
Decido esticar um pouco mais o motor, abusar da energia que resta ao fim de uma jornada já intensa, aproveitar que os olhos e os neurônios ainda estão embalados para trabalhar até a pane no sistema nervoso. Um erro, nem preciso dizer: não bastasse a epopéia de encontrar uma porta aberta para deixar o edifício, é subúrbio, é noite, e em meio de semana há menos trens. Um quarto de hora na plataforma, à espera da composição, acompanhando o vapor que minha respiração lança no ar, dificilmente constitui um prazer. São nove horas.
Já a meio caminho ouço à distância – na verdade, não tão longe – o buzinaço. Cinco para as nove, provavelmente. Sigo meu caminho. De imediato, imagino que seja o trânsito na via expressa, agravado por um acidente, quem sabe. Mas essa interpretação é tola e logo se dissipa: não buzinas, buzinaço. Coisa muito diferente. Só pode ser futebol, percebo, corrigindo-me. Lembro de uma notícia lida pela manhã: é noite de jogo da França e os autóctones estão exasperados, temerosos de ficar fora da Copa. Está esclarecido o mistério, julgo, e me engano novamente. Prossegue a barulheira. Estremeço como Proust (com o perdão do paralelo) estremeceu ao sentir o pavimento irregular da rua e ser atirado em memórias de Veneza e Balbec. Quanto a mim, é como se estivesse diante de uma UERJ da vida. Em noite de gala.
Por um momento, me perco da realidade. Faltando dois para as nove, sou despertado por um berro agudo. Percebo que já subo a rampa da estação e uma motoca com dois molecotes vem descendo bem rápido e em ziguezague. O berro é da buzina, desagradável mas ridícula, descontado o risco de atropelamento. Salto de lado, desejando secretamente esticar a pasta para causar um acidente. Deve ser o mesmo desejo secreto da pequena senhora que, poucos passos atrás de mim, também dá um pulo e dirige à motoca um palavrão. Já vão longe os meninos, empunhando uma bandeira que, no escuro, não consigo divisar.
Uma tela azul informa que o próximo trem só chega às nove e quinze. Suspiros meus e de quem mais tenha visto a informação. Desço as escadas e conto, por falta do que fazer, os gatos-pingados que esperam sob a luz tíbia das lâmpadas parcas. São 21; mas sou mais um, não posso esquecer de contar a mim mesmo: somos 22. Segue o buzinaço. Os franceses, imagino, vão animados para o Stade de France . Nove e cinco.
Além do alambrado, escuto mais berros. Posso enxergar uma pequena multidão à distância e logo concluo que é mais gente a caminho do estádio. Surpreende-me, porém, o mantra entoado: nada de “Allez les bleus!”, mas algo diferente. Impossível decifrar, com a concorrência de um trem que passa vazio. Passa ao meu lado um menino, doze anos talvez, vestindo uma camiseta branca, com um escudo verde. Reconheço a bandeira da Argélia. Apuro o ouvido e consigo distinguir as palavras do canto: One, two, three! Vive l’Algérie! Uma rima bilíngüe, coisas da globalização, e de autoria de um povo que fala ainda um terceiro idioma. Nove e dez, o frio já trinca a minha mandíbula, o barulho dos torcedores embandeirados vai se aproximando. Seria então um França x Argélia? Seria no Stade de France? Nesse caso, que coragem demonstram os magrebinos. Vão atravessar a cidade torcendo contra o mandante! Ali no subúrbio, onde os conjuntos habitacionais escondem e contêm os tons de pele e as línguas menos estimados no país, eles estão seguros, diria mesmo que estão em casa. Mas no centro da capital, sabem os deuses o que pode suceder.
São nove e dez. O garoto uniformizado está mais uma vez por perto. Peço licença e pergunto com quem a Argélia vai jogar. Ele me encara como se eu viesse de cair da lua. Em poucas palavras, ele explica: já jogou, já ganhou, está na Copa e nós vamos comemorar em Saint Michel. Eu também me sinto como um alienígena. Parabenizo o rapaz e desejo sorte no Mundial. Meu inconsciente, enquanto isso, divide-se em duas ponderações. O menino fala um francês perfeito. Ele é francês. Certamente nasceu por aqui. Mas está identificado é com o país de seus ancestrais, como toda aquela multidão que vai se aproximando da estação, cada vez mais barulhenta.
