arte, barbárie, descoberta, desespero, deus, economia, escândalo, estados unidos, ironia, modernidade, obituário, opinião, passado, Politica, reflexão, religião, trabalho, transcendência

Litania para o capital

Fuçando nos arquivos mais recônditos deste HD, acabei encontrando a brincadeira que segue abaixo. Foi escrita quando eu estava na faculdade (e, aliás, este HD nem fabricado era), para provocar meus colegas corretores da Bovespa, que andavam um tanto nervosos, conseqüência de alguma dessas crises por aí.

Lembro-me particularmente de um desses meus amigos, a quem perguntei, por pura gaiatice, já sabendo a verdade, se a corda estava apertando demais o pescoço da empresa em que ele trabalhava. (A tal empresa foi absorvida por outra bem maior, poucos dias depois.)

Pois bem, a resposta do rapaz foi adorável: “Agora, só resta rezar.”

Passei o dia imaginando como rezariam os colegas do rapaz, logo antes da abertura dos negócios, à espera do retinir do sininho. Seria como uma grande celebração, engravatados de joelhos, mãos unidas, ar de introspecção. Aos poucos, vai se erguendo uma voz coletiva, um grande uníssono, para este que, em nosso século, tomou o lugar que já foi de Deus e outros deuses.

Enfim, segue abaixo um esboço do que clamariam os infelizes. Já vou avisando a Duncan Niederauer que cobrarei os direitos autorais se ele quiser adotar a nova oração nas cerimônias da NYSE.

.

Litania para o capital

.

Ó Vós, que permitis, divinamente,
A implosão de todo patrimônio!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Ó Vós, que sois pai de todas as Bolsas,
idolatria de derivativos!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Ó Vós, que distribuís as sementes
da fortuna e da fome, cegamente!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Ó Vós que podeis prever o porvir
daqueles que abdicam de consumir!

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas.

.

Vós que negais os frutos do trabalho,
escutai as preces do investidor:

.

  • Concedei-nos cobrir as perdas!
Padrão
abril

A grande transformação*

Gente Sentada No Parque
Novamente sobre o Primeiro de Abril, quando saí de casa em busca de uma mentira e não encontrei. Como já expliquei no último texto, aliás. Por outro lado, e para meu grande espanto, o que encontrei foi uma nova cidade. Absorto na minha busca infrutífera, ganhei a rua, mas antes mesmo de atingir a esquina, já me sentia deslocado. Esta não é a mesma Paris de ontem, isto é, 30 de março; estes não são os mesmos parisienses. Terei atravessado um portal místico ao empurrar as cinco toneladas da porta do edifício? Terei sido transportado para outra realidade, outro país? Meu humor anda assim tão bom, que vejo tudo de outra forma?

Rumo ao pequeno parque escondido nos fundos do bairro, percorro as ruas do quotidiano como se explorasse as veredas de Atlântida. Mesmo os mendigos, encalacrados pelos últimos meses nas soleiras e nas escadarias do metrô, têm o ar de quem toma sol. Sentados em banquinhos de três pés, pedem seus trocados com gentileza, numa subversão tão perturbadora do desespero do inverno, que chega a parecer artifício. Um motorista com vocação para Nakajima quase atropela um motociclista, mas nem por isso um xinga o outro. Ao contrário, produz-se ali a Segunda Revolução Francesa: um pede desculpas ao outro e segue sua vida.

Quanto às moças, as célebres patricinhas francesas, elas trocaram seus cachecóis felpudos e brilhantes por coques estilizados. Chego a perder um minuto observando uma dessas estruturas de melenas: parece projetado por Calder, tamanha a delicadeza do equilíbrio, sob a ameaça da primeira brisa. É abril. Adeus botas de saltos mais altos que os canos, olá saias curtas e sandálias.

