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Nos jardins, as cerejeiras

Três cerejeiras
Existem polianas – e polianos – para tudo neste mundo. São sensibilidades capazes de encontrar alegria em qualquer coisa. É o caso da gente que aponta belezas específicas a cada estação do ano, dizendo que todas podem ser fruídas e amadas, cada uma à sua maneira. É, digamos, quase verdade. Mas uma verdade mitigada pelo fato de que o verão queima, a primavera engana com suas temperaturas imprevisíveis, o outono anuncia o inverno naquelas folhas coloridas, e o inverno, ora…

Admito que uma paisagem campestre coberta de neve dá uma belíssima imagem para quebra-cabeças de 2000 peças, ao menos nas poucas horas em que a luminosidade é suficiente para o obturador da câmera. Mas, sem mencionar a penumbra, a neve de verdade, concreta e muito empírica, não é nada disso. Fica suja ao se misturar com a lama, é viscosa quando derrete, escorrega e causa acidentes. Muito bonita quando cai. Depois, um Deus nos acuda.

Aqui em Paris, quase nunca há neve. Dizem que caiu um pouco há dois anos (eu não vi). De sorte que qualquer elogio à beleza do inverno deve excluir esta célebre cidade. Entre novembro e março, Paris é feia, cinzenta, carrancuda e ainda mais suja do que de hábito. É a estação chuvosa, quando as paredes se tornam pegajosas e recendem a cinza de cigarro barato. A ausência do que de verde há na vegetação desnuda a monotonia cromática sufocante das fachadas, na cidade que deveria ser toda luz. À exceção dos turistas brasileiros, ninguém é feliz; as mordidas e os rosnados recíprocos se multiplicam. Sair à rua torna-se algo a evitar. Em poucas palavras, são meses passados na toca.

Foi por isso que escolhi cerejeiras para ilustrar este texto rabugento. Três delas. E lanço-me à tese: não há melhor augúrio do que a chegada das cerejeiras. Ainda é março, as flores e folhas só virão em abril, mas já, ladeando os galhos eriçados dos plátanos, estão elas, as cerejeiras, rompendo em flores rosadas. É um alívio, muito mais do que uma festa para os olhos. Em si, a beleza pouco diz: há cerejeiras também no Brasil, mas elas não se destacam, ficam humildes no meio dos ipês, manacás e damas-da-noite. Em março, dar com uma cerejeira em flor em Paris é como atracar no cais após a tempestade. É o mesmo efeito, sobre os músculos como sobre o espírito.

Se me fosse dado mudar algo no texto de “O Cerejal”, de Tchekhov (seria um sacrilégio, já sei), eu apenas inverteria a ordem das estações: a ação começaria em agosto e terminaria em abril, as árvores sendo postas abaixo em pleno ápice da exuberância, quando respondem por toda a alegria dos russos a cinco graus negativos. Mas isso talvez fosse terrível demais para o público moscovita, soaria, imagino, um tanto melodramático. Vai ver, foi por isso que o autor escolheu a ordem como está, com o desmatamento às portas do inverno: nem o mais bruto dos mujiques enriquecidos derrubaria cerejeiras em flor. É certamente o que ele pensou.

Sobre a concretude dos dados: consta que as cerejeiras vieram do Japão. Não tem dúvida disso a senhorinha que, tendo visto um rapaz pacato a fotografar árvores, postou-se ao meu lado e comentou: “Como são sublimes, as cerejeiras japonesas!” Concordei e sorri para suas costas encurvadas, seu manto de lã grossa, sua cabeleira rala e opaca. Uma dessas nonagenárias que circulam por Paris sem receio algum, e hão de continuar com seus passeios enquanto tiverem pernas. Pois ela, que já viu tanta cerejeira florindo, na guerra como na paz, ainda se admira das flores. Como eu.

Corrigindo a informação: apenas as cerejeiras ornamentais são importadas da terra do sol nascente. As frutíferas são daqui mesmo. Pois as cerejeiras japonesas, em sua pátria, chamam-se Sakura e simbolizam a beleza efêmera de nada menos do que a vida em si. Os policiais e o exército usam a flor da cerejeira como símbolo, como faziam os pilotos kamikaze, de quem se esperava que reencarnassem como Sakura. É também o título de uma canção tão monótona que vence qualquer samurai pelo sono. Sakura, as árvores que enfeitam a primavera nos jardins do imperador, como a enfeitam em meus bulevares.

Devo confessar que tirar prazer da vista de uma aléia florida me faz sentir como um autêntico capiau. Das cerejeiras, diria o cínico, devemos tirar apenas cerejas (não das Sakura, que, como vimos, são ornamentais). Mas o cínico esquece que todas as cerejas que comi na vida vieram da feira ou do supermercado. Somos civilizados, tudo está ao alcance da mão, a um clique ou um telefonema de distância. Não é o caso de desesperar com o inverno e se apaixonar pelas cerejeiras. Mas, fazer o quê, é assim. Estamos chegando perto, mas ainda não aniquilamos a natureza em todas as frentes.

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Um vício é um vício

Caneca
Ouvi dizer que parar de fumar é muito difícil. Não sei, jamais fui fumante. Comprar cigarro, observe, nada mais é do que transformar dinheiro em fumaça. Sem falar no cheiro que impregna as roupas e os ambientes, a tosse, o câncer. Fico imaginando o desespero de tantos colegas durante uma longa palestra da qual não se pode sair para aliviar o vício, e a idéia me parece, menos que triste, engraçada.