Rumo a Saint Michel, a praça apinhada de turistas onde têm lugar todas as comemorações esportivas da cidade. Como quando os bleus ganharam da Nova Zelândia no rúgbi ou, hélas, do Brasil no futebol. Esta noite, outro país fará sua celebração de vitória, no coração da antiga capital imperial, diante da fonte onde o Arcanjo degola o dragão. Sabem os deuses, ainda, o que pode acontecer. Ponho-me a especular se não haveria um certo fundo político, de cunho étnico, histórico, sei lá eu, nessa manifestação esportiva. Pode ser. Mas certamente não para o menino afogueado e imberbe que se posta à minha frente. Tento parecer simpático e explico que não acompanho muito, na verdade quase nada, do futebol europeu ou, no caso, africano. Por outro lado, e a despeito de um amortecimento em mantas e cachecóis, também estou num espírito futebolístico. Meu time joga hoje, estou apreensivo, e ainda por cima o jogo cai no meio da madrugada, em função do fuso horário. O garoto não quer saber, está provavelmente incomodado por aquele sujeito – talvez até eu lhe apareça como um velho – que puxa assunto assim, sem mais, na plataforma do trem.
Ele não está para confraternizações. Não com brasileiros, ao menos. São nove e doze, o one-two-three já desce os degraus para tomar o trem que passa em três minutos. Mais uma vez, sinto como se fosse a estação Maracanã, aquela massa humana magnificada pelo próprio número, estapeando os painéis publicitários como se fossem tambores e provocando os poucos que permanecem alheios, fingindo ignorá-los. Nada no muito é mais importante do que o destino daquela equipe, é o que crêem os argelinos, como creram e seguirão crendo todos os torcedores em todos os tempos. Reis e generais não fazem a história, mas centroavantes e arqueiros. Acho curioso como eles falam em francês entre si, sem sotaque algum, afora as gírias do subúrbio. Estranha situação, penso. Estar ligado a uma terra pelo corpo e a outra pela alma. O imperialismo deixa suas chagas, não apenas nas colônias, mas na própria metrópole. Clemenceau dificilmente terá imaginado que um dia a juventude argelina tomaria de assalto a praça de Saint Michel. Pois é o que farão, esta noite, os netos e bisnetos de um povo que, naquele tempo, nada mais era do que carne para moer na luta contra o Kaiser.
Chega a composição às nove e quinze, numa surpreendente pontualidade. Os torcedores fazem também o trem de tambor. Pá Pá Pá! Os passageiros se assustam. O canto ainda é o mesmo: one-two-three, vive l’Algérie! Não sem um certo desprezo bairrista, concluo que o brasileiro é muito mais criativo, cheio de cantos diferentes, alguns brilhantes, outros dementes, incitando uma violência tão à toa quanto um jornal esportivo. Procuro um vagão com menos bandeiras e apitos, na esperança de viajar sentado. Qual. Sou obrigado a seguir em pé e o trem ainda vai lento, suponho que por causa dos torcedores, talvez se pendurando para fora ou qualquer coisa dessas que torcedores fazem, como sabemos. Na primeira parada, nove e vinte, entra uma moça de xador e bandeirola na mão. Ela agitará seu brinquedinho timidamente. Não deve ter o hábito do futebol.
Mais alguns minutos e estamos na estação central, onde vamos nos separar. Sigo ao norte, eles ao sul, rumo ao grande objetivo estratégico, a praça Saint Michel. Consigo descer mais rápido e avanço na direção das catracas e da esteira rolante. Nove e vinte e quatro, ouço à distância a aritmética anglo-saxã dos argelinos, felizes da vida. Mas já nada tenho com eles, ou pelo menos é o que creio.
