Em 2009, escrevi sobre o filme de estreia de um garoto de 19 anos do Canadá, de nome Xavier Dolan. O filme se chamava “Matei Minha Mãe” e eis o último parágrafo da resenha:
“Dolan prepara seu próximo filme; sabe-se lá quando vai ficar pronto, neste tempo em que é tão fácil um especulador enriquecer quebrando sua empresa, mas é tão difícil um artista praticar sua arte. Quantas promessas aparecem que não se concretizam! Por prudência – e não sei mais se essa é uma de minhas qualidades ou se é defeito –, evito fazer apostas. Mas esse Xavier parece ser mais do que uma promessa. Tem jeito de saber bem o que está fazendo. O nome está anotado.”
Em 2010, Dolan terminou seu segundo filme. Chama-se “Os Amores Imaginários” e o nome do diretor continua anotado. O rapaz, agora com 21 anos, tem tudo para se tornar um dos grandes, pela forma como escreve, como atua e como dirige. Portanto, olho nele. “Os Amores Imaginários” é feito quase inteiro em planos próximos, alguns muito próximos, mas muito mesmo. As imagens abertas são raras e desconfio que a causa é mais orçamentária do que propriamente estética. Pouco importa: bem facilmente essa insistência no close deixaria um filme insuportável, mas não é o que acontece, e isso demonstra um olhar de cineasta plenamente desenvolvido. Outra insistência perigosa é nas sequências em câmera lenta, mas também aí ele escapa às armadilhas.
Se eu fosse obrigado a isolar uma única avaliação, seria a de que Dolan tem um refinamento sensual notável, que o coloca, mal comparando, ou talvez não tão mal assim, na linha dos grandes cineastas homossexuais, Visconti, Almodóvar e, certamente sem aquela arrasadora carga política que tanta falta faz à nossa geração, Pasolini. (Devo estar esquecendo nomes fundamentais, mas esses três são mais do que representativos.) O menino sabe colocar a câmera a serviço do corpo, a relação câmera-corpo a serviço da imagem e a imagem a serviço da obra. São texturas, ângulos, dobras, discretos movimentos como o pulsar da pele e o ritmo ondulatório que a respiração impõe às superfícies. Com a câmera, invadimos corpos. Como corpos, somos invadidos pela câmera. Isso é arte.
Aprendiz de Visconti, mal comparando, ou talvez não tão mal assim, Dolan consegue explorar e expor a sensualidade masculina da mesma maneira imponente e insofismável que a tradição do cinema – e da arte em geral, claro – sempre conseguiu fazer com o mistério e a beleza da mulher. Neste último filme, o diretor passa rapidamente por uma alusão ao Davi de Michelangelo (ainda bem que foi rápido, mais uma prova de maturidade – a referência é trivial demais). De fato, ele encontrou um ator parecido com a tão celebrada escultura; mas não é isso o importante, e sim que ele confessa aí a ambição de retratar seus corpos de homem como fez Michelangelo – cuja sexualidade, por sinal, segue em discussão como a fidelidade de Capitu, mas há muito mais tempo. É uma justa ambição. Por que não seria? Visconti e Pasolini a atingiram com brilhantismo. É plausível que Dolan, podendo se apoiar nos ombros desses dois gênios, também a atinja.
Na tradição de Almodóvar, o garoto do Québec tem uma capacidade extraordinária de inserir o absurdo em seus enredos com a devida harmonia. Uma personagem saída pura e fresca dos anos 60 circula livremente por uma narrativa que transborda de contemporaneidade. É tão destoante que se torna poético e belo, aquele corpo anacrônico a viver com desenvoltura, sentindo, interagindo, produzindo, como se todas as fronteiras fossem desnecessárias. Ou será talvez que esse anacronismo me agrada tanto porque eu mesmo acredito na futilidade das fronteiras? Que seja: por mais que eu acredite, não consigo realizá-la numa obra de arte. Dolan consegue.
Odeio soar apologético demais, não é meu meu estilo. Mas sou obrigado a reconhecer que o diretor-roteirista-ator acumula diversas outras qualidades. Vamos a elas, sem entrar em detalhes para não cair no excesso: em ambos os filmes, os diálogos são primorosos. Ágeis, imaginativos, surpreendentes e de uma sofisticação de linguagem que parecia irremediavelmente perdida. É difícil não reconhecer que Xavier Dolan sabe usar a potência do idioma, escrito e declamado. É um alento, sobretudo pela facilidade com que o texto passa das cenas de humor para as dramáticas, depois volta, incólume e fresco como uma ninfa ao sair do banho.
As cores são uma das especialidades do rapaz, tanto nas cenas, por assim dizer, corriqueiras quanto nos momentos de exploração especificamente cromática. Ele conhece as temperaturas das cores puras e não se enche de pejo para aplicá-las. Mas ele também conhece o peso da ausência de cor e os humores suscitados pelas estampas, sobretudo quando enquadram os rostos. E, para não deixar de mencioná-la: a pontuação musical é executada com muito bom gosto, sobretudo pelo bom humor kitch do leitmotiv, uma cançãozinha engraçadinha e idiota (no bom sentido) de Dalida. É que Dolan, e isso é simplesmente capital, não tem medo do clichê. Ao contrário, ele escancara o clichê, ri do clichê e nos coloca frente a frente com ele, esse clichê que sempre rondou nossa mente, mas cuja presença tanto nos incomoda. Há que ter talento e coragem para brincar com clichês.
Tantos parágrafos e nem resumi o argumento de “Os Amores Imaginários”. Ora, o argumento… “Matei minha mãe” precisava ser resenhado com um resumo do argumento porque, em que pese toda a qualidade técnica, era um filme muito mais “convencional” do que este último, no sentido de que se apoiava na coragem com que o rapaz escarafunchava uma relação de filho adolescente com a mãe. Já “Os Amores Imaginários” é convencional… no argumento, um triângulo amoroso meio juvenil que evoca “Jules et Jim”, “Os Sonhadores” e tantos outros filmes. Só que esse argumento tão banal, além de retrabalhado com esperteza, é só um pano de fundo para um trabalho de cineasta, ou seja, uma obra que se destaca pela exploração da arte do cineasta, realizada com louvores. E quem é que ainda faz essa exploração sem se entregar ao puro experimentalismo? Esse que, em si, é algo imprescindível, mas que, reiterado, se torna uma confissão de derrota, como se fosse impossível ao mesmo tempo amar a arte e o espectador? Não, não é impossível, eu diria mesmo que é a grande missão política e estética do artista de hoje.
Não posso encerrar sem um pequeno senão, ainda que meu reproche possa ser imputado à idade do autor. Dolan tem uma formação cultural de altíssimo nível, que transparece em seu trabalho. Mas, não contente em deixar sua erudição transparecer, desde o primeiro filme ele faz questão de mostrá-la em citações explícitas a poetas, pintores, compositores e assim por diante. Na passagem mais desnecessária, o protagonista (ele mesmo, aliás um excelente ator) gasta um tempo considerável equilibrando em pé, no centro do quadro, um enorme livro de referência da Bauhaus. Deixe disso, rapaz, não precisamos desses pedantismos para saber que você é bom.
Mais uma GDE resenha.Belê!
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Não sabia que Almodóvar é homossexual.
Mas estou curioso para conhecer Xavier Dolan.
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Sim, ele é, e ativista da causa.
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