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Um eu, um ambiente, mil objetos (Mudar de endereço, parte 1)

Para quem passa o dia correndo atrás de assunto, nada melhor do que uma mudança. Vai ver, é por isso que gosto tanto. Aos dez anos, eu acumulava memórias de quatro endereços em três cidades; não é à toa que a estabilidade do decênio seguinte foi tão incômoda. Assim, depois de diplomado e empregado, alguma força interna me empurrou de novo, agora por conta própria, para o deslocamento: novos bairros, cidades, países – e aqui já faço projeções, sonhando com os cantos em que posso vir a me instalar…

Essa tal força foi tão poderosa que me levou a rasgar, mais de uma vez, diplomas e empregos, em nome desses saltos que levam móveis adiante e deixam paredes para trás. Não quero com isso inventar uma história de que eu teria alma de andarilho ou coisa assim. Eu bem que gostaria, mas me falta o espírito de aventura. Meu caso é outro. É uma espécie de pânico. É como se, aos poucos, eu me tornasse um só com minha casa e, nesse processo, murchasse… não, estou me explicando mal. Vou tentar de outro jeito.

Gostaria muito de conseguir conceber meu endereço como só o lugar aonde chega minha correspondência. O imóvel que ocupo, o andar, a porta, a área útil… Como se fosse um acaso, um dado do mundo concreto em que esbarro sempre que levanto de manhã, como as ruas que me conduzem ao escritório e as contas que devo pagar. Se eu pudesse acreditar nisso, ele seria um, eu seria outro, numa relação tão casual quanto a de um tigre com um tamanduá no zoológico.

Mas sempre que tento pensar assim, acabo por perceber que estou mentindo. Pior: mentindo para mim mesmo, o que ultrapassa a desonestidade e cai diretamente na precipício da tolice. Afinal, se me perguntam quem sou, só posso dar como resposta o lugar em que moro, como chego no trabalho, onde compro minha comida, o que vejo todo dia, quem são meus vizinhos, que quadros pendurei, como organizo minha biblioteca. Então que raio de separação medíocre é essa?

Se é verdade que o lar é a fortaleza de um homem, também tenho de aceitar que ele é o centro de meu campo de batalha. É minha cabeça-de-ponte para dominar a cidade. É o fim das minhas linhas de abastecimento. É o quartel-general de meu repouso no fim-de-semana e ponto de lançamento para as expedições no resto do tempo. É meu almoxarifado e meu arsenal.

Mas o oposto também se impõe: sou aquele que frequenta os cinemas do bairro. Que colocou as prateleiras ao lado da porta, longe da janela. Que escolheu as cortinas grossas, garantindo a obscuridade para o sono de domingo. Eu sou a vista que encaro quando as ideias não vêm, sou a porta emperrada do banheiro e a infiltração indetectável na cozinha. Sou o bom-dia que dou a contragosto aos vizinhos; sou a garagem apertada demais; sou o comércio de rua que persiste, embora moribundo.

E, no entanto, o pânico. A certeza de que haveria outras perspectivas e outras identidades, se não fosse essa, já, tão enraizada. Os desejos em conflito: aprofundar ao infinito a dominação deste canto? Ou atirar ao passado essas páginas e esse ser, para começar uma nova infância do outro lado da cidade? Construir-se demais parece, às vezes, um múltiplo assassinato de potenciais; mas a repetição da ruptura arrisca deixar pouco mais do que escombros, quando tudo se acabar. Pânico, sim, mas junto com a reverberação de um renascimento. Sem que, para isso, seja preciso uma morte.

Ao contrário! Desmontar um apartamento é cansativo, mas é das maiores injeções de vida que podemos receber. Recuperamos do fundo das gavetas os folhetos e badulaques que tiveram importância há anos, mas já caíram no esquecimento. Nesse instante, tomamos consciência da vida que fomos (porque não levamos uma vida, somos uma vida), e essa consciência é tão forte que parece nos fazer revivê-la, no instante mesmo em que apagamos suas marcas e a estrutura de existir que ela tinha criado.

Em seguida, vem todo o esforço de transportar os fragmentos de si mesmo. De uma porta a outra, lá se vão objetos e memórias, dentro de caixas que estampam – na verdade, gritam – o provisório, o interlúdio, o desmanche de toda uma identidade. É um parto traumático e ao mesmo tempo emocionante, embora muito menos que o primeiro, o original, que nos colocou neste mundo de potenciais frustrados e realizações subestimadas.