Descrito assim, pode parecer caso de dia ensolarado, mais quente do que os anteriores, irreversível final do inverno. Ledo engano. Primeiro de abril não foi mais quente do que 30 de março. Talvez a média tenha ficado até um ou dois graus mais baixa. Sol, houve. Menos do que no dia anterior, mais do que no seguinte. O horário de verão já vige desde o dia 21. Oficialmente, já temos quase duas semanas de primavera. Lanço a pergunta: que raios, afinal, mudou tanto de segunda para terça-feira?

Resposta singela, mas verdadeira: o mês. Nada mais. Não há ato psicológico mais forte que arrancar uma página de calendário. Abril é quando se fica mais alegre e se vestem roupas mais leves, certo? Pois bem: alcançamos abril, então é hora de inverter o guarda-roupa. Se eu disser que o francês deixa a condução de sua vida, em muito vasta medida, a cargo de datas, horas e outras funções matemáticas, vai certamente parecer exagero. Mas afirmo que, se for, é por muito pouco. A metamorfose está aí que não me deixa mentir. A mudança do vestuário não aconteceu gradualmente, tampouco a do humor. Foi, literalmente, de um dia para o outro.

É a regra. O mesmo acontece, por exemplo, no início do inverno. Os imóveis que têm aquecimento central automático o ativam, todos, quase sem exceção, em 15 de outubro. Eis o dia em que se começa a sentir frio. E, de fato, é o dia em que os casacos aparecem. Pouco importa que esteja muito mais quente que no dia 14. O dia 14 não é o dia em que se começa a sentir frio. É o dia 15, esse sim. Eis o dia, repito. Ponto final.

Cheguei a desenvolver uma teoria sobre o Primeiro de Abril. Assim como é a data em que as roupas se tornam leves (sob o risco de tiritar, não nos esqueçamos), é também o momento de começar a demonstrar alguma alegria, de vez em quando. Os sorrisos guardados no fundo do armário podem sair, empoeirados e cobertos de um ligeiro bolor. Daí a idéia de instituir a data de zombaria sobre os outros, de ser maldoso, mentir, pregar peças. É mais um pretexto para dar risadas; afinal de contas, os europeus precisam de fortes incentivos para gargalhar e, quando o fazem, normalmente exageram. Ainda hei de publicar uma tese a respeito.

Quanto ao que há de extraordinário e acintosamente belo na primavera de Paris, especificamente em abril, prefiro me ater ao texto do ano passado e à música que, naquele momento, embalou meus dias.

Na semana que vem, os plátanos prometidos!

* Título plagiado da obra magistral de Karl Polanyi.

Padrão
Brasil, costumes, crônica, descoberta, futebol, história, ironia, opinião, prosa, reflexão, tempo, vida

