crônica, frança, futebol, história, ironia, passado, prosa, Rio de Janeiro, romário, saudade, São Paulo, tempo, vida

Aderindo à indiscrição

<!– @page { size: 21cm 29.7cm; margin: 2cm } P { margin-bottom: 0.21cm } –>

Cheguei a crer que os memes tivessem saído de moda, finalmente. Mas eis que aparece esse das seis coisas quase secretas (e, em geral, bastante genéricas) sobre si mesmo, e me vejo convidado a participar pelo Catatau. Ora, o Catatau é blogueiro obrigatório para qualquer internauta que tenha alguma coisa entre as orelhas. Ou seja, não sou muito de memes, mas quando vem um de alguém com a qualificação que acabo de dar, ai daquele que esnoba a convocação. Além do quê, este é um dos poucos que já recebi a deixar uma abertura para algo mais do que uma lista banal de trivialidades que, em tempos menos espetacularizados (Tutty Vasquez diria que é “evasão de privacidade”…), não teriam interesse para ninguém.

Portanto, agora que encontrei boas desculpas para fazer o de sempre, ou seja, burlar meus próprios princípios, parto para pensar nas tais seis coisas genéricas, quer dizer, secretas. Deixo só mais uma rabugice: elas bem poderiam ser cinco ou sete; a fascinação de nosso tempo pelas listas rigidamente numeradas é coisa em que penso bastante, mas não consigo entender de jeito nenhum. Se ao final deste texto só tiverem sido mencionadas quatro, ou mesmo três coisas, honorável internauta-san, não estranhe. É só para ser do contra, uma mania minha que, de secreta, nada tem.

Começo, então, com minha maior mácula. Um dado sobre mim de que eu mesmo, vez por outra, me pego duvidando. Um absurdo que não sei como foi ter lugar. Pois bem: a verdade é que eu sou diplomado em Economia. Sim, estudei taxas marginais de substituição, curvas IS-LM, caixas de Edgeworth, o ótimo de Pareto e toda aquela velha conversa fiada sobre o indivíduo racional de preferências transitivas. Entretanto, estudar é uma coisa e aprender é outra. Apesar de dois anos enfiado em econometria, não saberei o que fazer se me colocarem diante de um E-views, programinha graças ao qual o economista pensa ter as mesmas qualificações matemáticas de um engenheiro, coitado. Enfim!, economista, é como sou obrigado a preencher no campo profissional de qualquer formulário. É minha pena a pagar. Se bem que talvez o pior de tudo seja quando alguém, por intermédio de algum amigo da onça bem intencionado, descobre em que faculdade estudei e, por associação, pensa que cursei Administração de Empresas. O, la honte! Sei bem que há algo muito errado comigo, mas vamos com calma…

Agora, uma anedota futebolística. Em criança, eu vivia num bairreco chamado Vila Suzana, lá para depois do Morumbi, onde hoje os espigões fazem competição, mas vinte anos atrás não havia nada além do que as sobras da Mata Atlântica. Ou melhor, quase nada. Tinha uma escola, um condomínio e um estádio de futebol. A conseqüência é que, na infância, fui um autêntico são-paulino, quer dizer, quase autêntico, sabe como é. Enfim fui perder o interesse pelo tricolor paulista quando, aos 13 anos, fui pela primeira vez ao Maracanã. Foi um Fla-Flu daqueles, que me fez entender até que ponto o futebol pode envolver elementos telúricos e inconscientes, muito além do estéril “quem ganhou de quem”. Em campo, Romário e Sávio de um lado, Renato Gaúcho e Luiz Henrique do outro. Mas quem decidiu a parada com dois gols foi um cracaço de 45 minutos chamado Rogerinho (quem?!). Não era final de campeonato, nem nada. Aliás, a final daquele ano seria outro Fla-Flu, por sinal um dos jogos mais emocionantes de todos os tempos, mas eu não estava presente por motivo de superstição na família. Nem foi o jogo em si que determinou meu futuro de torcedor. Foram as arquibancadas. Pela primeira vez na vida, entendi que torcedor poderia fazer algo mais do que mascar amendoim e mandar o adversário “chupar”. Quem me conhece há poucos anos provavelmente nem sabe disso, mas meus primeiros colegas de faculdade (sim, em Economia) ainda podiam me ver, vezenquando, com uma velha camisa do São Paulo. Quando rasgou, não me preocupei em comprar outra.