Só depois é a nova vida, nova existência, uma infância em que precisamos conhecer outro supermercado, outra agência de correios, outros vizinhos; onde precisamos aprender a nova distribuição das gavetas e corredores, onde ainda tateamos quando acordamos no meio da noite e queremos assaltar uma geladeira que ainda não sabemos tão bem onde está. É assim que reconstruímos nossas perspectivas e nossa identidade, nosso ponto-de-vista sobre a cidade e o mundo, sobre nós mesmos e nossos caminhos.

Pânico e coragem são as palavras que resumem as sensações de uma mudança. A difícil e inevitável escolha daquilo que vai ou fica, daquilo que merece a lixeira ou a recuperação das cinzas do esquecimento. Parte do que nós somos está na relação que estabelecemos com objetos e ambiente, e que objetos e ambiente estabelecem conosco – porque, ora, eles também têm seu poder de escolha. Ao deitar fora uma parte da maldita papelada, deitamos fora também uma fração da forma de viver que levávamos (ou éramos). Em outras palavras, decidimos ser outros.

Simplificando: como é difícil se ajustar a uma casa nova! Mesmo quando sei que é melhor do que a antiga, que nela provavelmente serei mais feliz, que deixo para trás uma série de problemas que jamais teriam outra solução. Mas é como é: estou renascendo sem ter perecido; e acredito que mais essa estranha experiência pode render muito pano pra manga, o que é sempre positivo para este pobre perseguidor de assuntos.

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Um episódio em parte real

Como quase tudo que me sucede por aqui, foi no metrô. Madrugada de sábado, uma das últimas composições, já quando o intervalo entre uma e outra passa dos dez minutos. A namorada e eu cansados pelo horário, um tanto altos, mas nem por isso bêbados, esperávamos no silêncio dos que não têm forças para falar. Enfim veio o trem. Havia lugares vagos, para alívio de ambos, e por milagre eram contíguos. Sentamo-nos, eu muito distraído, o olhar para fora da existência, recusando-se a fixar qualquer objeto. Teria continuado assim por toda a viagem, se não ouvisse o suspiro.
– Tadinho!

Virei o rosto para ver o que se passava. Era um homem muito velho, que tentava alcançar a porta. A lâmpada vermelha já piscava, o alarme soava anasalado e arrogante, mas o pobre ancião não tinha nem condição de se apressar, tal era seu estado de decadência física. Cortava o coração vê-lo ali, radicalmente encurvado, esticando os braços a um passo da porta, no esforço heróico de colocar um pé diante do outro. Elogios ao condutor, que, do outro lado da estação, avistou a cena pelo espelho e atrasou nossa partida. Imagine aquele senhor, tão castigado, tendo de esperar um quarto de hora, em pé na plataforma.

O atraso nos deu a oportunidade de agarrar seus braços e alçá-lo para dentro, eu e um outro sujeito igualmente distraído, absorto na música de seu aparelhinho. Foi só o tempo de ele entrar, a porta fechou-se e fomos postos em movimento. Mas como o trem sacudia, já que sacudir é da natureza dos trens, foi necessário ainda segurar o pobre velho desequilibrado, que não tinha forças de se agarrar ao poste de alumínio, nem contrariar o ímpeto da composição para chegar ao assento.
Ele nos agradecia, meneando a cabeça, enquanto o conduzíamos a sentar-se. Instalado, dobrou-se sobre si mesmo e se pôs a revirar o interior do paletó. Não foi surpresa alguma constatar que sua mão tremia com violência. Uma mão de ossos, pele seca e grandes manchas circulares.

Em nome da discrição que as boas maneiras prescrevem, retomei meu assento e meu ar distraído. Do que parecia um episódio terminado, guardava apenas o sentimento de ter realizado a boa ação do dia. Tão grande era minha distração que não acompanhei a seqüência dos movimentos do ancião e, quando ele me estendeu um pequeno objeto, tomei-o sem atentar para o que era.

Vejo agora que foi um erro. Se já não o tivesse entre os dedos, poderia apenas espalmar a mão para recusar o maço de dinheiro que me fora presenteado. Àquele ponto, a quantia era impossível de estimar. Um canudo grosso feito de notas de cinqüenta. Talvez houvesse mais de mil euros atados com um elástico.

Pasmado, ergui os olhos e percebi que muitos me encaravam com ar severo. Ao meu lado, a namorada apertava minha perna, as unhas enfiadas na carne. À frente, o outro rapaz transparecia o mesmo pensamento que o meu, também segurando um maço de notas, sem jeito, o dinheiro lhe queimando os dedos. Como eu, ele claramente não sabia o que fazer. Mas foi o primeiro a falar.

