Quase deixei de ver Chega de Saudade por causa do título. “Filme sobre Bossa Nova…”, pensei. “De novo! Deve ser caça-níqueis!” Mas, como estava no pacote daquele velho festival, e como é da Laís Bodanzky, cujo talento já ficou provado com Bicho de Sete Cabeças, decidi entrar para ver. Conclusão: o título pode ter tudo a ver com a trama, mas arrisca afastar à toa, à toa o público cansado de filmes históricos aproveitadores. E seria uma lástima, porque Chega de Saudade confirma, reafirma e reitera a qualidade do cinema de sua diretora. Olho nela!
Logo na terceira ou quarta sequência, pude fazer uma constatação que me encheu de alegria (depois me perturbou, mas chegaremos a isso): o filme “tem linguagem”. É um prazer enorme acompanhar o trabalho de uma cineasta que sabe o que faz com a câmera. Dá uma espécie de confiança, porque estou entregando minha percepção e minha sensibilidade a um artista consciente, competente, capaz de fazer de seu instrumento de trabalho uma ferramenta de discurso estético, e não um simples registro de atores e cenários saracoteando na frente da objetiva.
Pois a câmera de Laís Bodanzky perscruta um espaço desconhecido (para nós); espia os rostos atrás de um convite para dançar; invade a intimidade das pessoas, sem que isso seja uma indiscrição. Afinal, são personagens, e o olhar é o de um espectador – melhor amigo de qualquer película. Esse é o cerne do que se costuma considerar como “ter linguagem” no cinema.
Mas não se pode esquecer de todo o resto: os cortes, a direção de atores, o ritmo da ação, o roteiro, os diálogos, a poesia dos desencontros humanos, a música que dá liga a todo esse leque de elementos. O que confere à obra seu poder, aliás, é justamente essa capacidade de articulação. No caso de Chega de Saudade, o resultado é um poema que requebra e balança, sem temor, entre a amargura e a esperança, lírico como O Idiota de Dostoievski e O Baile de Ettore Scola.
E é mesmo de baile que se trata. Chega de Saudade foi filmado no inconfundível salão do Traço de União, velho salão da Pompéia (ou seria Pompeia?), em São Paulo. Até alguns anos atrás, naquela construção antiga e maltratada, as gerações se encontravam para dançar ao ritmo de todas as épocas. Mas isso foi no tempo em que a Banda Glória ainda era uma delícia, não tinha se mudado para a Daslu do samba em que se apresenta hoje.
O salão do Traço de União é representado com uma fidelidade que só reconhece quem foi. Os frequentadores, idem, e mais um aspecto a louvar é a maquiagem fiel e desmistificadora nos rostos de atrizes que vemos, normalmente, através de um véu de beleza plástica. Betty Faria está formidável como a mulher desesperada por amor, oferecendo-se, implorando como criança por ser chamada para dançar. Tônia Carrero e Leonardo Villar fazem um casal irresistível, encantador na amargura de uma velhice que teimou em vir, contra todos os esforços. Menção honrosa, também, para Stepan Nercessian, Cássia Kiss e até Maria Flor, que melhorou muito desde o último filme em que a vi (ou será o dedo da diretora?).
A cultura da gafieira, tão coisa nossa, está magistralmente reproduzida no que tem de mais profundo e sutil: seu caráter de foro de encontros fugazes, onde cada um expõe os movimentos de seu corpo, grosseiros ou graciosos, por esporte ou simplesmente pelo deleite de balançar com a música. Mas não são só os corpos que se expõem, é claro: nunca são. Na multidão, a presença do outro é tão incontornável quanto as batidas dos pandeiros. Cada um, ali, está tão frágil e despido quanto os demais, no espírito e na mente; e estão frágeis e despidos justamente porque não podem guardar a postura reservada e sisuda dos corpos quando não estão dançando.
Golpe de mestre, no filme, foi ter chamado Elza Soares para cantar. E ela não usa o próprio nome: é uma dessas cantoras desconhecidas de gafieira, mesmo que o espectador, diante do rosto de Elza Soares, diante da voz inconfundível de Elza Soares, saiba que aquela é a grande cantora. Elza volta às raízes, e nós também. Analogamente, podemos dizer que todos ali estão nas raízes: o homem mais velho que se encanta com a menina, e ela que se encanta de volta. O conquistador que se faz de viúvo para atrair as mulheres. O dançarino formidável que não suporta ver toda aquela gente “apenas se divertindo” e o profissional atrá de uns trocados. Todos estão desarmados, o que faz deles personagens perfeitos para um filme tão sutilmente psicológico. A exceção à leveza fica por conta daqueles que precisam trabalhar; o contraste é tão gritante que um dos personagens chega ao cúmulo do ciúme.
É uma pena que, hoje, os diretores não possam fazer um filme a cada ano, como era antigamente. Eles não têm mais o direito de experimentar e errar. Com isso, os bons como Chega de Saudade, que são ótimos, mas não necessariamente geniais, aparecem como verdadeiras obras-primas. Seja como for, esta obra, somando-se ao Bicho de Sete Cabeças, firma Laís Bodanzky como uma das diretoras mais competentes do cinema brasileiro atual. Seria ótimo se ela pudesse produzir com mais regularidade.