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O sol e o século

Primeiro dia do ano com sol e temperatura acima de zero, já na última semana de fevereiro. Então ela aproveitou para levar as cartas todas ao correio, depois comprar queijo, vinho, carne e pão. Apesar da luz ressuscitada e do clima agradável, o clima ainda era fresco: cinco ou seis graus. Caso para um bom casaco, mas não pesado demais. Ela escolheu um escarlate, de lã, um de seus preferidos desde o dia em que Henri Salvador, do palco, atirou uma flor e ela foi cair em suas mãos. Passou a ser o casaco da alegria.

Para quebrar a tonalidade alegre demais do vermelho, pôs uma boina cor de creme, cuja sobriedade, somada aos óculos de aro dourado, deveriam emprestar à sua figura um equilíbrio elegante. Desde pequena, sua mãe lhe transmitira a certeza de que não há valores para a mulher como a elegância e o equilíbrio. A mãe já passou há muito, mas ela ainda segue a lição à risca.

A rua era a mesma de todos os anos, desde que comprara o apartamento em que vivia, com muito esforço e trabalho, dela e do segundo marido. Os mesmos prédios de pedra, haussmanianos, opacos e solenes. A mesma fileira de árvores sem folhas, a mesma linha de trem depois da cerca. Mas os tantos meses sem luz, como acontecia a cada ano, quase a levaram a esquecer que cara tinha o bairro quando banhado de sol. Na esquina, a claridade conferia a cada braço das ruas um tom próprio, inteiramente diferente dos demais.

É o que faz o sol, sempre que lança pinceladas sobre uma esquina. Mas ela não reparava nisso há muitos anos, desde muito pequena, quando quase foi atropelada por um Citroën Traction Avant. Salva por um desconhecido de sapato envernizado e bigode esquisito (sua mãe dizia que era um famoso artista espanhol), a única lembrança que ela guardava do episódio era a luz do sol, que embelezava um lado da rua e deixava o outro, aquele de onde vinha o automóvel, esfumaçado e umbroso.

De lá para cá, tanta coisa! Uma adolescência dura, em que os pais evitavam o quanto podiam deixá-la sair. O medo dos boches, os invasores que falavam pela garganta. E o dia em que não conseguiu chegar em casa, voltando da escola, porque as ruas estavam apinhadas de gente, como nunca ela tinha presenciado. Era algo que ela nem imaginava, acostumada que estava aos bulevares desertos senão por veículos camuflados. E então, o desconhecido de boina negra e jaqueta surrada que apareceu de lugar nenhum, um rifle às costas, tomou-a pelas faces e lhe tascou um beijo. Foi seu primeiro beijo. E o rapaz exclamava: “Eles foram embora! Os americanos estão chegando!”

Depois da Liberação, a escassez de comida e os tempos de normalista. E ela rompeu relações com o pai, envergonhada de ele não ter aderido à Resistência. Aceitara passivamente os soldados invasores atravessando a rua debaixo da janela. Sem esboço de reação, senão pela expressão de desgosto e asco. Continuara trabalhando, gerando renda para o inimigo, enquanto o resto do mundo lutava e morria para libertá-los. Como ela o repreendeu naqueles anos de juventude inflamada! Ele jamais deu uma respondeu. Só a mesma seqüência de suspiros. Enfim, levou muitos anos até que ela pudesse compreender a escolha de um homem que precisava engolir todas as humilhações para alimentar a família, tanto quanto em tempos de paz. Ela só o perdoou numa tarde chuvosa de janeiro, de joelhos diante de sua tumba no Père Lachaise.

O primeiro emprego, para contribuir em casa, foi num liceu suburbano. Aulas de francês, matemática e geografia para uma garotada pouco interessada nos estudos. Com o tempo, ela acabou se acostumando a pegar o trem todas as manhãs na Gare Saint-Lazare e sacudir sobre os trilhos, como se montada num cavalo mal adestrado, por mais de uma hora, enquanto as construções escasseavam. A cada vez que um aluno baixava a cabeça e dormia durante a aula, ela se lembrava de como desejara estudar medicina e de como os pais a demoveram da idéia.

Casou-se pela primeira vez por impulso: um rapaz para quem seu pai torcia o nariz, garoto sem eira nem beira, sempre do contra. Ela não era nada do contra, a não ser, é claro, quanto às atitudes do pai durante a guerra. Pois o primeiro marido era filho de um mártir da resistência, cujo nome estava inscrito na fachada de um edifício do Quartier Latin, marcando o ponto em que ele foi abatido a tiros pelos alemães em agosto de 44.