– Monsieur…

Do colega, meus olhos retornaram ao pobre ancião dobrado sobre o assento à minha frente. Observei-o como antes não quisera fazer. Se me referi a ele como “pobre”, não poderia ter escolhido adjetivo mais infeliz. Cada peça de sua roupa indicava o contrário. Os óculos espessos, de aro dourado, acusavam marca das mais cobiçadas. A gravata vermelha era de seda e estampava um padrão característico dos altos funcionários da burocracia francesa. Nos sapatos, no paletó, na carteira de couro, em tudo estava explícita a condição privilegiada daquele velho que nos causava tanta pena.

Imediatamente, assomou ao meu espírito a questão mais óbvia. Que será que o levara a andar de metrô na madrugada de sábado? Um homem em suas condições, rico e doente, quase inválido, poderia muito bem ter tomado um táxi, se não possuísse um carro próprio, conduzido por chofer de luvas brancas. Como fora parar ali? Formulei internamente uma resposta: a idade afetava sua capacidade de raciocínio. Era, sem dúvida, um senil. Isso explicaria não só sua presença, mas o dinheiro que ele metera em nossas mãos.

Já que o outro beneficiado não ia além do vocativo, eu mesmo tive de superar a surpresa e formular um protesto.

– Desculpe, o senhor se enganou. Não precisa dar recompensa, ajudamos por ajudar.

O outro concordou com a cabeça. Fiquei com a impressão de que ele estava aliviado. Mas o velho se recusou a recuperar o dinheiro.

– Não é recompensa. É presente.

Dessa vez, foi o outro que falou, argumentando com a típica linguagem empolada dos franceses.

– O senhor compreende que não é habitual receber somas de desconhecidos, sobretudo com um valor tão elevado…

Em voz baixa e sumida, firme ainda assim, o ancião interrompeu a declaração de recusa e se pôs a explicar, lentamente e em tom autoritário, por que nos deslizara os canudos de dinheiro. Anunciou que estava muito doente e, como podíamos perceber, muito velho. Sabia que seu futuro não contava mais do que um par de meses. Possuía dinheiro demais, pretendia distribuí-lo e se achava no direito de fazê-lo da maneira que escolhesse.

– Minha fortuna, podem acreditar, me serviu bastante, por décadas e décadas. Lutei muito por esse dinheiro, mas também aproveitei como ninguém. Agora chega. Passei no banco, tirei tudo que tinha no caixa. Vou fazer a mesma coisa amanhã e até o corpo não aguentar. Vocês dois me ajudaram, parecem bons garotos, façam o que quiserem com o dinheiro. Comprem alguma coisa, jantem no Alain Ducasse, a escolha é de vocês. Se quiserem uma dica, sugiro viajar. As viagens são a melhor coisa que o dinheiro pode oferecer.

Os olhares que até então me cobravam, agora só exalavam curiosidade, temperada de uma ligeira inveja. Eu cumprira meu dever, recusara o dinheiro. O que fizesse daí por diante não sofreria de carga moral. O mesmo valia para meu companheiro de berlinda, também observado e incomodado. Percebi que, de uma hora para outra, minhas decisões seriam tomadas diante de uma plateia. Como se vivêssemos um estranho programa de auditório gravado no último vagão do metrô, uma composição que seguia seu caminho a chacoalhar e guinchar, fingindo que em suas entranhas só acontecia o perfeitamente corriqueiro.

Sem recursos, fiz o que deveria ter feito em primeiro lugar. Busquei os olhos de minha companheira. Ali, ao meu lado, ainda apertando com força a minha perna, ela me encarava com uma espécie de piedade, ciente de que não há dor pior, para mim, do que ser observado. Em sua expressão, pude ler o desejo de que nada daquilo tivesse acontecido, que pudéssemos simplesmente chegar em casa, como todas as noites, conversando sobre os eventos do dia, depois ver um filme e dormir em paz. Pequenos, humildes, felizes, sem incômodo.

Fui dominado por um leque de sentimentos inconciliáveis. Quis saltar na primeira parada e correr para a rua, longe dos olhares, só eu e minha consciência abalada. Quis ofender o velho, atirar-lhe o dinheiro ao colo, vociferando que a origem só poderia ser suja, indigna, corrupta. Quis arrancar o elástico que prendia o cilindro e lançar o dinheiro para o alto, de modo a que os demais viajantes saíssem da confortável posição de audiência para o ridículo de disputar dinheiro.

