificá-los. Nesse caso, é difícil não fazer um paralelo com “der Totale Krieg” (guerra total).

Guardadas as devidas proporções, foi o que se passou a partir de 1943, quando Goebbels fez seu chamado ao “Totaler Krieg”, em discurso no Sportspalast de Berlim. Naquele momento, já era evidente que as chances de vitória do Eixo na guerra eram ínfimas. Duas semanas antes, o exército alemão havia sido humilhado em Stalingrado, a campanha no norte da África estava praticamente perdida, a economia germânica já não tinha condições de fazer frente às demandas do front. A derrota era certa.

Na camada mais superficial de seu infame discurso, Goebbels decretou que o país não aceitaria os fatos e que estava disposto à completa aniquilação, como se ainda houvesse uma vitória no horizonte. Na realidade, o que estava sendo formalizado era um suicídio coletivo: o nazismo exigia da população como um todo um sacrifício, para esticar por um par de anos a sobrevivência de seu grupo criminoso.

Mas este resumo não dá conta de descrever o que se passaria nos anos seguintes, com o arquiteto Albert Speer como ministro dos armamentos: a escravidão dos prisioneiros de guerra (e dos campos de extermínio) foi intensificada, levando à morte por inanição de milhares de trabalhadores forçados; adolescentes foram enviados ao front sem treinamento para missões inviáveis; populações inteiras foram deixadas sem comida; toda matéria prima possível foi desviada para a produção militar. As vítimas se contam aos milhões, não só entre os povos ocupados, mas também entre os próprios alemães. E o mais importante: quanto mais os soviéticos de aproximavam de Berlim, maior era a disposição para a infâmia suicida.

Como eu disse, é preciso “guardar as devidas proporções”. Não estou dizendo que houve no Brasil algo semelhante ao Sportspalastrede. Pelo contrário, sua ausência é o que mais me perturba, porque acredito, sim, que o princípio de radicalização suicida que mobilizou Speer está disseminado, mesmo sem um apelo direto. É por não precisar da convocação explícita à barbárie que o caso brasileiro é ainda mais insidioso. Ao contrário do que ocorria num sistema totalitário como o alemão, não é preciso moldar o conjunto da população para uma ação coordenada, em bloco, comandada a partir de um ponto singular. Basta multiplicar a emissão de estímulos, que se reproduzem de um jeito que parece orgânico; quando chegam na ponta, esses estímulos entram em consonância com motivações e convicções, gerando atos ao mesmo tempo isolados e conectados. E mais: não é preciso arregimentar a todos, como nas massas uniformizadas de Nuremberg. Basta que, cá e lá, a destruição emerja, faça seu dano e perpetue a angústia e a confusão. E o medo.

No plano mais propriamente institucional, a coordenação é um pouco mais explícita, principalmente porque há um evidente núcleo de tratoramento do princípio republicano. Tendo conquistado um poder quase irrefreável e com o Executivo na coleira, o enorme pântano fisiológico do Congresso procura consolidar sua posição e garantir que ela dure além do atual mandato. Os casos das emendas de relator e da execução impositiva, são cristalinos: deixarão qualquer governo futuro à mercê de deputados que controlarão um naco maior do orçamento sem responder a ninguém. O que serviu na origem, ao que parece, para comprar apoio a um governo inepto, torna-se assim um mecanismo de perenização de poderes despóticos. Ao mesmo tempo, pautas caras aos lobbies mais retrógrados avançam com urgência, como a mineração em terra indígena ou o “PL do Veneno”, sem falar em todos os projetos que almejam implodir a educação e a saúde no país.

Resumindo: a intensificação da barbárie, esse “totaler Krieg” a que aparentemente estamos submetidos, responde à urgência que certos grupos de poder provavelmente estão experimentando de obter o tanto de espólio que puderem até a implosão do governo ou do país como um todo – que país consegue aguentar tanta morte, tanta fome, tanta frustração? E se não ficou evidente como a cacofonia dos constantes estímulos se reflete nos avanços de bancadas predatórias, grupos fisiológicos e corporações burocráticas sobre os recursos e as leis do país, eu coloco em palavras: a velocidade de renovação das pautas – no sentido jornalístico e no sentido administrativo – favorece a aprovação das piores medidas, porque a resistência não consegue se organizar. Quantas vezes as oposições não comemoraram a vitória de bloquear uma votação aqui e outra ali, enquanto passavam outras tantas igualmente anti-republicanas?

Talvez o sintoma mais grave e de efeitos mais duradouros da sanha antidemocrática seja a apresentação do documento preparado por três assim chamados “think tanks” ligados aos militares, com um projeto de terra arrasada para o Brasil a ser implementado até 2035. Em que pese o tom delirante de algumas das análises e o teor regressivos das propostas de política pública, é mais um caso em que se consolida como normalidade as forças armadas se apresentarem como partido político, com fundo programático – no caso, “desprogramático” – e, no lugar da “força de lei”, a força de um cano de canhão apontado contra nossas têmporas. A presença do vice-presidente da República no evento de lançamento do tal projeto é, não custa repetir, um acinte. Somado à tentativa de intervir no processo eleitoral, temos aí mais um caso de agressão à sociedade civil – mas até aí, nada de novidade em tempos de bolsonarismo.

Na verdade, neste caso, vale atentar mais para a própria apresentação do documento, a fanfarra em torno dele, associada à insistência em intervir nas eleições, com envio de “sugestões” ao TSE e reclamação de falta de “prestígio”. Do ponto de vista institucional, esse tipo de atitude corresponde às bravatas do próprio presidente, suas repetidas “motociatas”, das quais a mais funesta é essa última, a de Manaus – metrópole da Amazônia sob ataque e da população sem oxigênio. Muito mais do que o conteúdo de qualquer dessas iniciativas, dessas imagens, desses memes, o que conta é o estímulo afetivo, para correligionários e para inimigos. Aos primeiros, o que se diz é: “vocês têm rédea solta!” E aos últimos: “confundam-se! Protestem para cá e para lá! Tremam de medo!”

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Nesse meio-tempo, lemos algo quase todo dia sobre o perigo de que a patota hoje encastelada no Planalto tente um golpe de Estado no sentido clássico, ou quase. O golpe se aproveitaria do questionamento ao resultado das urnas para semear o caos, recorrendo ao extenso apoio nas forças armadas e nas de segurança estaduais, além de grupos civis armados – esses mesmos cujo armamento vira e mexe é encontrado nas mãos de criminosos comuns. A partir dessa situação de descontrole, conforme a expectativa de golpe clássico, o governo teria uma desculpa para fechar o regime.

É uma preocupação legítima, considerando todas as manifestações dessa intenção nos últimos anos, o motim cearense de 2019 e a prévia de sete de setembro do ano passado. Isso para não falar no exemplo americano, a invasão do capitólio em 6 de janeiro, agora sob investigação no Congresso de lá. Mas essa perspectiva de golpe bolsonarista, em geral, deixa de lado um detalhe quase prosaico. Um golpe tramado às claras, à vista de todos, não é bem um golpe; é antes uma ameaça ou uma promessa. Por isso, traz consigo a perspectiva de um acordo, já que alguém ameaçado é colocado diante da possibilidade de escolher entre diferentes caminhos.

Por isso, do ponto de vista deste texto, é mais importante se concentrar no próprio fomento a essa projeção do possível golpe. Uma vez mais, ele serve tanto para estimular a sanha agressiva dos apoiadores quanto para intensificar a confusão e o medo dos opositores. Enquanto houver ameaça de que as eleições sejam meladas, a mensagem está no ar: toda barbárie é aceitável, para não dizer desejável. Há sustentação institucional, há garantias das lideranças políticas. A impunidade é certa. Tudo somado, parece que não é no sentido clássico que estamos diante de um golpe – ou dentro dele; mais parece um extenso período de exceção não declarada, mas sugerida nas entrelinhas e reafirmada a cada episódio de horror impune e sancionado por meias-palavras dos centros de poder.

