Uma frase de Yanis Varoufakis grudou na minha cabeça logo no começo do ano, quando o Syriza venceu as eleições e o economista-motoqueiro se tornou ministro. Com o tom confiante que lhe é peculiar e uma linha de raciocínio que denuncia sua formação em teoria dos jogos, ele assegurou que, dentro de alguns meses, um acordo seria alcançado com a troika. Um acordo muito melhor do que o que estava na mesa, bem entendido – e obviamente infinitamente mais favorável aos gregos que o resultado final que agora conhecemos.
Como ele tinha tanta certeza? Os negociadores, dizia Varoufakis, estavam plenamente conscientes de que, se esse acordo não fosse alcançado, o governo do Syriza na Grécia cairia. E o próximo grupo – digamos assim – heterodoxo com que os credores europeus teriam que se sentar para negociar seria o Front National francês. É evidente que a democrática Europa não gostaria de correr o risco de ter um partido proto-fascista no poder de um de seus principais países, não? Um partido ultra-nacionalista, xenofóbico e, para horror da boa sociedade, ferrenhamente eurocético!
Essa declaração ficou ruminando na minha cabeça porque, desde o início, me pareceu um pouco ingênua. Quem garante a Varoufakis que essa abstrata entidade que (não) atende pelo nome de “troika” – e que agora tem sido chamada de “as instituições” – está mais disposta a aceitar um consórcio de grupos de esquerda nominalmente radical, mas na prática bastante moderado, do que um agrupamento de gente proto-fascista? O que a história tem a nos dizer sobre isso? Já adianto: o oposto. Com efeito, entrevistado pela revista New Statesman, Varoufakis revelou seu assombro com a despreocupação da aristocracia continental quanto à radicalização do ambiente político. Mas volto ao assunto mais abaixo.
Outra coisa: por que temos tanta facilidade em naturalizar, ou substancializar, uma idéia de democracia que, além de não corresponder a qualquer realidade, ainda por cima vai contra o próprio sentido da noção de democracia? Quero dizer: o que significa dizer que a Europa “é uma democracia”, ou os Estados Unidos, ou o Brasil, ou seja qual for o país? “Uma democracia” é alguma coisa que se possa simplesmente “ser”? Um país “nasce” democracia? Ou ganha um diploma de democracia quando passa em alguma espécie de vestibular?
Já que comecei a fazer perguntas, que tal fazer um monte de outras: um país pode ser “reprovado” nesse vestibular e não “ser” democracia… e nesse caso é o quê? O “outro” da democracia? E será tão óbvio assim que esse “outro da democracia” chama-se, sem mais, “ditadura”? O mundo se divide então entre aqueles que “são democracia” e aqueles que “são ditadura”, mais ou menos como a lua se divide entre lado claro e lado escuro, o lado dos amantes e o lado do Pink Floyd? E mais importante ainda: tudo que faz um país que “é uma democracia” é democrático? Por exemplo: um ataque militar, ou mesmo uma interferência econômica, de um país que “é uma democracia” contra um país que “é uma ditadura” é um gesto democrático?
Estamos tão condicionados a responder “sim” às primeiras perguntas que, se não prestarmos atenção, respondemos “sim” a todas. Mas também não estou propondo simplesmente sair respondendo “não” indiscriminadamente. O problema está no automatismo de tomarmos a democracia por dada, como se existisse uma série de leis da física ou normas legais que a fazem surgir e persistir na existência por conta própria. Esse automatismo nos cega para uma infinidade de dinâmicas que borbulham nos subterrâneos dos nossos sistemas políticos, ou então descartá-los como ameaças ao regime democrático ou acidentes que “fazem parte do jogo democrático”.
Tudo que levantei acima está interligado, bem mais do que parece à primeira vista. Pior: vai muito além das fronteiras de Grécia, de questões financeiras ou de regimes de governo. É por isso que tento vincular, de um lado, a relação entre poderes instaurados e oposições à direita ou à esquerda – que seus porta-vozes gostam de juntar, como se fossem a mesma coisa, debaixo do termo guarda-chuva “populismo” – e do outro o problema urgente e perturbador em torno do que somos capazes de enxergar como democracia… ou sua ausência.
O que segue abaixo é a tentativa de estabelecer esse vínculo.
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Acho que tu consegues captar boa parte da complexidade da situação, tanto é que é difícil apreender esse ensaio com uma única leitura.
Só uma coisa que percebi, e fiquei pensando, essa frase “Há muitas maneiras de seqüestrar a democracia sem instaurar uma democracia.” Não seria sem instaurar uma ditadura?
Valeu, Diego, em breve vou reler esse texto.
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Oi Delair, obrigado toque. Você tem razão, misturei as palavras. Agora está corrigido!
Abs
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