Pé-frio, abnegado e feliz

Brilho+na+cabe%C3%A7a

Ontem à noite, telefonei para meu colega Diego de Oliveira com a intenção de provocá-lo. Trata-se de um amigo brasileiro, interessante sobretudo por suas contradições: é, ao mesmo tempo, carioca e paulista, capitalista e socialista (como a China?), economista e artista, roqueiro e sambista. Vá entender a figura! Acho que a única cláusula pétrea em sua constituição é sua paixão irracional pelo Fluminense. Tão irracional que ele é capaz de todo tipo de sandice pelo seu clube do coração. Senão, vejamos:
Perguntei-lhe, por telefone, se pretendia varar a noite para acompanhar, pelo rádio, a final da Copa do Brasil contra o Figueirense, em Florianópolis. Com uma dificuldade enorme, até engraçada, de manter a voz estável, ele respondeu que não. “Como não?”, retorqui. “Não é todo dia que o seu time chega a uma final! O que é varar uma noite, tendo a oportunidade de ver um título inédito? Você vai desperdiçar isso, só porque precisa acordar cedo e ir trabalhar?”
“Não é isso”, ele respondeu, algo vexado. “É claro que eu passaria a noite inteira ouvindo o jogo via internet… mas não posso.” Pensei que a culpa fosse de sua conexão, que estivesse falhando. Não. Pensei que ele não fosse, por algum motivo, dormir em casa. Tampouco. A explicação, quando o rapaz finalmente cedeu às minhas pressões, me levou às gargalhadas. “É que, pelo rádio, sabe como é… Eu sou muito pé-frio!”
Ele se ofendeu com minhas risadas e, como todo supersticioso, desenvolveu uma argumentação estatística para provar como, de fato, seria perigosíssimo para seu time se ele colocasse os fones no ouvido e se conectasse à Tupi, à Globo, à Nacional, à CBN. Trouxe à baila outros jogos que acompanhou. Traumas, desclassificações, títulos perdidos, gols espíritas. Uma evidência, no seu entender, ainda mais forte: esses gols costumam acontecer logo depois que ele se conecta. Que tragédia! Sinistro, muito sinistro, diria Januário de Oliveira.
Por outro lado, Diego já se manteve afastado das tentações radiofônicas em outras ocasiões. Sucesso: belas vitórias, goleadas, gols mágicos, títulos. “É o óbvio ululante”, ele exclama, citando o ídolo maior da literatura tricolor, Nelson Rodrigues. Esse Diego, trata-se de um pé-frio dos piores. O Fluminense deveria pagar alguém para amarrar os braços de seu torcedor, cada vez que ele tente acompanhar uma partida.
É uma maldição. Uma sina. Seu destino é ficar nervoso, em silêncio, esperando que se esgotem as quase duas horas de duração de um jogo para, finalmente, ficar sabendo apenas do resultado e acompanhar os melhores momentos. Ter a sorte de seu clube, e dos demais 10 milhões de torcedores, entre as mãos, é uma responsabilidade que poucos conseguiriam suportar. Mesmo à distância, separado de seu Tricolor por um oceano enorme, só Diego é que decidirá o título, mais do que Renato Gaúcho, Roger, Thiago Neves ou Carlos Alberto. O auto-controle de um jovem exilado conta mais para uma conquista do que os treinamentos nas Laranjeiras ou as contratações.
Muito bem, então. É sorte do Fluminense que seu torcedor mais decisivo seja um abnegado. Como eu disse, é alguém que faria qualquer sandice pelo seu clube. Não, claro, como alguns malucos que viajam o país inteiro atrás de um time. Pelo contrário. O maior ato de amor de Diego é não ver, nem ao menos escutar as partidas.
Acontece que, esta manhã, encontrei o dito-cujo no corredor. Cambaleava, pobre diabo, com sua camisa um pouco amassada deixando entrever, por debaixo da gola, o uniforme listado nas três cores de seu time, traduzindo tradição. Tinha olheiras do tamanho de castanhas e um sorriso de cãibras. Quando deu por mim, veio me abraçar como se faz no Brasil – mas aqui, pega um pouco mal. Sua aparência exterior não me enganou: ele não pregara o olho.
“Então você ficou acordado! Não resistiu ao encanto da partida? Irresponsável! Quase pôs o Fluzão a perder!”
Ele sacudiu a cabeça. “Não acompanhei o jogo… mas estou louco de felicidade! É campeão!”
Como se eu acreditasse. “E essas olheiras? Acha que me engana?”
“Estou falando sério. Não vi o jogo, mas também não consegui dormir. Fiquei a madrugada inteira acordado, deitado na cama, olhando para o teto. É um desespero. Você não supõe como é terrível! Saber que a bola está rolando e você não pode acompanhar. Estamos ganhando? Estamos perdendo? É redenção ou humilhação? Impossível dormir. Só levantei quando, quase às cinco da manhã, meu pai me telefonou para dar a notícia.”
E repetia: “É campeão, é campeão, é campeão…” Para ser honesto, essas manifestações de alegria futebolística me irritam um pouco. Dei os parabéns, que sou bem-educado, e me afastei. Superstição tem limites… ou não tem? Talvez o futebol seja o exato domínio em que nossa fé no oculto se liberta. Tudo bem, Diego, eu compreendo seu parafuso a menos.
Ele, a esta hora, deve estar adormecido, com a cabeça sobre o tampo de sua mesa. Mas é merecido. Ele dorme o sono dos campeões e dos malucos. E hoje, em particular, ele é ambos.
Padrão