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Dito isto, é difícil não lançar a pergunta mais incômoda, que, devo confessar, não tenho ideia de como responder. Como agimos, sabendo da radicalização em curso, da guerra total em que o inimigo somos todos nós? Como se comportar no dia-a-dia, como bloquear a barbárie, como escapar da espiral de angústia?

A maior dificuldade, na tentativa de dar uma resposta a essas perguntas, é que o problema comunicacional não é uma via de mão dupla. Para o funcionamento regular dos mecanismos de manutenção de uma certa estabilidade social e institucional, não há nada que corresponda à cacofonia de estímulos, esses que constantemente mobilizam e desmobilizam afetos. A democracia, no sentido formalizado em que a conhecemos, depende, ao contrário, de uma comunicação capaz de produzir sentido e relevância, não entropia e espasmos violentos; opiniões e ideias, e não pavor e ódio. Assim, não adianta ficar procurando estratégias para contrabalançar o bombardeio simbólico com um outro bombardeio, mas de anticorpos.

Já ajudaria bastante se pudéssemos escapar da armadilha que consiste em reagir individualmente, repetidamente, a cada novo episódio, correndo atrás dos estímulos e passando de exasperação a exasperação, de desespero em desespero. Tenha a impressão de que o que de melhor se pode conseguir é que o vínculo estreito e reticular entre esses sucessivos atos horrendos e decisões políticas regressivas seja reconhecido, e que nosso repúdio seja estruturado, voltando-se para o conjunto como um todo. Seria bastante desejável se pudéssemos reinventar os estímulos que poderiam trazer à tona a capacidade de organização coletiva, de solidariedade, daquilo que tem sido chamado de tolerância, palavra talvez um pouco fraca demais para o que realmente é necessário.

Mas falar é fácil. Estamos cientes, em maior ou menor grau, de como todos esses episódios e todas essas iniciativas estão conectados. Constantemente, repetidamente, denunciamos a normalidade, aliás a hegemonia, de uma linguagem regressiva, obscurantista, fascista, no dia-a-dia do Brasil, e associamos esse estado de coisas a personagens que detêm poder e incentivam o avanço da barbárie. Se isso não basta para murchar o estímulo à guerra total, talvez seja apenas a expressão de que esse discurso segue forte no país e essa bomba só possa ser desarmada em um prazo mais longo, para nossa infelicidade.

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O que conduz à última questão: basta derrubar essas figuras funestas para afastar de vez a cacofonia? Bastaria reagrupar uma “coalizão democrática” em torno de um novo governo a partir do ano que vem? (Melhor não perguntar se existe disposição para uma tal coalizão em nossos grupos políticos.)

Dificilmente. Não foi o caso em outros países e não deverá ser aqui. Um dos núcleos do problema é que esse discurso, com um pé no fascismo e outro na tradição colonial, se legitimou suficientemente na sociedade brasileira para se fixar. A cacofonia ainda reverbera, mesmo que seus pólos emissores desapareçam – aliás, não vão desaparecer, só vão perder alguns de seus dispositivos e uma parcela de seus recursos. Ou seja, devemos reconhecer que não vamos retornar tão cedo a uma condição que poderia ser considerada normal. A bem dizer, um olhar um pouco mais detido sugere que já não há mais sentido no termo “normalidade”, se quisermos aplicá-lo ao que vivemos nas décadas de 1990-2000.

Para ficar só naquilo que foi transformado por esses quatro anos de barbárie oficial, há vários problemas já fáceis de identificar. Sabemos que os grupos radicalizados permanecem, seguirão com a mesma radicalidade e alguma forma de coordenação, ainda que os atuais líderes acabem sendo substituídos por outros, talvez até mais sagazes e, portanto, perigosos. O caso do professor de cursinho para agentes rodoviários federais que, filmado, ensinou a improvisar uma câmara de gás, sem o menor constrangimento, é ilustrativo. É preciso um estado muito degradado da mentalidade em um país para que alguém se disponha a falar daquela maneira em público, sendo registrado ou não.

O perigo maior, neste caso, é que se os membros mais ativos desses núcleos se sintam traídos e prejudicados quando o golpe clássico não ocorrer, pelo menos não com intensidade suficiente para sacramentar o triunfo da barbárie. A partir daí, dois caminhos opostos são possíveis, e ambos são perspectivas assustadoras. Eles podem reforçar seus laços, renovando a coordenação fascistizante; ou podem se fragmentar em pequenos grupos violentos, atuando espalhados pelo território e mais presentes no dia-a-dia da sociedade. Com fácil acesso a armas e um ódio dirigido a categorias vulneráveis, não é absurdo esperar o pior, em ambas as hipóteses.

Também devemos nos preocupar, e muito, com a renovação da fantasia característica dos militares – e ao chamar de fantasia não estou querendo dizer que não possa ter impacto real – de que constituem um dos poderes da república, ou melhor, um de seus alicerces. O tal documento dos “think tanks” é, além de uma ameaça (mal e mal) velada a todos nós, um sinal de que essa auto-imagem falsa, perigosa e inconstitucional segue sendo cultivada nos quartéis.

Outro elemento importante é o expressivo apoio ao projeto regressivo e recolonizador no meio empresarial, inclusive depois que se tornou evidente o caráter fraudulento da imagem intelectual e gestora de Paulo Guedes. Olhando nome a nome a lista de empresários que mergulharam com mais gosto no universo do bolsonarismo, encontramos um perfil ligado a setores pouco produtivos, como o comércio de grandes superfícies e a alimentação rápida, ao lado de exportadores de soja e gado. Uma característica que reúne esses nomes é sua pouca dependência da estabilidade econômica, social e política do país. É diferente, por exemplo, do que foram as lideranças do setor privado no passado (pense em Roberto Simonsen, Horácio Lafer etc.). E também é diferente de quem investe em mercados altamente tecnológicos, como os setores ligados à chamada “bioeconomia” – por mais questionável que o conceito possa ser, do ponto de vista ecológico. Para esses empresários da baixa produtividade, embora possam perder receitas com a instalação do caos e da pobreza, suas empresas são capazes de absorver o choque, seja por meio de demissão e achatamento de salários, seja batendo na porta de um governo amigo em busca de ajudas diretas. Diferentemente de grupos industriais, ou mesmo de serviços, da fronteira tecnológica, não precisam se preocupar com a concorrência de companhias que atuam em ambientes de muito maior segurança institucional e são pouco afetados pelas variações exageradas do câmbio.

Resumindo: o enraizamento da mentalidade autoritária e obscurantista no país é duplo: está tanto no dia-a-dia dos conflitos sociais quanto no âmbito daqueles que de fato controlam o país – isto é, sua economia, sua política, sua comunicação. Duplo, mas, é claro, articulado, já que um lado se alimenta do outro e os “donos do poder”, como diria Raymundo Faoro, têm todo interesse em fomentar uma sociedade atomizada, conflituosa e desesperançada. Livrar-se dessa mentalidade vai ser tarefa difícil e para muitas décadas.

Para terminar em tom um pouco menos funéreo, quero repetir o que disse antes, e que em condições normais nem precisaria ser dito: o Brasil não é, de modo algum, “essencialmente” autoritário e obscurantista, até porque essas “essências nacionais” são tolice, coisa digna dos Le Pen deste mundo, e nada mais. O autoritarismo e a violência que reconhecemos no nosso dia-a-dia se desenvolveram com o passar das gerações; são reforçados sempre que se reproduzem as estruturas de dominação e exploração herdadas do período colonial e transformadas a cada etapa histórica. Mas em outros planos a mesma sucessão de gerações produziu muito de criativo, gregário, solidário, nos interstícios dessas estruturas. Não é à toa que os estrangeiros nos veem como um povo tolerante e acolhedor.