A união por rebeldia não demorou a se revelar um erro. Em menos de dois anos, ela já nutria um desejo, obviamente secreto, de divórcio. Mas não queria dar o braço a torcer ao pai. Não queria se ver sozinha, mesmo que valesse mais a pena. E a essa altura já tinha a filha, linda e meiga, que não merecia a dor e a vergonha de uma separação. “Pela menina”, ela dizia para si mesma, à noite, enquanto tentava pegar no sono, “é preciso suportar”.

O sol não mudava seu jeito delicado de banhar as esquinas, mas o mundo, entre um raio de luz e o seguinte, se transformava como esquizofrênico. E ela nunca teve certeza, ao longo dos anos, se tanta mudança era algo a aplaudir ou lamentar. Foi com esses sentimentos misturados e palavras molengas, evasivas, dúbias, que ela lançou sua condenação à irmã caçula quando, batendo as portas e lançando maldições a toda a geração anterior, abandonou a casa dos pais e desapareceu. Rebeldia muito mais grave do que um casamento intempestivo. E muito mais segura, autônoma, poderosa. A primogênita, em sua altivez de mãe e trabalhadora, invejou, muito sem querer, a atitude. E a definia como “capricho de agitação juvenil” quando conversava com os pais.

E a irmã foi reaparecer dois anos mais tarde, numa fotografia de jornal. Atirava pedras de trás de uma barricada no boulevard Saint Michel contra a parede humana da polícia de choque. A menina estava mudada. Usava os cabelos longos e desgrenhados, berrava frases políticas, impedia o funcionamento da universidade, distribuía beijos indiscriminadamente entre os companheiros de rebelião. Um assombro. A família ficou chocada. Como tinha se transformado aquela garota, que até ontem brincava de boneca! Mas a primogênita, em silêncio, não conseguia evitar de achá-la linda.

Sua filhinha já freqüentava a universidade quando o casamento se dissolveu. E não foi ela que partiu, mas ele, deixando atrás de si um sentimento amargo de abandono, em vez do alívio que ela esperava. Martelava sua cabeça a convicção de que aquilo provava que nem mesmo um homem sem classe e sem educação poderia querê-la para companheira por toda a vida. E ela se viu triste, tendo de cuidar da casa para ninguém, já que a filha estudava numa universidade do sul.

Com a separação, um bom número de homens se apresentaram como pretendentes. Para sua grande surpresa, ela que se sentia velha e sem graça. Mas, em respeito aos sentimentos da filha, declinou com gentileza todas as proposições. Como ela conhecia mal o fruto de seu próprio ventre! Foi a menina que, observando a melancolia da mãe, arranjou uma maneira de colocá-la diante do pai viúvo de um colega. O homem grisalho, de terno xadrez e fala tranqüila, mas segura, era editor em Saint Germain, e se tornaria, em menos de um ano, seu segundo esposo.

Era como se a vida recomeçasse. Tanta novidade, que passou a primavera e o verão, mas ela não se deu um segundo para observar o traçado dos raios de sol. Um ano depois do novo matrimônio, a maior e melhor das surpresas: ela ainda era fértil. Mais uma criança se juntaria à família. Alegria misturada a apreensão, claro, para alguém que já passava dos quarenta e sentia a velhice mais próxima do que a mocidade.

Mas o tempo para pensar no assunto não existia. Era necessário encontrar um apartamento maior, para caberem a nova criança e a biblioteca do novo marido. Economizaram, venderam bens, contraíram empréstimos, conseguiram pagar o três quartos no primeiro andar da rua Cardinet, acima dos correios, que ocupariam pelas décadas seguintes. Foi onde cresceu o menino, cuja maior diversão, em pequeno, era acompanhar a passagem dos trens pela janela. Era onde se faziam os almoços de domingo para a filha, o genro e os netos, garotos barulhentos e pouco mais novos do que o próprio tio. E onde ela sentiu, enfim, que, de um jeito ou de outro, tudo se encaixava e fazia sentido.

Foram os melhores vinte anos de sua vida, muito bem vividos. Sobretudo depois da aposentadoria. Tempo empregado em fruir da família, não em acompanhar os movimentos do sol ou reclamar do radicalismo da agitação política, tão mudada desde os tempos de sua irmã nas barricadas. Ela lamentava as bombas e os seqüestros, mas não pensava neles quando desligava a televisão. Só temeu pela vida do filho – um frio na espinha indescritível, um enjôo injustificado – quando explodiram a estação de Saint Michel. Mas o alívio foi imediato quando ele telefonou, algumas horas mais tarde, para dizer que estava bem, a salvo na casa de um amigo.