E quis chorar, mas não chorei. Não sei por que quis chorar, não sei por que não o fiz. Nem sei dizer quanto tempo se passou antes que eu olhasse para meu duplo, a poucos passos de mim, e o surpreendesse também congelado, esperando minha reação como eu esperava a sua. Acho que ele se dava conta, ao mesmo tempo que eu, de um detalhe muito estranho.

Aquele dinheiro não tinha graça. Se, como sugerira o doador, eu comprasse um computador, um jantar caríssimo ou uma viagem deliciosa, seria uma aquisição morta, frustrante. E fugaz, porque alimentada por um capital de ilusão, alheio, casual. No dia seguinte, deixaria como legado um rastro de pobreza. Aquele papel valioso, de que ambos certamente temos necessidade, nenhum de nós o queria de verdade. Entretanto, ainda que não o quiséssemos, tampouco tínhamos coragem de devolvê-lo. Honra é honra, orgulho é orgulho, mas dinheiro, acima de tudo, é dinheiro.

No impasse, o elemento preponderante era, sem dúvida, a presença do público. Cheguei a desejar que fosse coisa da minha imaginação a idéia de que o vagão inteiro estava submerso no suspense, impaciente para acompanhar o final da história, pronto para apertar os celulares e votar na ação que os protagonistas deveriam seguir. Pois bem, os protagonistas éramos eu e o desconhecido que se tornara, de súbito, meu irmão.

Mas veio a prova de que estávamos, de fato, no centro das atenções. Chegamos a uma estação em que se cruzam quatro linhas de metrô e duas de trem. Onde centenas de milhares de pessoas trocam de direção a cada dia. Mas ninguém desceu, ainda que muitos já estivessem colocados diante das portas. Subiram boas duas dúzias de pessoas, que se espremeram no espaço que deveriam deixar os que saíssem. Não entenderam por que havia tanta gente e uma atmosfera tão pesada. Mas para mim foi uma ponta de alívio.

Só uma pessoa se mantinha alheia ao suspense. O velho, entregue à caquexia, olhava para os próprios joelhos. Balançava a cabeça, com seu cabelo esparso e espetado. Senti raiva, pensei divisar um sorriso de escárnio, tive ganas de agredi-lo como a um cão indefeso. Se o fizesse, como reagiria a plateia? Que me aplaudissem e louvassem, que me linchassem e vaiassem, não sei o que seria mais abjeto. Alguém, ali, talvez já tivesse uma câmera de vídeo empunhada, pronta para tornar a mim e ao outro rapaz estrelas da internet.

A não ser pelos recém-chegados, para quem tudo devia andar na mais perfeita normalidade, não havia conversas. Ouvíamos o tempo que me apertava o pescoço, sentíamos a fricção dos trilhos. O metrô já chegava à estação seguinte, a penúltima de nosso percurso programado, e eu ainda só conseguia pensar em desaparecer.

A claridade da plataforma invadiu as janelas, despertou-me do torpor. Freávamos. Novamente, busquei a opinião de meu colega de impasse. Percebi que ele tremia um pouco. Tive esperança de que seria ele a romper a teia e resolver a situação. Aguardei, olhos cravados nos seus. E ele não me decepcionou. Quando paramos, projetou-se para cima de mim, tão rápido que não tive tempo para o sobressalto, agarrou o dinheiro das minhas mãos, aproximou o rosto do meu, encarou-me com olhos fixos, olhos negros e decididos, e disse, mais ar do que voz:

– Je ne supporte plus!

Vendo que eu meneava, inteiramente de acordo, ele se ergueu e foi até a porta. O alarme se pôs a soar, mas o prazo curto só aumentou sua determinação. Ele ergueu a alavanca. Ouvimos o estrondo do metal, sentimos a brisa fresca e malcheirosa invadir o vagão, acompanhamos o gesto com que ele atirava ao longe os dois cilindros valiosos, grunhindo de raiva.

Enquanto meu novo amigo recuperava o fôlego, acompanhando o dinheiro que rolava para o canto da plataforma, as portas se fecharam novamente diante de seu nariz, velozes como lâminas de guilhotina. Quanto à fortuna, ela seria de quem a encontrasse, provavelmente um mendigo ou um gari. Nossa, não seria.