Não faltam organizações, grupos e indivíduos que reafirmam e se alimentam desse Brasil solidário e cooperativo; somos, sim, perfeitamente capazes de atrofiar a abjeta e obscura aliança do fisiologismo com a barbárie, do fascismo com a predação; temos mais do que o necessário para articular um sistema sólido de cooperação e democracia. O terremoto político do último decênio teve o efeito lamentável de desagregar muito dessa trama de organizações que constituem a sociedade civil, abrindo o caminho para a avalanche de cacofonia e ruído que nos colocou na atual situação catastrófica e potencialmente suicida. Mas desagregação não é desaparecimento. Cá e lá, surgem novos cristais e novas coalizões. Inclusive, alianças até ontem improváveis. São sinais de caminhos que se abrem.

As ilustrações são desenhos de Käthe Kollwitz
Padrão
barbárie, Brasil, calor, capitalismo, crime, desespero, economia, Ensaio, escândalo, Filosofia, modernidade, morte, obrigações, opinião, Politica

Naturam expellas (Parte 1)

[Nota: o ecocídio no Rio Doce me motivou a retomar um texto que vinha tentando escrever desde setembro. O resultado segue aí abaixo, embora esteja ainda apressado e com ar de rascunho. Mas é rascunho mesmo, respirando com a pressa que o tema exige. Esta é a primeira parte de um raciocínio que ficou mais longo do que o usual. Por isso, resolvi postar em fascículos, para não me cansar, nem ao leitor. Calculo que poderei postar cada parte com um intervalo de dois dias. Eu não poderia fazer diferente, dada a gravidade do assunto.]

Mariana (MG) - Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco (Antonio Cruz/Agência Brasil)

Naturam expellas furca tamen usque recurret

et mala perrumpet furtim fastidia victrix.

Horácio (Quintus Horatius Flaccus, 65aC-27aC)

Talvez seja uma barbaridade tratar de uma tragédia criminosa e desmesurada evocando um poema da antiguidade clássica. Mas acho que essa estratégia pode pelo menos servir como um recurso para tentarmos pensar à frente, quando nos damos conta de que, lá atrás, alguém já avisou, já deu a real, e a gente segue se estropiando por conta da nossa própria irresponsabilidade e cegueira.

Diz o poeta, escrevendo em 50 a.C.: “você pode expulsar a natureza com um ancinho, ela volta cedo ou tarde / irrompendo vitoriosa contra o seu tolo desprezo”. Nos últimos anos, enquanto subia a temperatura e descia a Cantareira, tomei gosto por esses dois versos da epígrafe. A estrofe a que eles pertencem compara a vida nas cidades e no campo.1 Mas para nós, claro, a imagem adquire um sentido bem mais urgente.

Há um mês, lia-se que o Rio Doce não está mais chegando até o mar no Espírito Santo. E agora, para piorar o que já era trágico, o que vai chegar ao oceano é uma enxurrada de metais pesados e tóxicos, depois do rompimento da barreira em Mariana. É bom lembrar que a barreira em questão é pertencente a uma empresa de nome Samarco, subsidiária de duas das maiores mineradoras do mundo: a anglo-australiana BHP Billiton e a nossa conhecida Vale do Rio Doce – empresa que, grosseira ironia, tira o nome do próprio rio que agora destrói. Morreu gente, morreram peixes, morrerão tartarugas, agriculturas ficarão inviáveis. Não há como exagerar no horror.

No mês passado, um naufrágio no porto de Vila do Conde, em Barcarena (Pará), matou boa parte de uma carga de cinco mil bois. Muitos deles afundaram junto com o barco e suas carcaças estão apodrecendo no leito do rio. Milhares de corpos inchados, milhares de esqueletos, no fundo de uma das principais bacias hidrográficas do mundo. Simplesmente porque precisamos exportar mais e mais toneladas de carne – e soja, e minério de ferro, e alumínio… – para cobrir um déficit de conta corrente que, como sabemos com maior ou menor grau de consciência, não pode ser coberto. Escândalos que se somam a escândalos.

Lamento ter que dizer isso: o mais provável é que esses sejam só os primeiros de muitos desastres que seremos obrigados a testemunhar nos próximos anos e, temo, décadas. Não tenho dúvida. Logo se vê pela reação dos responsáveis e das autoridades: livrando a barra da Vale, falando apressadamente em “desastre natural”, recorrendo a doações da população mais bem intencionada, evocando a importância econômica da atividade mineradora no Brasil, embora um breve raciocínio baste para mostrar que esses benefícios econômicos todos são uma enorme e perversa ilusão.

Indonesia

Eu poderia dizer que hoje a Vale se tornou a nossa BP (petrolífera ex-estatal britânica responsável pelo vazamento catastrófico do golfo do México em 2010). Mas não dá para ignorar que, pela frouxidão com que tratamos o tema ambiental – leia-se, o tema do território, do chão em que pisamos, da comida que comemos etc. –, caminhamos rumo a uma proliferação de casos semelhantes. Pelo andar da carruagem, seremos o país das mil BPs. Falando nisso, foi inspirada pelo desastre no golfo do México que Naomi Klein escreveu em 2014 o livro This Changes Everything; no caso do Brasil, o máximo que posso me dispor a dizer é: “I hope it does”. Mas continuo cético.

Com isso, podem dormir na santa paz de Deus as outras mineradoras, petrolíferas, empreiteiras, incorporadoras, bancos, latifúndios, usinas e por aí vai, que doam os bilhões de nossas campanhas eleitorais para poder esgotar o território (florestas, cidades, campos, mares, rios, subsolos…). Quando o mundo vier abaixo, tudo estará bem para esse pessoal, e mal para o resto de nós, com o beneplácito de todo o espectro político, incluindo a imprensa e os sindicatos. Ainda não entendemos a gravidade da ameaça que ronda nossas cabeças, e não é simplesmente uma crise pertencente aos ciclos produtivos. Essas passam.

E se o assunto é “expulsar a natureza”, parece que essa é uma fixação atávica que nós temos. Já no primeiro reinado, eis o que relata o pintor francês Jean-Baptiste Debret, que retratou algumas de nossas verdades mais desconfortáveis:

Pintor de teatro, fui encarregado de nova tela, representando a fidelidade geral da população brasileira ao governo imperial, sentado em um trono coberto por rica tapeçaria estendida por cima de palmeiras. A composição foi submetida ao ministro José Bonifácio, que a aprovou. Pediu-me apenas que substituísse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular, a fim de não haver nenhuma idéia de estado selvagem. Coloquei então o trono sob uma cúpula sustentada por cariátides douradas (…).

Desde o berço, o brasileiro desenvolveu essa mesma relação que temos hoje com o solo em que pisamos e aquilo que nele cresce: há que esconder-se a natureza! Substituí-la por “um motivo de arquitetura regular”! Expulsá-la da representação do que seja o Brasil, naquele que é um de seus símbolos fundadores, a coroa estilizada do primeiro monarca. Nada de palmeiras! A natureza não está aí porque ela não existe. Ou seja: não temos natureza, o que temos são recursos naturais, matérias-primas… Riquezas que fazem nossa pujança e grandeza, como querem nos fazer crer.

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O que mais me desanima é o quanto tudo isso é evidente. Lembro bem dos meus primeiros anos em São Paulo: verões mais ou menos amenos, invernos frios, com temperaturas de um dígito – exceto em uma ou duas semanas do chamado “veranico”, palavra que caiu em desuso, já que hoje podemos vivenciar um mês de setembro como o deste ano, cujo calor, em pleno inverno, me dava dor de cabeça.