Enviuvou na virada do século, mas a morte do marido foi tão tranqüila e paulatina que a tristeza logo se transformou em cálculo de quanto tempo levaria para se reencontrarem. Ela mesma já não era nenhuma garotinha. Nas primeiras semanas, foi difícil encontrar modos de ocupar o tempo solitário, mas, aos poucos, ela foi se inscrevendo em cursos de cerâmica, pintura, história, filosofia. Aprendeu tanta coisa, que parecia ter voltado à escola. Sua cabeça nunca esteve tão boa. Os cálculos para se unir ao esposo no jazigo de Montparnasse desapareceram por completo: era, afinal, uma certeza. E não há necessidade de pensar em certezas. Ela, então, deixou tombar a pressa.

A um passo da primavera, descer à rua para comprar artigos de primeira necessidade se tornou um prazer. Desses pequenos deleites da pequena vida, que tantos anos leva para aprender a apreciar. E esse prazer em particular, o sol se espraiando de maneira desigual pelos braços das ruas, ela ficou contente de reaprender. A vida, tanto tempo passado, tantos eventos, tantos desgostos e alívios, ainda podia lhe trazer novidades. Talvez tenha sido por isso que ela respondeu com um sorriso aberto e um entusiasmo tamanho, talvez até inapropriado, quando o rapaz de sotaque estrangeiro e bons modos (coisa rara nesses jovens de hoje) veio lhe perguntar para que lado ficava a rua de Saussure.

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crônica, ironia, prosa, reflexão

O envelhecimento em seus primórdios

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Primeiro foi meu pai, afirmando que não queria pagar meia-entrada no ônibus para não sentir que envelhecia. Com o acréscimo: também não queria deixar de viajar com mochila nas costas (mas deixou) ou começar a jogar golfe com carrinho elétrico – essa última prática, coisa de velho mesmo, e pior, americano. Pior do que ser velho é sentir-se assim.

Depois, uma reunião com os amigos da faculdade, todos recém-formados e ainda bastante jovens (embora cá e lá as entradas e brisa no cocuruto já comecem a preocupar). Percebemos que já estamos todos assentados, a maioria empregados, alguns à beira do casamento. Houve até quem reclamasse da cerveja, dizendo que não cai bem no estômago como costumava (teria eu ouvido um arremedo da palavra “antigamente” na boca de alguém?).

Pois não pudemos escapar à sentença: estamos envelhecendo. Parece tolice essa frase numa mesa de rapazes que existem há pouco mais de um quarto de século, no máximo. Mas sim, confesso que era esse o travo nas gargantas de quem não mais colecionava conquistas ou virava noites em competições etílicas.

Amadurecimento… Pois sim! As frutas é que amadurecem, caem do pé, são comidas ou apodrecem. Pessoas não amadurecem, apenas envelhecem. No máximo elas aprendem a ser civilizadas, o que não necessariamente é a mesma coisa. Honestidade terminológica, então: envelhecer. Que raios será isso? Quando é que começamos a pensar nesse monstro se cinco olhos, oito asas, três fileiras de dentes (já caindo) e uma sucessão incontável de bengalas, dentaduras e rugas? Melhor colocando: quando é que a curva se torna descendente, do orgulho de crescer passa-se ao medo da decrepitude?

Escutando meu pai, meus amigos e a mim mesmo, deixei de lado a idéia física de incapacidade para determinadas atividades, enbranquecimento do cabelo, enrugamento da pele e assim por diante. Isso, para mim, é só a ponta do iceberg, para usar uma expressão bem corrente. Tenho um amigo que desde os quinze anos mal tem fios no arco que separa as duas orelhas. Nem por isso seja ele velho, pelo contrário, até hoje trata-se de um garoto disfarçado (por pura molecagem) em homem, já perfeitamente acostumado, para não dizer conformado, à obrigação de passar protetor solar no alto da cabeça.

Dizem que se começa a morrer a partir do momento mesmo em que se nasce. Parece uma frase pessimista, mas não consigo lê-la da mesma maneira. De certa forma, ela diz que ao pular de pára-quedas ou estragar o fígado pela bebida, você não está morrendo mais do que ao mamar no sagrado seio de sua mãe. Morte por morte, é melhor ir morrendo com alegria, mil vezes, do que viver a pedir vistas do processo até a sentença se tornar inevitável.