Terceiro fato que deveria ser secreto, mas vem à tona, desta vez inspirado pelas confissões de Pierre Bayard. Admito que sou um pós-graduando em Filosofia que jamais leu 1) a Crítica da Razão Pura, de Kant; 2) a Fenomenologia do Espírito, de Hegel; 3) O Mundo Como Vontade e Representação, de Schopenhauer; 4) Ser e Tempo, de Heidegger: 5) O Ser e o Nada, de Sartre, embora tenha lido outros textos de todos os citados. Três dessas obras estão pegando poeira na minha estante, à espera de algumas férias em que eu quebre a perna ou coisa parecida. (Enquanto isso, li It de Stephen King e Esfera, de Michael Crichton.) Não que isso me impeça de ser pernóstico a ponto de concordar ou discordar das teses de todos esses grandes mitos da filosofia ocidental. E inda faço discursos, explico para “leigos” interessados, respondo a objeções e assim por diante. Quando o encadeamento de um argumento me falta e acabo gaguejando, não faz mal: ponho a culpa na necessidade de traduzir conceitos que aprendi originalmente em francês. Nessa, eu me saio como alguém muito, mas muito chique. É que uma parte do treinamento nas faculdades de filosofia consiste em aprender a fingir que entende determinados assuntos. Mais ou menos como a gente aprende na faculdade de economia, com a diferença de que o filósofo não precisa invocar números sem sentido e, mesmo assim, convence mais. Mistérios da retórica…

Aproveitando que entramos por essa senda, um outro segredo é que não terminei o curso da Sorbonne. Depois de dois anos, fiz prestarem para algo meus créditos de Economia e pulei para a pós em Nanterre. Talvez o tempo restante do curso, que perdi, fosse dedicado justamente ao estudo dos livros que mencionei no tópico anterior. Mas duvido muito. O mais provável é que os professores continuassem preocupados em formatar seus estudantes para produzir dissertações e comentários de texto na mais perfeita “méthode française”. Como eu quero mais é que esse maldito método vá pelos ares, achei melhor pular fora. Isso significa que nunca vou poder pendurar um diploma da Sorbonne na parede. Mas isso nem é tão grave, considerando meu prazer mesquinho de deixar arestas por aparar, a ponto de responder com míseros quatro tópicos a uma proposta que explicitamente exigia seis.

PS: Se eu pensar em mais alguma coisa, atualizo o texto ou adiciono na caixa de comentários.

Padrão
abril, costumes, crônica, descoberta, escultura, Estocolmo, férias, Florença, flores, folhas, fotografia, frança, história, imagens, inglês, modernidade, opinião, paris, passeio, praça, primavera, prosa, reflexão, Suécia, tempo, verão, viagem, vida

Ainda mais ao norte

Carl Xiii
Nenhum dia na Suécia é igual ao anterior. Tão violenta é a variação das horas de luz e trevas, que os suecos não conseguem conter o comichão de comentar o assunto, quando a curva da primavera vai se tornando mais e mais aguda: “nesta época”, eles informam, cúmplices de contentamento, “são cinco minutos de sol a mais por dia”. E o dado confere com o que aprendemos na véspera.

Não sei quem foi que convencionou as datas que marcam a virada das estações, seguindo os solstícios e equinócios. É provável que tenha sido a academia de ciências da França, como sempre, no mesmo golpe em que foram inventados o metro, o quilo e todo o resto das medidas rigidamente decimais, às quais só os anglo-saxões ainda tentam resistir. Em todo caso, certamente não foram os suecos. O dia se equipara em duração à noite na penúltima semana de março; na última, tem início o horário de verão. Mas é final de abril e não há sinal de verão em Estocolmo. Difícil topar com uma árvore já pontilhada de brotinhos de folhas. Enquanto em Paris as sakura já murcham e passam do rosa ao verde, na Escandinávia ainda abrem os primeiros botões de cerejeira.

Os cariocas dizem que o Rio de Janeiro conta com só duas estações: verão e inferno. Piada antiga. Na Suécia, pode-se dizer algo parecido: há o inverno, inferno oposto ao fluminense, e o “não-inverno”. Em julho, o termômetro eventualmente bate nos trinta e os nórdicos derretem. Hoje, domingo, primeiro dia no ano com céu em puro azul, temperatura positiva já ao amanhecer e mais de dez graus no princípio da tarde. A cidade inteira se lança à rua, redescobrindo os territórios que deixou vazios desde setembro. Coisa linda de se ver. Para nós, é muito frio, mas eles aproveitam para deixar braços e pernas finalmente nus. Não os pescoços, cabe alertar: só um louco sairia sem cachecol antes de maio, arriscando uma pneumonia que o deixe prostrado na cama por todo o verão. Nem pensar.