Existem outros vícios, sim. Eu não poderia escapar de todos. Está para nascer o homem que vive sem obedecer a alguma substância, impulso ou idéia. Mas estou livre dos principais, acredito. Ao menos, dos mais perigosos. Não consumo químicos ilegais. Minha relação com o álcool é plenamente gustatória. Que culpa tenho, se há uma variedade tão grande de bebidas com valor gastronômico? Sói prová-las o mais rápido possível. E eu as provo. Não a ponto de ser alcoólatra, por favor.

Há um vício, porém, de que não consigo me libertar, e sei que é mortal para o organismo. Uma substância cheirosa, líquida, negra e quente. Uma frutinha vermelha que enriqueceu muito latifundiário brasileiro. Vendida para o mundo inteiro, torrada e moída, fervida e coada, servida no desjejum ou após as refeições. Pelos céus, eu admito, não consigo passar o dia sem tomar café.

Começou quando decidi que deveria escrever sem parar. Foi, digamos, uma decisão leviana de juventude. Acreditei que pudesse ser um desses autores que se debruçam sobre o teclado na hora do almoço e só se levantam para o café-da-manhã (com trocadilho). Horários definidos por e para outras pessoas, porque, com esses artistas geniais e incompreendidos, a comida serve apenas para não cair doente sobre uma página incompleta. Esses abnegados não dão importância às coisas boas da vida. Não buscam prazeres, nem glórias. Querem apenas fazer sua literatura… e assim por diante.

Jamais consegui. Tentei por alguns dias, mas sempre ocorria uma dessas três coisas: 1) Algo me puxava de volta para o mundo exterior, um jogo de futebol, uma morena passando na janela, uma goteira pingando na cozinha. Qualquer coisa. 2) Eu me via sem assunto. Queria escrever, mas, bolas, sobre o quê? Com que palavras? Tentava escrever apenas frases, até que delas saísse algum tema. Não funcionava. Ou as frases eram ruins, ou o assunto era banal. 3) Eu tinha sono. Dormia na escrivaninha, acordava, dormia de novo. Escrever é algo muito chato, já aviso a quem quer começar. Ver televisão é mais interessante e, se dormimos, não sentimos culpa.

O café, insumo insidioso, ofereceu-se como solução. Prometia mil maravilhas. Que me deixaria acordado, alerta, esperto. Que faria de meu cérebro uma máquina incansável, sempre produzindo idéias, frases e imagens. Que eu me tornaria o mais produtivo dos homens, preenchendo laudas e laudas com letra miúda e nervosa. O café, mais do que as drogas, o álcool ou o tabaco, é o segredo dos grandes autores. Acreditei nessa história, caí no conto.

Não demorou para que ele se tornasse minha fonte principal de alimentação. No trabalho, eu afundava o dedo no botão da garrafa térmica. Duas, três vezes por dia. E todos comentavam. Cada colega preparava para si uma pequena xícara a cada manhã. Quanto a mim, era um copo cheio até a borda. Mais de uma vez, vi meu chefe meneando a cabeça, em negativa ressentida. À tarde, quando a garrafa estava vazia, eu quase me recusava a continuar prestando meus serviços. O que me impedia era o medo de ser mandado embora. Sabe como é a situação, a coisa não está fácil para ninguém.

Há anos, eu me arrasto para fora da cama, esbarro em todos os móveis, vou até a cozinha e, em gestos de cágado, preparo a cafeteira. Espalho-me no sofá, à espera, ainda sonhando, os olhos bem atados. Quando ouço o chiado da bebida pronta, não sei explicar o que se produz em mim. Desperto imediatamente e pulo sobre ela. Bebo tudo de uma vez, e só daí parte o dia. Minhas roupas cheiram a café. Meus lençóis, idem. Minha mulher, às vezes, tem insônia, apenas da essência que a roupa de cama exala. E olha que ela também é viciada, e já o era antes de nos conhecermos.

Parar parece impossível. Um dia sem café corresponde a um dia como morto-vivo preguiçoso, mais morto do que vivo. Não quero conversar, mal cumprimento as pessoas, a luz do sol me incomoda. Arrisco dizer que é como se nesse dia eu simplesmente não tenha sido. É um vão na minha existência, a negação da continuidade do tempo.

Pois bem. Há coisa de uma semana, decidimos, juntos, reduzir o consumo da bebida. No lugar das duas canecas diárias, uma xícara. Pois bem. Funcionou no primeiro dia. No segundo, fui acometido da dor de cabeça típica dos dias de pouco café. Resisti bravamente. Depois, vieram os dias cheios de aulas e trabalhos por entregar. Tomamos duas xícaras, cada um. Uma escorregadela, certamente. Mas nada que se compare às canecas transbordando de outrora.

Tenho suado. Tenho tido pesadelos. Não tenho conseguido manter o ritmo de leitura e estudos. Um vício é um vício. Mas hei de resistir. Mesmo se, hoje, algo tenha dado errado. Escrevo com a caneca amarela ao lado do computador, oferecendo-se como prova de meu fracasso. Mas hei de resistir. Parar de fumar, dizem, é bem mais difícil. E tem muita gente que consegue.

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