Cheguei a fantasiar que o catalisador de toda a história desapareceria de repente ou revelaria ser um demônio, um duende, qualquer ser sobrenatural. Mas qual, o velho continuou encalacrado, olhos nos joelhos, como se nada se passasse à sua volta. Uma frieza tamanha me causou calafrios e reforçou minha convicção de que algo ali não podia ser humano.

Recebi um abraço da namorada e pude perceber que ela passara os últimos instantes com a respiração presa. Eu também. De volta à calma, também veio o outro, o corajoso, para me cumprimentar. Pus-me de pé e apertamos as mãos. Mas aquele não poderia ser um cumprimento formal, desses que se dão no início das reuniões de negócios. Apesar de nem sabermos o nome um do outro, trocamos um abraço forte, com tapa nas costas, como se fosse no Brasil.

Logo, porém, fomos lembrados de que não estávamos sós e o episódio escapava à nossa esfera. Antes que nos afastássemos, alguém começou a bater palmas. Em um segundo, todo o vagão aplaudia, até mesmo algumas das pessoas que vinham de entrar e praticamente não acompanharam o ocorrido. O ancião continuava atento a seus joelhos.

O desconforto voltou de um golpe. Tudo começara por causa de uma figura surgida do nada, e de repente queriam me fazer de celebridade. Esperavam sorrisos, um aceno, mais abraços e cumprimentos, fotografias, talvez até autógrafos. Mas eu não tinha escolhido, não queria nada assim. Só pensava em deixar aquele ambiente claustrofóbico e ser esquecido por todos eles. Uma hora da manhã de um sábado qualquer, mas era como se apresentássemos um programa de televisão. Desconhecidos sorriam para nós, faziam perguntas, espoucavam flashes indiscretos. E não teríamos mais nem ao menos o consolo de uma viagem luxuosa ou um jantar elegante.

Pareceu uma eternidade até que a estação chegasse. Enfim, era a nossa. Descemos. Junto conosco, vieram meu bravo companheiro e uma multidão insuportável, incluindo sem dúvida muita gente que já deveria ter saltado. O doador senil continuou na mesma posição, olhos nos joelhos.

O trem partiu, a turba se dissolveu, o pesadelo acabou.

Perguntei ao novo amigo:

– Você também mora no bairro?
– Não – ele respondeu, com seriedade quase solene. – Moro no final da linha, mas acho que prefiro pegar o próximo trem.

Jamais compreendi tão bem uma decisão quanto aquela, apesar dos doze minutos de espera que ele teria pela frente. Pensei que poderíamos lhe fazer companhia, mas os olhos da namorada já mal se mantinham abertos e minhas próprias pernas bambeavam.

Cumprimentei-o mais uma vez e, sem outras palavras, nos separamos. Apesar do episódio intenso que nos uniu, espero que jamais tornemos a nos encontrar.

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De dois plátanos

Platano
Bem no meio da região conhecida Batignolles, existiu até meados do século XIX um terreno largado, coberto de lixo deixado pelos fazendeiros do entorno, em suas idas e vindas para os mercados da capital. Não havia o menor motivo para prestar atenção no que houvesse sobre os tufos de grama anêmica. Eram objetos esquecidos, indesejados, pontilhando o espaço entre umas poucas árvores quase desfolhadas, tortas, irrelevantes.

Do dia para a noite, Batignolles se tornou um naco do 17o arrondissement de Paris, pelas ordens de Napoleão III (“o pequeno”, segundo Zola). Pequeno ou não, o sobrinho do diabo corso mandou transformar em parque aquela área perdida no meio de seu novo e estimado bairro burguês. Dando seguimento a uma folclórica fixação sua, quis algo no estilo inglês, em que os caminhos são curvos e a grama, impecável. Encarregou seu paisagista preferido, Jean-Charles Alphand, de canalizar a água e criar um córrego com pequenas cachoeiras e pontes, dando num lago artificial para os patos e cisnes negros que passariam a viver ali. Um canto para crianças, caminhos tortuosos, grama capinada e árvores substituídas, uma pequena estufa para uma única pequena árvore, trazida da Ásia e coberta de folhas até hoje. Alphand era um homem muito competente. A square Batignolles, século e meio depois, é um lugar delicioso para ver o tempo passar, pelo menos quando não faz muito frio.