Naquele tempo nem tão distante, tempestades de verão eram impensáveis em setembro. Neste ano, tivemos exatamente isso, embora o mês, de modo geral, tenha sido seco como têm sido quase todos os meses há coisa de dois anos. E se eu cruzar com alguém na rua se referindo a “veranico”, não dá para evitar, sangue vai correr. Tivemos algumas semanas chuvosas em São Paulo em outubro e as pessoas já vêem afastar-se a famigerada crise hídrica (que, para parafrasear uma declaração atribuída a Darcy Ribeiro, parece não ser crise, mas projeto). Mal sabem elas que aqueles pés d’água de outubro mantiveram o mês abaixo da média histórica, apesar de tudo…

E falando em correr sangue, se a coisa continuar nessa toada, já se vê que dezembro, janeiro e fevereiro vão ser meses mortíferos. Basta lançar um olhar para o subcontinente indiano, onde 4500 pessoas foram ceifadas por uma onda de calor em maio e junho. E como já se fala em um “Super El Niño” para este verão – já li até a expressão “um El Niño Godzila” –, é de se esperar que setembro pareça ameno em comparação com o que vem pela frente. Mas nenhum desses sinais basta para que o país, como um todo, a começar por suas elites sociais e econômicas, para não falar nas lideranças políticas, coloque esse tema nas primeiras posições da pauta.

E no entanto é um problema que ultrapassa o Brasil, embora o atinja em cheio, na condição de país continental que é. Desastres mortíferos, água acabando, queimadas generalizadas na Indonésia, ciclones mastodônticos no México. No contexto mais amplo, leio notícias de que 2015 baterá o recorde de 2014 como ano mais quente da história (“literalmente território desconhecido”, diz um comentarista, ao compartilhar o gráfico da evolução de temperaturas este ano).

Soubemos também recentemente que a Volkswagen, malandrinha, andou falsificando uns testes de poluição; que o Reino Unido não vai conseguir atingir sua meta de redução de emissões de carbono; que as metas brasileiras “ambiciosas” para reduzir desmatamento, anunciadas por Dilma na ONU em setembro, de ambiciosas não têm nada. Que a China está mais uma vez coberta de poluição.

A boa notícia do ano foi o anúncio de que Obama rejeitou a construção do oleoduto conhecido como Keystone XL, que carregaria petróleo de Alberta, no Canadá, até o golfo do México (pobre coitado…) no Texas. Um ligeiro vento de esperança, mas dado o esforço que movimentos como o 350.org tiveram de despender para conseguir essa vitória, é uma lufada realmente ligeirinha, facilmente engolfada pelo temor com o que há de vir.

O ancinho e nós

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Por essas e outras, não tem como não admirar a fórmula sucinta de Horácio. Dia após dia, estamos tentando expulsar a natureza, com qualquer coisa que faça o papel do tal do ancinho. Por exemplo: como se abrigar desse calor todo? Ora, comprando um ar-condicionado. Mas se a temperatura fresquinha é conseguida aqui dentro graça a um dispêndio brutal de energia, que vai aquecer o resto do mundo lá fora, cedo ou tarde o abafado volta. Talvez não diretamente aqui, mas em algum lugar.

E se está quente na rua, é melhor ir para qualquer lugar de carro – com o ar condicionado ligado, claro, reproduzindo mais uma vez o problema, em duas frentes: a poluição do motor e o gasto energético da refrigeração. Tudo isso para não falar do consumo de energia elétrica, obtida seja com barragens (que andam com reservatório baixo), seja queimando carvão. E assim por diante, até a irrupção vitoriosa daquela que quisemos expulsar.

Mas é certo que a culpa não é do pobre diabo que ativa o ar-condicionado da sala para aliviar o sofrimento dos filhos. Para evitar esse tipo de leitura culpabilizadora e moralista, tratemos Horácio como o autor de uma enorme metonímia: cada ar-condicionado vale por milhões de aparelhos no mundo; o ancinho é o arquétipo de tudo que já se usou para obter essa magra vitória sobre o mundo natural. Assim sendo, já está evidente para qualquer um com um mínimo de boa vontade que a humanidade foi, mais do que arrogante, verdadeiramente frívola ao pensar que “com um ancinho” (muitas vezes traduzido como “violentamente”) poderia “expulsar a natureza”, e que ela não voltaria, mais cedo ou mais tarde, “furtim fastidia“.

A observação de Horácio, porém, é só a primeira das respostas possíveis. Ah, sim, diz o poeta, ela volta e volta triunfal: “recurret victrix”. Vitoriosa, vingativa, violenta. Nessa resposta, ela passa por cima de tudo e retoma o que era seu – o que sempre foi seu, talvez. No plano de um poema que compara a vida urbana à campestre, como é o do autor romano, o sentido dessa idéia é que o dia-a-dia de quem tenta se livrar da natureza é ocupado em varrer, lavar, pintar paredes, consertar telhas, podar árvores, eliminar mofo, jogar fora frutas podres, matar ervas daninhas.

A woman wearing a mask walk through a street covered by dense smog in Harbin, northern China, Monday, Oct. 21, 2013. Visibility shrank to less than half a football field and small-particle pollution soared to a record 40 times higher than an international safety standard in one northern Chinese city as the region entered its high-smog season. (AP Photo/Kyodo News) JAPAN OUT, MANDATORY CREDIT

No plano de um mundo ultra-industrial, financeirizado e cego para suas próprias condições de existência, como é o nosso, a interpretação é bem mais sombria: quanto mais labutamos, quanto mais esforço fazemos, quanto mais desenvolvimento para mandar a natureza para longe, mais irresistível ela vai ser quando voltar, engolindo a todos nós. Quanto mais barragens de rejeitos tóxicos, mais enxurradas. Quanto mais usinas atômicas à beira-mar, mais Fukushima. Quanto mais for viável economicamente arrancar o petróleo do leito marítimo, mais desastres no Golfo do México. Quanto mais for necessário expandir a fronteira agrícola para garantir a expansão de cadeias de junk food, mais queimadas fora de controle na Indonésia.

A imagem que temos ordinariamente da mudança climática ilustra bem essa perspectiva apocalíptica, com sua justeza e também seus exageros. Os mares subirão, as cidades serão engolidas, as florestas se tornarão desertos, as lavouras morrerão, metano jorrará (ou já está jorrando) de enormes crateras na Sibéria. Cada um por si e Deus contra todos. A natureza no papel de Conde de Monte Cristo, eliminando pouco a pouco e fazendo sofrer aqueles que a traíram. Quem é que não está cansado de ler alertas assim?

Mas poderíamos explorar uma outra resposta para a mesma fórmula da natureza que tentamos expulsar só para vê-la retornar vitoriosa. Nesta resposta, o problema de querer enxotar a natureza não está simplesmente em sua arrogância frívola, mas acima de tudo em seu caráter de cabo a rabo ilusório. Assim, os desequilíbrios naturais provocados pelo modo de atuação do ser humano “sobre” a natureza – mas na verdade “na” natureza – se situariam não na interação alienada e extravagante entre um dentro (da casa, da cultura, da civilização, da economia, da humanidade) e um fora (a natureza que foi expulsa, as “externalidades negativas” geradas pela atividade humana, econômica em particular), mas por todos os lados, ou seja, na manutenção da própria idéia de uma “casa” que estaria isolada da natureza; na contemplação de uma natureza que está para lá das paredes; no gesto ele mesmo pelo qual cremos estar (violentamente) expulsando a natureza; por fim, no próprio instrumento que usamos para realizar essa pretensa expulsão: o “ancinho”.

Pretendo, daqui para baixo, demarcar as diferenças entre essas duas respostas possíveis, essas duas leituras rivais dos versos de Horácio tal como transplantados, sem considerações sobre o contexto, para nossa realidade. São diferenças cruciais, bem entendido. Como veremos, todos os termos que aparecem nos versos podem ser lidos diferentemente e, com eles, a maneira como nos relacionamos com essa realidade que nos toca – tão urgente, cada vez mais urgente. E com conseqüências profundas, ainda por cima.

Continua na PARTE 2

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morte dos bois

Notas

1. Pouco antes desses dois versos, há estes outros dois também lindos: “purior in vicis aqua tendit rumpere plumbum / quam quae per pronum trepidat cum murmure rivum?”, que costuma ser traduzido assim: “A água que nas ruas da cidade luta para estourar os canos de chumbo / é mais pura do que aquela que trepida e murmura por um rio?”

