Mesmo que sigamos a narrativa dessa progressão de conquistas políticas e sociais, que são conquistas democráticas, o retrato que emerge da democracia é o de algo que está sempre um passo além da ordem instituída. O que significa que aquela esperança contida no sintagma “regime democrático” pode ser entendida como a esperança de que este seja um regime sempre disposto a dar mais um passo.
Acontece que tem um terceiro ponto: toda tendência implica contra-tendências. Afirmei acima que, a cada instante, cada componente do que entendemos como sendo um regime democrático está sob risco de ser confiscado por outra coisa – muitas vezes, um ou mais de seus próprios componentes. O que provoca essa, digamos assim, fragilidade sistêmica do edifício democrático é a mesma abertura para “um passo adiante” e a mesma permeabilidade que permite o exercício de força por quem está fora para incorporar-se à ordem de dentro. A tendência inspiradora que Marshall enxerga tem um lado sombrio que ele prefere não ver. O mesmo vale para todo mundo que insiste em falar de “valores ocidentais” como se eles caíssem do céu!
Assim como sempre pode ser forçada a incorporar aqueles que preferiria ter deixado de fora – como quando aprova uniões entre pessoas do mesmo sexo, revoga leis segregadoras e racistas, garante por meio de cotas o acesso dos subjugados a condições decentes de estudos e trabalho –, uma ordem maleável como a dos modernos regimes democráticos, sendo quebradiça e metaestável como é, também pode ser seqüestrada por interesses particulares, poderes totalizantes ou parcelas (pequenos grupos ou até indivíduos) que aprendem a dominar o sistema. Imagine, por exemplo, um país cujo parlamento seja comandado por alguém que sabe manobrar o regimento interno para sempre conseguir o que quer e que, aliado a grandes grupos econômicos e juízes corruptos, faz gato e sapato do resto do país. Terrível, não? Soa até inverossímil. Mas então semelhante país continua “sendo” uma democracia? Ou “deixou de ser” uma democracia? Mais uma vez, pergunta errada.
Se, como eu disse acima, o regime democrático tal como o conhecemos não “é” uma democracia, pelo menos podemos dizer, em sua defesa (antes que me venham dizer que estou atacando os regimes democráticos…), que se trata do único que, tal como acabou se constituindo – contra as intenções expressas de seus pais, como bem demonstrado por Lessa –, consegue enxergar a existência dos passos além dele, seja para “liberdade, justiça e abertura”, seja para o seqüestro particularista, sectário ou até mesmo tecnocrático.
Para aproveitar a definição de Rancière, segundo o qual a política é “a parte dos que não têm parte” – que é uma definição para a qual a política só é política de fato com ao menos um toque de democracia –, podemos dizer que o regime democrático é merecedor desse nome na medida em que a política ocorre, ou seja, o regime democrático mantém-se como tal na medida em que dele a política não é evacuada. Traduzindo: nos momentos em que quem “não tem parte” vislumbra a perspectiva de engendrar para si uma parte. Mas esses momentos são breves. São momentos de ruído e perturbação, como pólipos crescendo num tecido, ou como o flash de uma máquina fotográfica no meio da noite. O sequestro por quem “tem parte” – mesmo quando inclui quem outrora não tinha – é um processo constante e, admitamos, muito mais forte.
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Acho que tu consegues captar boa parte da complexidade da situação, tanto é que é difícil apreender esse ensaio com uma única leitura.
Só uma coisa que percebi, e fiquei pensando, essa frase “Há muitas maneiras de seqüestrar a democracia sem instaurar uma democracia.” Não seria sem instaurar uma ditadura?
Valeu, Diego, em breve vou reler esse texto.
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Oi Delair, obrigado toque. Você tem razão, misturei as palavras. Agora está corrigido!
Abs
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