Pergunta capciosa: será que podemos dizer o mesmo do envelhecimento? Não creio. Um bebê que sai para o mundo está mais próximo da morte do que ao ser concebido. Mas ele fez uma verdadeira conquista. Veio ao mundo, à luz, a todas essas potecialidades de gozo e sobretudo miséria (mas miséria criativa). Isso é pura juventude. É o começo do caminho para o túmulo, claro, mas nada tem a ver com o envelhecimento.

Da mesma maneira, deixar de engatinhar quando se começa a caminhar em duas pernas é juventude, vigor, conquista, vitória contra suas próprias limitações. A mesma coisa para o momento em que se deixa de mamar no peito para comer no prato os legumes amassados pela mamãe ou a babá. Aprender a falar, a usar o penico, a correr, idem. Ir para a escola, passar de ano…

Então qual é a primeira atitude verdadeiramente ligada ao envelhecimento que temos na vida? Ora, se abdicar de algo, digamos um hábito, em função de uma conquista, não é envelhecer, mas envelhecer é, pelo contrário, perder a aptidão para atividades já conquistadas sem em troca instalar nenhuma aptidão que possa ser considerada superior (por exemplo, de mamar para comer sólidos), então devemos procurar a inauguração do envelhecimento no primeiro momento em que largamos algo sem conquistar nada por cima disso. Em outras palavras, crescer é poder mais; envelhecer é poder menos.

Matutei bastante sobre a questão. Após semanas de meditação, isolado num quarto escuro e abafado, cheguei a uma conclusão que pode não ser exata como gostaria um cientista, mas é emblemática e atinge os propósitos deste pequeno e ligeiro ensaio. A maior parte de nossas vidas, passamos num estado intermediário entre crescer e envelhecer. Quando podemos correr menos, podemos pensar mais. Quando podemos trabalhar menos, podemos ensinar mais. Quando temos menos fôlego para o sexo, temos mais habilidade para dar prazer.

Mas esse processo tem um primeiro passo. Procuramos aqui a primeira coisa de que abdicamos à toa, apenas para envelhecer, não para ganhar algo em troca. Pois bem, eis a resposta: é a cambalhota. Por que, lá pelos sete, oito anos, deixamos de dar cambalhotas espontaneamente? Por que não nos divertimos mais com ela, se ela nos dava tanto prazer? Seria porque estamos longe demais do chão? Ou porque as substituímos por brinquedos como a bicicleta ou a televisão, a famigerada televisão? Ou porque não pega bem entre os colegas?

Haverá quem diga: ginastas e dançarinos dão cambalhotas a vida inteira. É verdade. Por outro lado, jamais verá você um ginasta que, contente com o resultado de algum exame, saia pelas ruas a virar cambalhotas. Não. Um ginasta, um dançarino, um atleta, veste suas roupas de ensaio, faz seus alongamentos indispensáveis, conta: um, dois, três, quatro, e dá sua cambalhota milimetricamente calculada para engatar-se no próximo passo, em geral algo muito mais difícil e impressionante, que lhe renda uma boa nota dos jurados (porque uma singela cambalhota não basta, seria motivo de risadas). Para o dançarino ou o ginasta, a cambalhota é como um formulário para o contador ou o funcionário de cartório.

É inevitável. Certamente depois que a idade se passa a contar em dois dígitos, as cambalhotas estão fora do cardápio. Talvez até antes. Não consigo me lembrar, e olha que me esforcei, da minha última cambalhota.

Pois daí por diante, cambalhotas devidamente riscadas do repertório, o envelhecimento é uma bola de neve de que não se pode escapar. Enquanto vão-se ganhando atributos e capacidades, deixa-se de torturar gatos, bagunçar o quarto, jogar bafo, pedir o telefone das moças, tomar litros de cerveja, passar noites em claro, viajar com a mochila nas costas, trabalhar, fazer amor, enxergar, ouvir, sair de casa… No início, sentimos que estamos amadurecendo, depois percebemos que estamos envelhecendo, por fim deixa-se de aprender o que quer que seja para sucumbir à decrepitude, isto é, se antes disso nenhuma doença ou caminhão desgovernado não cruzarem nosso caminho. Nesse processo, gastam-se décadas, mas o início está lá atrás, quase no começo da vida, onde acaba a cambalhota.

Para encerrar, uma confissão: desde que cheguei a essa conclusão, muito tempo atrás, não tive coragem de arriscar uma cambalhota. Nenhuma, nem mesmo como tentativa de recuperar a juventude. Acho que nem sei mais como é o movimento, o que fazer com as mãos, em que momento dobrar a cabeça. Se resolvesse tentar, é bem capaz que eu acabasse me machucando.

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