Padrão
Brasil, Ensaio, Politica, Sociedade

Violência: questão da questão

À primeira vista, parece que duas questões emergiram e seguem sem resposta deste turbulento ano de 2013: a mídia e a violência. A questão da mídia reaparece de vez em quando, a cada vez que algo incita comentários sobre o conflito entre “a nova” e “a velha” mídia, ou imprensa. Desde que toda a agitação começou, tenho tomado notas sobre o tema, mas até agora não consegui juntá-las em algo coeso, seja por falta de tempo para ordenar as idéias, seja por falta de ideais a ordenar.

Já a questão da violência, que tratei segundo uma determinada perspectiva ainda em julho, explodiu mais recentemente numa miríade de versões que indicam menos a necessidade de desenvolvê-la e bem mais a de deslocá-la. Infelizmente, e isso é mesmo muito ruim, como na má dramaturgia, consolidaram-se nos últimos meses dois personagens antagônicos. Com eles, é possível, é até quase inevitável, formar uma relação de identificação ou repulsa praticamente imediata. Dessa relação imediata, fazemos uma barreira de julgamentos que nos desobriga de qualquer tentativa de esclarecimento. E esse é o pior estado em que podemos estar.

É claro que estou falando dos personagens Polícia Militar e Black Bloc. Talvez pudéssemos acrescentar aí um terceiro personagem, que seria “o manifestante bem intencionado”, mas para ficar na analogia da dramaturgia de quinta, esse aí faz mais a função da escada que conduz ao conflito maior entre o mocinho e o vilão – e a sua tarefa, individualmente, é escolher qual dos personagens vai ser mocinho e qual vai ser vilão: é uma trama interativa. Uma forma como o desenvolvimento dessa dramaturgia se expressa pode ser a seguinte: “manifestações são belas e justas, principalmente belas, mas não concordo quando descamba para a depredação”. Outra forma: “que coincidência, não tem polícia, não tem violência”. Na primeira, o vilão é o “vândalo que toma conta das manifestações”; na segunda, é a PM.

A vida, ou pelo menos a vida moral, seria muito simples se pudéssemos parar por aqui. A bem dizer, nada é mais fácil nesta vida do que emitir julgamentos. Chegar a eles é bem mais difícil, mas nada que não possa ser contornado mantendo-se sempre no imediato. E poderia ficar só por isso mesmo, não fosse o fato de que estamos deixando passar uma excelente oportunidade para assentar uma marca perene, e de fato transformadora, na trajetória de uma terra em que a questão da violência é, e sempre foi, muito mais profunda do que qualquer julgamento jamais poderá atingir.

Proposta

É por isso que proponho considerarmos que o que está em jogo não é a questão da violência, nem da polícia, nem de manifestantes, nem (já antecipando outra questão) da mídia, do poder econômico, do sistema político. Se me permite brincar um pouco com as palavras, e sei que tem gente que detesta isso, quero sustentar que está em jogo a questão da questão da violência.

Não estou só dobrando uma palavra. Se estamos acompanhando o desvelar de uma trama ruim, o problema está provavelmente tanto nos personagens quanto na própria trama. Afinal, desenvolver a trama é também, desde o ponto de partida, desenvolver os personagens, e se a trama é ruim, dificilmente os personagens não o serão também, ruins desde que foram primeiro formulados e descritos. Por isso, nossa questão não deveria ser avaliar, ou até mesmo entender, e muito menos justificar, a violência de um ou ambos dos nossos personagens. Deveríamos nos perguntar o que faz com que, mais uma vez, a questão que se coloca no centro das nossas atenções é a questão da violência, com esses personagens são estereotipados.

Além de se colocar no centro das atenções, a questão da violência também suga, como um buraco negro, a energia das demais questões que deveríamos debater, as questões de fundo, das quais a própria violência deriva sua dinâmica. Essa questão serve de instrumento para quem tenta desviar os focos ou esvaziar as pautas, não propriamente das manifestações em particular, mas da sociedade civil inteira. Ela dá um drible em inúmeros esforços, reais ou apenas imaginários, para contornar a pancadaria e, por exemplo, obter “a paz”. Ela muda de mão, de lado e de intensidade a cada momento, mas nunca vai embora. Às vezes é a polícia, às vezes o trânsito, às vezes o vizinho armado no prédio, às vezes os traficantes, os milicianos, os grupos de extermínio, os adolescentes playboys que ateiam fogo em mendigo, os motoristas irresponsáveis, os motociclistas pressionados por prazos desumanos. E agora, mais recentemente, manifestantes.

Fizeram campanha para o trânsito ser mais gentil. Para que as pessoas respirassem fundo antes de atacar alguém. Chamaram a polícia de pacificadora, o que, no ideal, seria um pleonasmo e, na realidade, um oximoro. Vestiram branco na praia e no Minhocão, com pombas e tudo, rostos consternados, cruzes enfiadas na areia. Mas seguimos violentos ou confrontados à violência, constantemente, doméstica, policial, estatal, do crime organizado, de desconhecidos, de latifundiários, de todo mundo. A questão passa a ser, então: por que a violência é sempre uma questão? É a questão da questão da violência. Ou seja, como lidamos quando, cientes da violência, temos de tirar conclusões, tomar lados, fazer julgamentos ou pronunciamentos? Que modos de pensar, de agir, de ser, ativamos a cada vez que colocamos a violência em questão?

Tudo que está no início do texto já é um sintoma disso: ao lidar com a violência, simplesmente, como questão, tomamos um lado e nos satisfazemos com isso, na esperança de que esse lado triunfe. Isso é uma resposta à questão da questão da violência: criar uma cisão violenta, assentar-se em uma das superfícies produzidas algo magicamente por essa divisão, e assistir ao espetáculo até o primeiro esguicho de sangue. No momento desse esguicho, exclamar, com indignação, mas também, vá, confesse, satisfação: “está vendo?” E emitir seu julgamento imediato. Preguiça, sim, mas sobretudo o assentimento à violência sistêmica, velado como condenação à expressão de uma violência singular.

Roteiro repetido

A questão, como de hábito, vai muito além. Para voltar ao que ocorre no Brasil desde junho, o roteiro parece estar se repetindo surrealmente no que tange à violência. Não faz ainda cinco meses que aqueles pequenos protestos do Movimento Passe Livre explodiram em mobilização nacional. Mais uma vez, bloqueios do trânsito geram ameaças em redes sociais. A imprensa toma o lado do personagem “polícia” na dramaturgia de quinta, sem o cuidado de evitar formas de linguagem que estimulem a escalada repressiva. Figuras políticas de envergadura, tanto na situação quanto na oposição, também reaparecem para tomar posição, aproveitando o caso do oficial da PM paulista que levou pauladas nas costas antes de ser salvo por um policial infiltrado entre os manifestantes. Desta vez, foi até mais grave, a própria presidenta ofereceu-se para ajudar o Estado de Geraldo Alckmin, aquele cuja polícia… já sabemos, falei disso ainda em julho.

Mas também há os que, nessa trama de novela, tentam resgatar a imagem do outro personagem, os Black Blocs. Porque, afinal de contas, a questão é de imagem. Por isso, é preciso mostrar que os ditos cujos não são os violentos da história, e sim a polícia. Em outras palavras: “foram eles que começaram”. Antes de mais nada, é uma estratégia derrotada, porque presume que o importante é disputar a opinião pública, construir uma imagem, desconstruir a imagem da polícia e assim por diante. Mas o problema de base é que o jogo das imagens, em si, já é por princípio um jogo violento, já que envolve rigorosamente as mesmas forças sociais que reproduzem a violência quotidiana e fazem da questão da violência, ela mesma, uma questão.