Pergunte a um sueco como ele consegue viver num lugar coberto de neve de setembro até abril. Faça isso a título de experimento antropológico. Há aqueles, com alma de esquimó, que consideram insuportável de tão quente o inverno de outros países europeus, como a Alemanha. Mas é minoria. Há boas chances de que a resposta seja um suspiro, seguido da confissão: “não sei”. Muitos têm o sonho de se mudar para um país mais ameno, para não dizer quente. Alguns citam a Jamaica, porque é tropical e fala-se inglês. E todo sueco é fluente em inglês, com uma pronúncia muito mais agradável do que a dos nativos, sejam britânicos, americanos, australianos, indianos… Ao final de outra pausa, longa e melancólica, o entrevistado responderá em tom de profecia, mais do que de descoberta: “Suporto o inverno para esperar o verão”.

Concluo que o frio extremo é, antes de mais nada, um grande aprendizado. Com a sucessão dos anos, a espera pia por um verão curto e apenas fresco ensina os jovens a se tornarem pacientes. Talvez isso explique o nível de civilização do país e do povo. A Suécia é tudo que dela se diz. ônibus não atrasam, lixo nas ruas é lenda das terras bárbaras ao sul (e praticamente o mundo inteiro está ao sul), mendigo é coisa do passado. Covardia comparar a Suécia à França. A falta de educação parisiense, o mau humor, a frieza, a empáfia, tudo isso passa longe de Estocolmo. Ou seja, aqueles que atribuem ao frio a nuvem negra sobre as cabeças francesas estão apenas muito enganados. Os fatos indicam coisa bem diversa. Aqui, transeuntes sorriem quando abordados, comerciantes são solícitos e dão informações, ninguém se compraz em destratar os outros. Para quem vive no meio de gauleses, conviver com os temíveis vikings é um alívio.

Uma palavra sobre a capital: Estocolmo é a cidade mais linda da Europa, pelo menos entre as que conheço. Uma pena que só se possa vê-la em todo seu esplendor a partir de maio, até setembro no máximo. Fora dessa janela, não bastassem a escuridão e o frio, muita coisa nem abre. Mas quando há luz, não existe delícia maior do que bordejar a linha d’água, entre pessoas tranqüilas sobre suas bicicletas, sem multidões, sem turistas berrando, sem excursões de japoneses, americanos e brasileiros.

Posso ofender muitas sensibilidades ao dizer que Estocolmo é mais bela do que Paris, Roma, Florença, Praga. Não é culpa minha. Na comparação, as cidades italianas não dão nem para o começo. Fora os museus e monumentos, são mais sujas do que o aterro de Gramacho. Praga poderia rivalizar, mas perde pelo tamanho e porque o adversário é mesmo muito difícil. Quanto a Paris, a incensada, é mesmo muito bela, mas cansa rápido. De sua arquitetura toda haussmannienne, cinzenta e retilínea, resulta uma cidade monótona, monocromática, monocórdia. Estocolmo é colorida, espalhada, ampla. Sua arquitetura é imaginativa, sabe misturar diferentes épocas e escolas, quase sempre sem ruído. Belíssima cidade, repito.

Mas este é apenas um texto introdutório. Lanço aqui uma seqüência quase desconexa de primeiras impressões. Coisas assim são o que vi na capital gostosa de um país nórdico desde que cheguei, dois dias atrás. Mas há muito a dizer nas próximas crônicas, se a internet parar de me pregar peças.

Padrão
Brasil, costumes, crônica, descoberta, futebol, história, ironia, opinião, prosa, reflexão, tempo, vida

