abril, arte

Como aprendi sobre a morte

Bobby O Boneco De Neve
Vou ter de deixar para a próxima o tal comentário sobre os plátanos, que venho prometendo desde o início do mês. Como sói acontecer no poço inesgotável de surpresas que é este mundo, veio se interpor a meus projetos botânicos um fenômeno insólito. Já a alma dirigia seus cuidados à sagração da primavera, ao final de mais um inverno tão ameno quanto desagradável; espaços já se abriam nos armários, para receber as carapaças que nos protegem desde outubro; passeios e refeições ao ar livre já estavam no programa. Mas São Pedro tinha outros planos. Mandou baixar bruscamente a temperatura, dos dezesseis para o zero mais quadrado. A tal ponto que, na madrugada de ontem, perigosamente equilibrado entre a saúde e a pneumonia, levantei-me da cama, espiei por uma fresta da cortina e constatei o absurdo: do alto vinha neve.

Em vez de me meter em divagações seriamente preocupadas com as piores questões climáticas de nosso tempo (e talvez essa fosse mesmo a reação mais adequada), corri de volta ao quarto e despertei Nicole. Sabedor de sua frustração por não ter visto um floco sequer de neve desde que chegamos à Europa, não podia deixar passar essa singular chance primaveril. Tadinha, ela acordou com olhos deste tamanho, grogue e incapaz de compreender meu entusiasmo. Isso, até o momento em que se acercou da janela e avistou os automóveis todos brancos. Como no pátio de um hospital. Ela saltitava de contentamento.

Puxei o casaco que tinha mais à mão, um cachecol, um gorro, um par de luvas. Meti-me na carapaça e saí. Como um turista tropical, o que no fundo não deixo de ser, tirei fotos e fiz desenhos na camada de gelo sobre os veículos. Corri até a janela de casa, bati no vidro, Nicole abriu. Finalmente, recolhi neve e mais neve, que resultou num boneco de um palmo e meio de altura, ereto sobre o parapeito. Bobby (não fui eu que o batizei) ganhou olhos de botões, um cachecol cor-de-rosa e terra espargida sobre a cabeça à guisa de cabeleira. Tudo na mais refinada técnica que aprendi quando garoto e não pudera mais aplicar.

Assim termina a parte alegre da narrativa. Bobby teve vida curta. A neve parisiense, à qual fui praticamente apresentado ontem, é tão fraca, que nem cobre de branco as calçadas. Nessas condições, um boneco de neve, como o sol de Gregório de Matos, não dura mais que um dia.

Pior do que aprender da existência efêmera é acompanhar o processo. Chegando em casa, parei diante da janela e me deparei com um corpo branco, ainda em pé, tendo ao lado a cabeça tombada, toda suja, sobre a terra negra de um vaso que em breve deverá receber flores. Do pescoço cortado não escorria sangue, mas filetes de água, como se a essência da vida se esvaísse lentamente do pobre Bobby. Tentei encaixar novamente a cabeça, ela voltou a tombar. Recolhi os olhos, reduzidos novamente a botões sem luz.

Ao anoitecer, restava do corpo de Bobby somente um cotoco amolecido. Pensei em guardá-lo na geladeira, mas venceu a sensação de que seria como meter os restos de um filho no IML. Aquele montículo de neve fazia pensar nos corpos dos imolados pelo fogo, embora tão oposto em cor e temperatura. Uma imagem dolorosa e, de certa forma, repulsiva. Estragou meu humor pelas horas seguintes.

Já deitado, pensei no infeliz destino de Bobby, que tão pouco pôde ver deste mundo antes que um sol fraco o consumisse lentamente. Vieram à memória passagens da infância, vivida numa cidade fria, muito mais do que Paris, coberta de neve por quatro ou cinco meses todo ano, a ponto de ao menos um dia de aula ser cancelado a cada mês do inverno. Lembrei-me principalmente de um homem de neve digno do nome, de cachecol, chapéu de cangaceiro e charuto, olhos, nariz e boca, que passou a vida toda de sentinela no quintal, vendo e cumprimentando as pessoas que passavam. Uma existência mais digna e bem mais longa que a do último boneco: quase dois meses. Mas acabou. Sua agonia foi semelhante à de Bobby, só muito mais demorada. Dia após dia, a massa do corpo ficava menor e perdia a forma, a poça se adensando na base. Cachimbo e nariz tombaram, os olhos furaram os flocos da carne, o chapéu e o cachecol foram logo confiscados.

Lembro-me de uma fotografia, já na primavera, desse homem de neve reduzido a quase nada. Em verdade, a fotografia não era dele: era um intruso, ao fundo, mas foi o que vi. A imagem é chocante. E a experiência de acompanhar a decomposição de um amigo que ajudei a conceber e montar, nem preciso dizer, ficou gravada com um selo de dor.

Foi a primeira vez em que aprendi algo sobre a morte. Com quantos anos? Cinco, no máximo seis. O falecimento de Bobby produziu um déjà-vu tenebroso. Foi como uma sessão de psicanálise. Entendo agora, também, por que os povos do Norte, enfim, do frio em geral, têm a expressão sempre tão triste e fechada. Não é a escuridão do inverno. É a experiência tão precoce da morte, repetida a cada ano no corpo frágil e roliço de um boneco simpático como Bobby.

Padrão
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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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