Acontece que o exercício da violência física não chega a se diferenciar muito de outras formas de violência: moral, material, verbal, no sentido de que se trata da descarga de afetos muito primários. Diferencia-se, sim, pelo fato de exigir um engajamento maior do corpo. Violência verbal exige a emissão da voz, o que já é muito mais do que o exigido por violências moral ou material, para as quais bastam um desejo de autosatisfação a canalizar e o poder de externalizá-lo. A violência física está em outro nível: exige a presença e o esforço do corpo como um todo, o que não é pouca coisa. No ato da violência, é difícil distinguir quando está em ação uma raiva incontível, um tesão despercebido, um reflexo de conservação ou destruição. A simples explosão de violência é algo fugidio, difícil de avaliar ou estimar.

Por outro lado, como tudo que é afetivo neste ser eminentemente técnico e mediado que somos nós, humanos, a violência pode ser organizada, colocada num regime de funcionamento, receber de empréstimo um significado. Ela pode ser instrumentalizada. A própria e a alheia, é claro. Aí sim é possível emitir juízos, avaliações, perspectivas, projeções, sobre a violência, porque ela está inscrita numa superfície estável, palpável, objetiva. A mais famosa dessas perspectivas é a de Max Weber: ao monopolizar o exercício (considerado) legítimo da violência, ele diz, o Estado pode existir como tal. Outra menos conhecida, mas igualmente brilhante, está em Michel Aglietta e André Orléan, dois economistas: a moeda, ao canalizar a violência e a confiança no que têm de afetivos, transforma conflitos sangrentos em transações de mercado. Mais recentemente, Agamben mostra que, na prática, essa legitimidade toda do exercício da violência pelo Estado é sempre uma fronteira bamba e fluida. E por aí vai.

É nesse diferencial entre a explosão pura de violência e a exposição das intermináveis formas possíveis de organizá-la que aparece a própria questão da violência como questão. Afinal, pôr ordem na violência é uma questão em si: que ordem queremos para a violência? Que significados queremos que ela carregue? Como deverá funcionar? E não adianta dizer “violência nenhuma”, que isso não existe, sob pena de ressecar todo o edifício da economia libidinal, algo que não se pode fazer… sem um nível de violência poucas (e desastrosas) vezes tentado na história. Esse é um modo da questão da violência que determina o rosto de uma configuração social e deveria, portanto, engajar toda uma sociedade. Algo inteiramente diferente de escolher um lado e se regozijar (olha aí a economia libidinal de novo) quando o outro lado apanha. O nome disso é sadismo.

O ponto central é que a confrontação entre essa determinação social e a manifestação pura da violência é que expõe aquilo que é a verdadeira questão para nós agora, como me parece: a questão da questão da violência. Se há um abismo entre a lei e sua execução; entre o treinamento da polícia e sua atuação na rua; entre o direito de manifestação e a recaída na violência; entre a linguagem que a mídia usa para referir-se a “manifestantes” estrangeiros e a “vândalos” brasileiros; entre a indiferença da presidenta (que foi torturada) à atuação arbitrária do braço armado do Estado (que, sendo oficialmente o mantenedor da ordem, não deveria jamais agir arbitrariamente) e sua enorme preocupação com a sorte de um único oficial da polícia (certamente um praça não mereceria tanta consideração); se há todos esses abismos, é porque o que está em questão não é a violência, mas a questão da violência.

Aposta aumentada

O problema posto não é muito diferente do que já foi dito no já mencionado texto de julho. O roteiro parece se repetir, só que de uma maneira pior. As apostas estão sendo aumentadas, mas quem dá as cartas é quem prefere manter a questão apenas no nível da violência, sem chegar à verdadeira questão da questão da violência. Aqui e ali ainda se ouvem algumas vozes lembrando um ou outro ponto dessa verdadeira questão, como o incansável Luiz Eduardo Soares, batendo e rebatendo na nota da desmilitarização da polícia.

Seria um passo excelente, ainda que só um passo. O caso Amarildo, por exemplo, poderia ter sido o estopim de uma reconstrução desde a base dessa que é a grande válvula reguladora da violência brasileira, a PM. Mas parece que quem se beneficia do regime quotidiano da violência no Brasil conseguiu isolar esse caso, indiciando alguns policiais e deixando a questão maior para lá. Como veremos, é o mesmo problema das lideranças políticas que saltam açodadamente para manifestar apoio ao policial atacado.

Enquanto isso, o governo do Rio resolveu pagar para ver. Deixou a quebradeira correr solta quando poderia agir e de fato “restaurar a ordem”, ou pelo menos a calma, para em seguida, sob os aplausos amnésicos do maior jornal da cidade, saltar de corpo inteiro para fora da legalidade, ao meter mais de oitenta pessoas na cadeia, a maioria sem a menor relação com os eventos – e submetê-las à arbitrariedade da exceção. No interior do poder organizado, do Estado, o abismo entre a explosão pura da violência e a violência organizada atinge um nível muito perigoso. Nesse tempo todo, então, até que ponto isso foi posto em questão? Muito pouco. Mereceria infinitamente mais. É a questão da questão da violência, única realmente decisiva sobre a mesa.

Quando Janio de Freitas, talvez o último jornalista em que se possa confiar no Brasil, levanta a questão (que deveria ser óbvia) do motivo pelo qual a polícia fluminense saboreia a quebradeira para depois espalhar o terror, mas nunca consegue pôr as mãos em quem efetuou a violência em primeiro lugar, ninguém pareceu estar tocado pela pergunta, embora essencial. O parágrafo de Janio me deixou lembrando de cenas em volta da prefeitura de São Paulo, meses atrás, quando os policiais assistiam à distância à tentativa de invasão do prédio. Também fiquei lembrando de cenas de policiais infiltrados estimulando violência, plantando morteiros em mochilas, dando choque em gente desmaiada. A infinita distância entre essas imagens e o modo como o assunto se desenvolveu na esfera pública demonstra como poderia ser só uma questão de violência, mas é muito mais. É a questão de como lidamos com ela, como a encaixamos em outras formas de violência, como reagimos perante essas imagens. É a questão da questão da violência.

Em São Paulo, o estranho fenômeno de ataques dirigidos a jornalistas me deixa perplexo. Não foi justamente isso que motivou a imprensa a mudar brevemente de lado em junho e apoiar, na tentativa de em seguida pautar, as manifestações que antes recomendava trucidar (em editoriais, não vamos esquecer; mais ou menos como o editorial da semana retrasada do Estadão, também um tanto amnésico)? Pareceria um tiro no próprio pé. No entanto, está inserido numa escalada de violência em que o mais surpreendente é o fato de que só agora um policial levou bordoadas de gente que está muito, muito irritada com a turma da farda. Afinal, a explosão da violência expressa afetos primários, a começar pela raiva e o prazer de vitimar um símbolo do poder. O confronto mais direto entre um e outro dos personagens da má dramaturgia, pela lógica, deveria ser bem mais freqüente.

Os dois lados da reação a esse evento singular é que são sintomáticos. De um lado, a massiva cobertura da imprensa, que parecia estar só esperando por algo assim, e a solidariedade da esfera federal de poder organizado à esfera estadual. De outro, o argumento de que o outro lado tinha começado, era um revide. Ambos tratam a violência localizada e física como a questão, mas isso tem como único efeito que a repetição de eventos violentos, num contexto de espetáculo crescente e de reação meramente imediata, fica excluída do que se questiona, do que se quer questionar. Perguntar o que faz com que a violência continue acontecendo, tão placidamente, parece anátema. Levantar a questão da questão da violência poderia deslocar algumas realidades, mas há uma configuração social que, pelo visto, não quer fazer nada disso.