Pé-frio, abnegado e feliz

Brilho+na+cabe%C3%A7a

Ontem à noite, telefonei para meu colega Diego de Oliveira com a intenção de provocá-lo. Trata-se de um amigo brasileiro, interessante sobretudo por suas contradições: é, ao mesmo tempo, carioca e paulista, capitalista e socialista (como a China?), economista e artista, roqueiro e sambista. Vá entender a figura! Acho que a única cláusula pétrea em sua constituição é sua paixão irracional pelo Fluminense. Tão irracional que ele é capaz de todo tipo de sandice pelo seu clube do coração. Senão, vejamos:
Perguntei-lhe, por telefone, se pretendia varar a noite para acompanhar, pelo rádio, a final da Copa do Brasil contra o Figueirense, em Florianópolis. Com uma dificuldade enorme, até engraçada, de manter a voz estável, ele respondeu que não. “Como não?”, retorqui. “Não é todo dia que o seu time chega a uma final! O que é varar uma noite, tendo a oportunidade de ver um título inédito? Você vai desperdiçar isso, só porque precisa acordar cedo e ir trabalhar?”
“Não é isso”, ele respondeu, algo vexado. “É claro que eu passaria a noite inteira ouvindo o jogo via internet… mas não posso.” Pensei que a culpa fosse de sua conexão, que estivesse falhando. Não. Pensei que ele não fosse, por algum motivo, dormir em casa. Tampouco. A explicação, quando o rapaz finalmente cedeu às minhas pressões, me levou às gargalhadas. “É que, pelo rádio, sabe como é… Eu sou muito pé-frio!”
Ele se ofendeu com minhas risadas e, como todo supersticioso, desenvolveu uma argumentação estatística para provar como, de fato, seria perigosíssimo para seu time se ele colocasse os fones no ouvido e se conectasse à Tupi, à Globo, à Nacional, à CBN. Trouxe à baila outros jogos que acompanhou. Traumas, desclassificações, títulos perdidos, gols espíritas. Uma evidência, no seu entender, ainda mais forte: esses gols costumam acontecer logo depois que ele se conecta. Que tragédia! Sinistro, muito sinistro, diria Januário de Oliveira.
Por outro lado, Diego já se manteve afastado das tentações radiofônicas em outras ocasiões. Sucesso: belas vitórias, goleadas, gols mágicos, títulos. “É o óbvio ululante”, ele exclama, citando o ídolo maior da literatura tricolor, Nelson Rodrigues. Esse Diego, trata-se de um pé-frio dos piores. O Fluminense deveria pagar alguém para amarrar os braços de seu torcedor, cada vez que ele tente acompanhar uma partida.
É uma maldição. Uma sina. Seu destino é ficar nervoso, em silêncio, esperando que se esgotem as quase duas horas de duração de um jogo para, finalmente, ficar sabendo apenas do resultado e acompanhar os melhores momentos. Ter a sorte de seu clube, e dos demais 10 milhões de torcedores, entre as mãos, é uma responsabilidade que poucos conseguiriam suportar. Mesmo à distância, separado de seu Tricolor por um oceano enorme, só Diego é que decidirá o título, mais do que Renato Gaúcho, Roger, Thiago Neves ou Carlos Alberto. O auto-controle de um jovem exilado conta mais para uma conquista do que os treinamentos nas Laranjeiras ou as contratações.
Muito bem, então. É sorte do Fluminense que seu torcedor mais decisivo seja um abnegado. Como eu disse, é alguém que faria qualquer sandice pelo seu clube. Não, claro, como alguns malucos que viajam o país inteiro atrás de um time. Pelo contrário. O maior ato de amor de Diego é não ver, nem ao menos escutar as partidas.
Acontece que, esta manhã, encontrei o dito-cujo no corredor. Cambaleava, pobre diabo, com sua camisa um pouco amassada deixando entrever, por debaixo da gola, o uniforme listado nas três cores de seu time, traduzindo tradição. Tinha olheiras do tamanho de castanhas e um sorriso de cãibras. Quando deu por mim, veio me abraçar como se faz no Brasil – mas aqui, pega um pouco mal. Sua aparência exterior não me enganou: ele não pregara o olho.
“Então você ficou acordado! Não resistiu ao encanto da partida? Irresponsável! Quase pôs o Fluzão a perder!”
Ele sacudiu a cabeça. “Não acompanhei o jogo… mas estou louco de felicidade! É campeão!”
Como se eu acreditasse. “E essas olheiras? Acha que me engana?”
“Estou falando sério. Não vi o jogo, mas também não consegui dormir. Fiquei a madrugada inteira acordado, deitado na cama, olhando para o teto. É um desespero. Você não supõe como é terrível! Saber que a bola está rolando e você não pode acompanhar. Estamos ganhando? Estamos perdendo? É redenção ou humilhação? Impossível dormir. Só levantei quando, quase às cinco da manhã, meu pai me telefonou para dar a notícia.”
E repetia: “É campeão, é campeão, é campeão…” Para ser honesto, essas manifestações de alegria futebolística me irritam um pouco. Dei os parabéns, que sou bem-educado, e me afastei. Superstição tem limites… ou não tem? Talvez o futebol seja o exato domínio em que nossa fé no oculto se liberta. Tudo bem, Diego, eu compreendo seu parafuso a menos.
Ele, a esta hora, deve estar adormecido, com a cabeça sobre o tampo de sua mesa. Mas é merecido. Ele dorme o sono dos campeões e dos malucos. E hoje, em particular, ele é ambos.
Padrão