ambiente, Brasil, calor, capitalismo, economia

Da série citações: Celso Furtado

Passagem extraída do artigo “As ideias de Celso Furtado sobre a questão ambiental”, assinado por Renato Nataniel Wasques, Walter Luiz dos Santos Júnior e Danilo Duarte Brandão:

“Em uma entrevista concedida a Cristovam Buarque, em março de 1991 , Celso Furtado afirma que demorou a perceber a importância da ecologia na economia. A propósito disso, observou: “É difícil no Brasil se perceber a importância da ecologia, porque é um país que tem uma margem muito grande para o desperdício” (Furtado, 2007, p. 78). Ele relata que se deparou pela primeira vez com a questão ambiental no início dos anos 1960 , quando chefiava a Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste].

Naquela ocasião, Celso Furtado trabalhava no projeto do Maranhão. “[…] aí se colocou o problema das florestas e dos rios. Era uma coisa mais ou menos evidente que no centro da ecologia estava a própria preservação dos índios, o habitat dos que viviam ali” (Furtado, 2007, p. 79).

Elaborou-se, então, um plano de colonização para a região maranhense, com a finalidade de preservar a floresta . O autor comenta que foi influenciado por leituras sobre as técnicas dos
índios na Amazônia, principalmente pelo “[…] fato de eles usarem, nas margens dos rios, várzeas recuperáveis” (Furtado, 2007, p. 80). Essa constatação demonstrava que a agricultura praticada pelos indígenas não era predatória, pelo contrário, se recuperava permanentemente. Verificou-se, portanto, que era “[…] preciso partir da preservação da floresta, pois se houver destruição está tudo perdido, vem a desertificação” (Furtado, 2007, p. 80).

Nessa mesma entrevista, Celso Furtado busca responder à seguinte problemática: os recursos naturais não renováveis constituem um limite ao crescimento econômico? Ele argumenta que o uso predatório desses recursos “[…] está criando problemas tremendos para o planeta inteiro, não somente pela questão da escassez, mas pelas consequências, como a contaminação da atmosfera, a poluição geral, todos os problemas que vêm surgindo” (Furtado, 2007, p. 56). Apesar desse diagnóstico, o autor expressa certo otimismo em relação à capacidade da tecnologia em reverter aqueles problemas, inclusive na área energética. Nesse particular, assevera: “[…] creio que podemos pensar que a tecnologia vai, em grande medida, resolver esse problema dos recursos naturais” (Furtado, 2007, p. 57).”

*

O Celso Furtado de 1991 se revela uma pessoa capaz de reconhecer suas limitações: demorou a perceber, diz, a importância da ecologia para qualquer pensamento que se queira econômico.

Ainda assim, na verdade, ele foi um dos primeiros economistas em todo o mundo a perceber que a questão ambiental seria decisiva. Em seu livro de 1974, O Mito do Desenvolvimento Econômico, o economista brasileiro já leva em conta o relatório Limites do Crescimento (1972), considerado um documento fundador da interface entre economia e ecologia. Furtado mostra ter familiaridade com nomes que apenas começavam a tratar do problema, como Nicholas Georgescu-Roegen, Herman Daly e Kenneth Boulding.

Nesse livro, Furtado já escreve: “A evidência à qual não podemos escapar é que, em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”.

Passaram-se 46 anos desde esse livro e 29 anos desde a entrevista. Na política brasileira atual, nem no governo, nem na oposição, encontramos alguém com a clarividência de Celso Furtado. Inspirar-se nos índios para uma agricultura regenerativa? Implementar projetos para desenvolver as potencialidades da própria floresta, dos próprios rios, sem destruí-los e àqueles que vivem deles? Nem pensar. Aqui, alguns são pelo fogo, outros pelo concreto.

À parte isso, poderíamos perguntar, tomando por base o otimismo tecnológico do final da passagem destacada: o que pode, de fato, a tecnologia, perante a crise ecológica? O que é preciso para tornar a tecnologia uma efetiva mediação entre a vida econômica e a vida como um todo, no planeta?

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Sábado: o veranico

Saio para regar as plantas e avisto à distância, no meio de um céu ocre e desolado, uma andorinha voltejando. Uma única andorinha, ágil como sempre, mas estranhamente solitária. Estranha como o próprio céu – que cheira a lenha, ou a cinzas de cambarás, piúvas, bocaiúvas e carandás.

Perto da janela dos fundos, as andorinhas fizeram um ninho, então estou acostumado a vê-las em bando. Só que, desta vez, é uma só. O velho dito popular sobre o “não fazer verão” me vem à mente, mas impregnado de ironia: pelo calendário oficial, estamos em pleno inverno, mas a imagem que me ocorre é a do estio, que a presença da andorinha vem negar.

É inverno e faz calor. E antes mesmo da primavera, a natureza já indica que o verão foi abolido.

Se fosse no tempo da minha adolescência, os jornais já estariam dando alguma trivialidade sobre o “veranico”: uma ou duas semanas de calor, que permitiam enxertar uma retranca prosaica no meio da torrente de notícias pesadas.

“Veranico”, palavrinha recorrente em outro século! Desapareceu, foi esquecida, junto com o período que servia para nomear – a breve interrupção do inverno em São Paulo.

Hoje é sábado, faz calor no meio do inverno, mas não é um veranico. É só mais um dia quente, acima dos trinta graus. Como foi ontem e como amanhã deve ser.

O noticiário, então, tem que se contentar em fazer o oposto: dar palanque a gente do naipe de Aldo Rebelo ou Eduardo Bolsonaro, quando se aproveitam da semaninha de frio que tem feito no inverno para negar a evidência de que os anos têm ficado cada vez mais quentes.

Virou notícia, fazer frio no inverno! Por que não adotamos “invernico”, como antes tínhamos um “veranico”? Fica a ideia: se por acaso calhar de fazer frio no inverno em São Paulo, podemos pautar um “invernico” e aligeirar o noticiário. Que tal?

Falando nisso, esse frio passou por aqui faz uma quinzena, mais ou menos. Agora, só ano que vem – com sorte. Vamos deixar o “invernico” guardado, então.

Hoje, a andorinha voa no calor e no céu ocre que cheira a cinzas. No sentido literal, ela não fazer verão seria até boa notícia. Como costumavam dizer os cariocas, e agora dizemos todos, o oposto do inverno é o inferno.

No sentido figurado, ao contrário, parece que nunca mais teremos um verão. Pensando bem, parece mesmo é que estamos presos indefinidamente num monstruoso inverno escaldante.

A andorinha volteja atrás de insetos, sozinha. Será que ela baila no ar para informar que não podemos almejar um verão, que nunca mais viveremos uma primavera?

No fundo, nem penso em primaveras, mal lembro o que é isso. Penso nas plantas, que estavam secas e agora estão molhadas. Penso por um instante na garganta, que arranha, e nos olhos, irritados pelo ar denso, carregado com os restos de biomas mortos. Fecho a torneira, volto para dentro, lembro de não deixar a janela aberta.

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