Black Bloc

Mais especificamente, o fenômeno dos Black Blocs se encaixa nisso tudo de um jeito bastante particular. Mais de um articulista chamou atenção para o fato de que o ataque a símbolos do capitalismo e o confronto aberto com a polícia são tudo que a repressão quer para garantir que tudo volte a ser exatamente como sempre foi: violento, mas sem conflito, por paradoxal que soe essa expressão. Na verdade, ela nada mais quer dizer senão que a violência como instrumento (ver o texto de julho) é intocável e inquestionável. Ou seja, ela é o método amplamente aceito, não pode ser posta em questão como questão, no máximo como ato isolado (a célebre e anódina fórmula “eventuais abusos que serão investigados” entra nesta categoria). Mas antes de mais nada, o próprio Black Bloc se coloca como um modo de organização da violência pura, vetor de linguagem, significação e, sim senhores, ordem. É nesse sentido que, sem cair numa dramaturgia de quinta categoria, podemos ver uma confrontação entre PM e Black Bloc, mas também bancos e sindicatos, milícias e cartéis de droga, e assim por diante.

Como forma de organização e portadora de significado, podemos lançar diversas questões de avaliação sobre o grupo, ou melhor, a estética Black Bloc (porque não são um grupo, etc., etc., etc., já sei). Mirar em símbolos do capitalismo é uma estratégia válida/aceitável/eficiente de luta contra o capital? Tenho sérias dúvidas. O mesmo vale para a deflagração do confronto direto com a linha de frente do braço armado do Estado. Mas certamente é algo bem mais discutível do que se definir contra ou a favor “da violência”.

O mero fato de que alguém que pretende derrubar ou subverter um sistema esteja disposto a agir fora da lei desse sistema não chega a ser surpreendente. Antes, é mais ou menos óbvio. Menos óbvio, mas longe de surpreendente, é que a força repressiva desse sistema se aproveite disso para tocar o terror em cima de todo mundo mais que o incomode. (vide a lei anti-manifestações promulgada no Rio, francamente inconstitucional, mas que não causou o menor incômodo em Brasília, São Paulo ou diretoria de redação de jornal algum.) Ainda menos óbvio, tampouco surpreendente, mas muito preocupante, é que esse seja considerado o caminho natural das coisas, mesmo depois de tudo que aconteceu em junho com a escalada da repressão em São Paulo. Mais uma vez, não se trata de colocar a violência em questão, mas de ver como essa questão da violência está sendo tratada e o que está suscitando na consciência da sociedade. A questão da questão da violência.

E pelo visto a questão da violência está sendo tratada com a maior naturalidade, como se para reafirmar que a forma natural de interação no Brasil é o conflito armado e, sobretudo, às margens da legalidade e da legitimidade. A escolha sem ambigüidades da presidenta e de sua ministra dos Direitos Humanos (dentre tantos ministros, que são muitíssimos, logo essa!), ao manifestar seu apoio formal a um dos lados do jogo da violência, mais especificamente o estatal, deixou claro que são se pode contar com ninguém do sistema político para avançar a questão da questão da violência e escalar um pequeno degrau que seja na democratização da sociedade. Para usar a expressão de Marcos Nobre, tanto o partido no poder quanto aquele que, por enquanto, ainda é sua principal oposição estão muito satisfeitos de administrar o “condomínio pemedebista”, ou seja, a estrutura conservadora inamovível do sistema político brasileiro.

Comecei o texto dizendo que, à primeira vista, as questões que emergem da seqüência de manifestações e confrontos com a PM no Brasil são a violência e a mídia. Nesse intervalo, propus o deslocamento a questão da violência para uma questão da questão da violência, mas tudo isso só fará algum sentido se colocarmos essa mesma questão no contexto de um processo mais amplo, que é a grande questão do país: queremos ser democráticos? Queremos ser livres, civilizados, justos, decentes? A questão da questão da violência, na verdade, é só a primeira muralha a derrubar, instalada pela lógica arcaica que até hoje rege as relações políticas no Brasil.

Padrão
crônica, ironia, prosa, reflexão

O envelhecimento em seus primórdios

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Primeiro foi meu pai, afirmando que não queria pagar meia-entrada no ônibus para não sentir que envelhecia. Com o acréscimo: também não queria deixar de viajar com mochila nas costas (mas deixou) ou começar a jogar golfe com carrinho elétrico – essa última prática, coisa de velho mesmo, e pior, americano. Pior do que ser velho é sentir-se assim.

Depois, uma reunião com os amigos da faculdade, todos recém-formados e ainda bastante jovens (embora cá e lá as entradas e brisa no cocuruto já comecem a preocupar). Percebemos que já estamos todos assentados, a maioria empregados, alguns à beira do casamento. Houve até quem reclamasse da cerveja, dizendo que não cai bem no estômago como costumava (teria eu ouvido um arremedo da palavra “antigamente” na boca de alguém?).

Pois não pudemos escapar à sentença: estamos envelhecendo. Parece tolice essa frase numa mesa de rapazes que existem há pouco mais de um quarto de século, no máximo. Mas sim, confesso que era esse o travo nas gargantas de quem não mais colecionava conquistas ou virava noites em competições etílicas.

Amadurecimento… Pois sim! As frutas é que amadurecem, caem do pé, são comidas ou apodrecem. Pessoas não amadurecem, apenas envelhecem. No máximo elas aprendem a ser civilizadas, o que não necessariamente é a mesma coisa. Honestidade terminológica, então: envelhecer. Que raios será isso? Quando é que começamos a pensar nesse monstro se cinco olhos, oito asas, três fileiras de dentes (já caindo) e uma sucessão incontável de bengalas, dentaduras e rugas? Melhor colocando: quando é que a curva se torna descendente, do orgulho de crescer passa-se ao medo da decrepitude?

Escutando meu pai, meus amigos e a mim mesmo, deixei de lado a idéia física de incapacidade para determinadas atividades, enbranquecimento do cabelo, enrugamento da pele e assim por diante. Isso, para mim, é só a ponta do iceberg, para usar uma expressão bem corrente. Tenho um amigo que desde os quinze anos mal tem fios no arco que separa as duas orelhas. Nem por isso seja ele velho, pelo contrário, até hoje trata-se de um garoto disfarçado (por pura molecagem) em homem, já perfeitamente acostumado, para não dizer conformado, à obrigação de passar protetor solar no alto da cabeça.

Dizem que se começa a morrer a partir do momento mesmo em que se nasce. Parece uma frase pessimista, mas não consigo lê-la da mesma maneira. De certa forma, ela diz que ao pular de pára-quedas ou estragar o fígado pela bebida, você não está morrendo mais do que ao mamar no sagrado seio de sua mãe. Morte por morte, é melhor ir morrendo com alegria, mil vezes, do que viver a pedir vistas do processo até a sentença se tornar inevitável.

Pergunta capciosa: será que podemos dizer o mesmo do envelhecimento? Não creio. Um bebê que sai para o mundo está mais próximo da morte do que ao ser concebido. Mas ele fez uma verdadeira conquista. Veio ao mundo, à luz, a todas essas potecialidades de gozo e sobretudo miséria (mas miséria criativa). Isso é pura juventude. É o começo do caminho para o túmulo, claro, mas nada tem a ver com o envelhecimento.

Da mesma maneira, deixar de engatinhar quando se começa a caminhar em duas pernas é juventude, vigor, conquista, vitória contra suas próprias limitações. A mesma coisa para o momento em que se deixa de mamar no peito para comer no prato os legumes amassados pela mamãe ou a babá. Aprender a falar, a usar o penico, a correr, idem. Ir para a escola, passar de ano…

Então qual é a primeira atitude verdadeiramente ligada ao envelhecimento que temos na vida? Ora, se abdicar de algo, digamos um hábito, em função de uma conquista, não é envelhecer, mas envelhecer é, pelo contrário, perder a aptidão para atividades já conquistadas sem em troca instalar nenhuma aptidão que possa ser considerada superior (por exemplo, de mamar para comer sólidos), então devemos procurar a inauguração do envelhecimento no primeiro momento em que largamos algo sem conquistar nada por cima disso. Em outras palavras, crescer é poder mais; envelhecer é poder menos.