De casa até lá, ando pouco mais de dez minutos. Um caminho que já percorri um sem-número de vezes. Sempre que precisei de sossego, inspiração, verde, rostos. É o lugar em que vivem os tais plátanos sobre os quais venho prometendo escrever desde o início do mês. São dois. Caules robustos e negros implantados com firmeza na terra, um ao lado do outro, seus galhos espalhados a uma distância desrespeitosa. Cobrem o lago inteiro, servem de pouso e guarda-sol para as aves, recortam a vista do céu como se quisessem nos lembrar de que a vida real está aqui, colada ao chão, e as copas das árvores mais vetustas são seu limite.

Até a última vez em que os vi, jamais tinha percebido que eram dois. Contemplava o emaranhado opulento de madeira escura e era só o que via: um emaranhado opulento de madeira escura. Desta vez, por acaso, e essas coisas só acontecem por acaso, vi-me parado diante de um dos troncos, que eu não conseguiria abraçar sozinho. Pude observar as ranhuras da casca, as reentrâncias na madeira, as cicatrizes do tempo, que acumula madeira em camadas, como uma vela que vai derretendo. Mas quanto tempo? Pensei que jamais saberia. Até que avistei, distraído, uma plaqueta verde pendurada, quase invisível. E descobri que se trata de uma árvore de 1860.

Aquele plátano silencioso mudou de figura no mesmo instante. Seu nascimento precedia de alguns anos o do próprio parque. Foi plantado pelo vento, não pelo homem, a quem só coube a sabedoria de não derrubá-lo e incluí-lo em seus cálculos. O lago recebeu seu formato tal como é simplesmente porque, com o tempo, uma bela árvore cresceria e abriria os galhos sobre ele, como asas de um cisne sobre os filhotes. Alphand subiu no meu conceito: além de paisagista competente, não comungava do maior vício de seu tempo, que era a fé doentia na razão e no planejamento humanos. Essa presunção estúpida, que derrubou monumentos e matas, teria levado qualquer engenheiro da época a impor ao lago o traçado de seu esquadro. Mas Alphand considerou que dali a 150 anos um plátano valeria mais do que uma piscina, e cedeu. Com toda razão.

E não foi a última conclusão que tirei do passeio. Mais uma meia-dúzia de passos e fui surpreendido com a informação de que não havia um plátano, mas dois, como eu já disse. Esse segundo tinha o caule ainda mais largo, escuro e áspero. Um grande buraco, à altura de meus olhos, banhava em breu o coração da árvore e revelava o heroísmo com que ela se mantinha de pé. Aquela imagem de força e decrepitude tinha a singular qualidade de ser ao mesmo tempo bela e sublime, se é que os guardiães da Estética me permitem falar assim.

Em seguida, procurei conferir a idade. A placa me deu mais informações do que eu precisava. Seus poucos numerais explicavam que já crescia a árvore antes mesmo de a região entrar para Paris. Os vendedores que atiravam seu lixo sobre a grama o faziam nas redondezas de um jovem plátano. Enquanto Haussmann botava a capital abaixo, folhas nasciam e caíam dos mesmos galhos, em obediência às leis da primavera e do outono, da mesma maneira como as vejo agora.

A regularidade do ciclo biológico não foi alterada nem com as barricadas de 1848, nem com os alemães desfilando pelas Champs-Élysées em 1870, nem com a violência da Comuna, no ano seguinte, nem com a chegada dos nazistas. Tudo isso nada significou para nenhum dos plátanos. Se a Sorbonne parou em 68 e em 2006 (mal comparando), os plátanos nem ficaram sabendo.

De repente, surpreendi meu pensamento nas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, enfeitando os caminhos desde que éramos colônia. Quietas, belas, soberanas, enquanto tivemos golpes, ditaduras, escravos e reis, miséria e milagre. Lembrei de D. João VI e do hábito que temos de retratá-lo como glutão e ligeiramente retardado. Que seja, mas então são as palmeiras de um retardado que nos ligam com maior clareza a nosso passado, leia-se nossa história.

De lá para cá, derrubamos o morro do Castelo, abrimos a avenida Rio Branco, demolimos os prédios elegantes que lhe enfeitavam o entorno. Mudamos de capital, de regime, várias vezes de vocação econômica, ao sabor de caprichos nacionais. E as palmeiras balançando ao sabor de ventanias e chuvaradas. Neutras enquanto nossos pais e avós as contemplavam e deixavam de contemplar, elas acompanharam nossos nascimentos e mortes. Exatamente como esses dois plátanos que uma dúzia de crianças agitadas, dois passos à minha frente, tenta desenhar para um trabalho de escola. Plantados no mesmo lugar desde Napoleão III, até Sarkozy e sabe Deus quem mais.

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