Mais veloz que eu, chega à esteira rolante uma pequena companhia de policiais. São sete. Caminham bem à minha frente. Como de hábito, ponho-me a considerar sua aparência ameaçadora. Todos grandes, fortes como colheitadeiras, com suas jaquetas e calças negras, estofadas para aumentar a impressão de musculatura. Nada que lembre os tradicionais e simpáticos uniformes da política francesa. São todos muito brancos e nenhum parece interessado na vitória da Argélia. Cabeças raspadas debaixo das boinas também negras e um cinto de utilidades à la Batman, com pistola, lanterna e um mostruário de bugigangas que não sei identificar. Com seus coturnos de sola grossa, são todos muito altos, e cada passo ribomba pelo subterrâneo. Quem passa no sentido oposto espia discretamente, com uma certa perplexidade e um grande receio de encarar diretamente aqueles agentes da, como se diz, ordem. Alguns olhares também se dirigem para mim. Esses deixam entrever uma certa pena, como se imaginassem que estou sendo detido.
Aquelas figuras, com seus cassetetes, suas luvas, suas algemas, também me incomodam. Espero poder me afastar deles assim que termine a esteira. Mas, para minha grande decepção, eles tomam o mesmo túnel que eu, sobem os mesmos degraus. Esmagam a escada rolante como se a quisessem escangalhar. Nem imagino de onde vem esse ódio. Nove e vinte e oito, estamos todos, os policiais e eu, na mesma plataforma do metrô. O que querem aqui? Para onde vão? E por que sete, cáspite?
A resposta aparece espontaneamente às nove e meia em ponto. Do outro lado, uma vibração abafada parece vir do túnel. Ela cresce e se transforma num som conhecido: one-two-three, vive l’Algérie. Em poucos instantes, a plataforma oposta está inundada de jovens em verde e branco, empunhando as bandeiras com o crescente – uma delas enorme –, pulando como crianças e fazendo desta vez as máquinas de refrigerante de tambores, que denunciam a falta de ritmo. (Nisso os brasileiros também somos melhores.) Notável, me dizem meus botões, como as torcidas se parecem no mundo inteiro.
Ao mesmo tempo, minha visão periférica capta um movimento rápido. São os policiais, que afastam os viajantes sem grande gentileza e se perfilam diante dos trilhos, olhos petrificados e fixos na pequena multidão festiva. Espinhas retesadas, todos. Alguns cruzam os braços, outros apóiam os punhos na cintura. O que para mim era uma torcida, para eles é um bando de baderneiros, pelo visto. Mas os baderneiros não dão bola para a posição de ataque dos predadores, separados da enorme presa por uma vala eletrificada. A festa continua, a cantoria, a barulheira. O poder de dissuasão dos mamutes públicos é nula diante do contentamento magrebino.
É nove e trinta e três quando chega o metrô para os torcedores e demais passageiros na direção contrária à minha. Eles embarcam sem conceder um mínimo olhar às hostes da repressão e da ordem, aos sete bravos touros que não deixam de encará-los, mesmo quando as portas se fecham. Não há contato, não há comunicação. A disparidade das emoções e intenções é tão radical que encerra os dois grupos em universos isolados. Ainda bem, concluo. Provocações de parte a parte não poderiam terminar bem.
Restabelecido o silêncio na estação, penso que os policiais vão retomar sua conversa ali mesmo. Qual nada. Mal partiu o trem, nove e trinta e cinco, o mais velho e provavelmente mais graduado dá um tapa ligeiro no ombro de um outro e sentencia: “pronto, podemos ir”. Como se abrissem uma comporta, todos relaxam. Os rostos de pedra se tornam milagrosamente humanos. Contando piadas e trocando receitas, eles viram as costas e partem, de volta para casa ou para o quartel – ou ambos, por que não? Eles estavam ali com o fito único de se revelar em ameaça diante da multidão de argelinos. Nada mais. Exercida a pressão, missão cumprida. Todos os presentes vão se lembrar de que, afinal de contas, não estamos seguros coisa nenhuma.
Finalmente, tudo está tranqüilo. Sem tambores, sem rimas bilíngües, sem tropa de choque. Reflexivo e algo entristecido, tomo o metrô às nove e trinta e seis. Às nove e quarenta, estou caminhando para casa. Não me encontro mais no subúrbio, mas ainda muitos carros passam na avenida como bandeiras alviverdes, crescentes, buzinaços, one-two-three e Yallah, yallah. Esfomeado e morto de frio, aperto o passo, mas só tenho um pensamento: oxalá a polícia não invente de ir à praça Saint Michel.
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