Matutei bastante sobre a questão. Após semanas de meditação, isolado num quarto escuro e abafado, cheguei a uma conclusão que pode não ser exata como gostaria um cientista, mas é emblemática e atinge os propósitos deste pequeno e ligeiro ensaio. A maior parte de nossas vidas, passamos num estado intermediário entre crescer e envelhecer. Quando podemos correr menos, podemos pensar mais. Quando podemos trabalhar menos, podemos ensinar mais. Quando temos menos fôlego para o sexo, temos mais habilidade para dar prazer.

Mas esse processo tem um primeiro passo. Procuramos aqui a primeira coisa de que abdicamos à toa, apenas para envelhecer, não para ganhar algo em troca. Pois bem, eis a resposta: é a cambalhota. Por que, lá pelos sete, oito anos, deixamos de dar cambalhotas espontaneamente? Por que não nos divertimos mais com ela, se ela nos dava tanto prazer? Seria porque estamos longe demais do chão? Ou porque as substituímos por brinquedos como a bicicleta ou a televisão, a famigerada televisão? Ou porque não pega bem entre os colegas?

Haverá quem diga: ginastas e dançarinos dão cambalhotas a vida inteira. É verdade. Por outro lado, jamais verá você um ginasta que, contente com o resultado de algum exame, saia pelas ruas a virar cambalhotas. Não. Um ginasta, um dançarino, um atleta, veste suas roupas de ensaio, faz seus alongamentos indispensáveis, conta: um, dois, três, quatro, e dá sua cambalhota milimetricamente calculada para engatar-se no próximo passo, em geral algo muito mais difícil e impressionante, que lhe renda uma boa nota dos jurados (porque uma singela cambalhota não basta, seria motivo de risadas). Para o dançarino ou o ginasta, a cambalhota é como um formulário para o contador ou o funcionário de cartório.

É inevitável. Certamente depois que a idade se passa a contar em dois dígitos, as cambalhotas estão fora do cardápio. Talvez até antes. Não consigo me lembrar, e olha que me esforcei, da minha última cambalhota.

Pois daí por diante, cambalhotas devidamente riscadas do repertório, o envelhecimento é uma bola de neve de que não se pode escapar. Enquanto vão-se ganhando atributos e capacidades, deixa-se de torturar gatos, bagunçar o quarto, jogar bafo, pedir o telefone das moças, tomar litros de cerveja, passar noites em claro, viajar com a mochila nas costas, trabalhar, fazer amor, enxergar, ouvir, sair de casa… No início, sentimos que estamos amadurecendo, depois percebemos que estamos envelhecendo, por fim deixa-se de aprender o que quer que seja para sucumbir à decrepitude, isto é, se antes disso nenhuma doença ou caminhão desgovernado não cruzarem nosso caminho. Nesse processo, gastam-se décadas, mas o início está lá atrás, quase no começo da vida, onde acaba a cambalhota.

Para encerrar, uma confissão: desde que cheguei a essa conclusão, muito tempo atrás, não tive coragem de arriscar uma cambalhota. Nenhuma, nem mesmo como tentativa de recuperar a juventude. Acho que nem sei mais como é o movimento, o que fazer com as mãos, em que momento dobrar a cabeça. Se resolvesse tentar, é bem capaz que eu acabasse me machucando.

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arte, Clara Nunes, crônica, música, prosa

A vida emoldurada

Torres Azuis Bizarras Noite San Giminiano
Ia andando pela rua dos fundos, atrás de um qualquer coisa que pudesse passar por jantar. Descia uma chuva de alfinete, vagarosa e desagradável. Ainda não era bem noite, mas já fazia escuro e parecia que a cidade se escondia. Todo mundo foge da temperatura que cai bruscamente; em vez de visitar os amigos ou a família, vale mais terminar o domingo com um filme da televisão. No meu caso, foi a necessidade que deu a última palavra. Comer é preciso. Saí. Para me proteger da água e das lâminas do ar, a manta grossa e, principalmente, a música que os fones de ouvido sussurravam.

Quando fiz a curva e embiquei pela rua maior, a faixa mudou. Os acordes em staccato de um cavaco e a voz de Clara Nunes fazendo um aperto de saudade no seu tamborim: Tristeza e Pé no Chão. No mesmo instante, deu-se alguma coisa. Fui invadido por um desconforto que não podia explicar, como se minha cabeça entrasse em conflito consigo mesma. Ou melhor, como se meu corpo visse o mundo à sua frente, mas se reconhecesse em outro canto, outro plano, outro universo. Estranha sensação, caminhar tremendo de frio por uma rua deserta e brilhosa, com tantãs e ganzás como trilha sonora, gingando na celebração de uma voz divina.

Culpa do aparelhinho que me atirava a música direto nos tímpanos. Quem segue seus caminhos ao som da pura realidade, buzinas, berros e motores desregulados, talvez não me entenda. Mas, palavra, é assim. Quando inventaram o walkman, o diskman, o celular que capta FM, o toca-fitas de carro e o famigerado iPod, inventaram ao mesmo tempo a vida com trilha sonora. Para muita gente, o próprio fato de existir passou a ser pontuado pelas emoções que melodias transmitem e batidas impõem.

Tanta gente no metrô com cabos pendurados, caindo pelos lados do pescoço como madeixas de plástico! São garotos, não têm a habilidade de controlar o volume. Um vagão inteiro submetido ao bate-estaca. Seus olhares se perdem no desprezo pelo universo, nem consigo supor que imagem podem ter do mundo, da cidade, das pessoas, enquadrados pela batida agressiva das pistas de dança. Não pode ser a mesma face que eu vejo, por trás de minha música diferente.

Meu caso começou como fuga. Tinha pânico dos vendilhões da Paulista, precisava de um pretexto para não escutar suas vozes, não precisar grunhir um “não” a cada passo. Certo dia, captei a Rádio Cultura pelo celular; examinar os rostos suados e sérios ao som do Stabat Mater de Pergolesi me incutiu a certeza de que todos à minha volta eram infelizes. Compreendi a profunda desgraça de todo aquele ambiente e quis escapar. Claro, a culpa não cabe inteira à música, mas ela tem parte.

Onde foi que li? Um ensaio sobre como mudou nossa relação com a música no último século. Pode ter sido Adorno, o do contra, ou Nikolaus Harnoncourt, ou qualquer outro. Primeiro foi o fonógrafo, que deu à humanidade o controle sobre as harmonias. Qualquer caixinha poderia tocar como uma orquestra. Depois, o rádio espalhou pelo mundo as mensagens sonoras determinadas por alguém em algum lugar, seja lá quem for. Pois era um certo encanto que se quebrava. Tirar melodias de um objeto inanimado perdeu seu verniz de mágica. A música, daí por diante, seria outra.

O golpe de misericórdia foi dado, com certeza, pelo cinema falado. “O grande culpado da transformação”, já dizia Noel Rosa, filósofo malgré soi. Na tela, a música enquadrou a vida real. O herói enlaça a mocinha ao som dos violinos, o assassino dá suas estocadas com um fundo de trítonos secos. O público se deixa envolver. O público somos nós. Nós acreditamos. E transferimos a necessidade de trilha sonora para nossa própria existência. Sem querer.

Daí meu estranhamento, na noite de domingo, enfrentando o frio e a chuva embalado pelo surdo, a cuíca e a voz de Clara Nunes. A máquina que eu trazia no bolso não entende nada. Não sabe escolher o fundo que se adequa por natureza a cada ocasião. Era momento para o quase silêncio de Eric Satie, as lamentações de Robert Johnson ou a cantilena da quinta Bachiana Brasileira de Villa-Lobos. Lágrimas na avenida, um desfile marcado para a quarta-feira? Impossível.

Só fui capaz de retornar ao corpo quando abandonei toda pretensão a uma trilha sonora. O mundo se recompôs, terrível como é: um silêncio de cripta gótica, motores à distância, o eterno chiado urbano que nunca sei de onde vem. Crueza e crueldade do ar que não vibra segundo o acordo das vozes. O ar desobediente que existe além dos meus fones.

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