Consolidou-se nos últimos anos uma interpretação bastante parcial, para não dizer falseada, desses fenômenos de extremismo de direita. Por essa interpretação, o fascista é alguém que pretende estatizar tudo, aderindo à fórmula de Giovanni Gentile e Mussolini, “tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”. Mais adiante, posso discutir de onde vem essa idéia, mas o fato é que ela perde de vista o que é central na dinâmica dos fascismos, colocando em seu lugar um aspecto derivado. Em vez do ponto de partida, o ponto de chegada, embora este último seja incompreensível sem o primeiro.
Há algo de notável no fascismo e em movimentos correlatos, e arrisco até a dizer que é fascinante de um jeito doentio. É que ele nasce sempre das entranhas da sociedade, ainda que muitas vezes fomentado por mensagens aterrorizadoras vindas das camadas mais poderosas. O fascismo é de origem molecular, não como uma alternativa à ordem social vigente, como é o caso de muitos movimentos de contestação ditos de esquerda (não que isso valha para toda a esquerda), mas como reafirmação dessa ordem, até mesmo radicalização dela, perante algo que é visto como ameaça – seja ou não real, pouco importa.
Ameaça, bem entendido, não à sociedade em sentido estrito, ou seja, às flutuações da vida em comum. Mas à sua ordem diretora, tal como instaurada: seu eixo central. Um movimento que vem de baixo, telúrico, ainda que insuflado pelos de cima. Fenômenos como o fascismo são movimentos pela ordem conduzidos por aqueles que ela não favorece, e que mesmo assim a aceitam e defendem renhidamente: os que não conseguem se enxergar vivendo em qualquer outro mundo, então se agarram com convicção à sua condição presente, conhecida, confortável, de submissão.
Esses são os que estabelecem aquelas “máquinas de guerra em cada nicho”, como dizem Deleuze e Guattari numa passagem brilhante de Mil Platôs. A organização fascista é aquela que eleva a hostilidade a afeto dominante na interação social e, por extensão, na política. O papel do medo é enorme nesse processo, naturalmente, mas não qualquer medo: afinal, o medo ao dominador é até mesmo celebrado, sob o véu da reverência – resultando freqüentemente no culto à personalidade. O que se quer esconjurar pelas figuras da ordem, da tradição, da segurança, é o medo de uma mudança, de um outro, de algo que está fora ou abaixo, algo que perpassa o tecido organizado de uma sociedade instilando toques de desordem. Não é por acaso que o fascismo, que no princípio procura destruir o que está fora, acaba voltando suas armas para dentro também.
Barulhentos e violentos que sejam, fadados à auto-destruição como já se revelaram, ainda assim os grupos proto-fascistas ou até francamente fascistas deixam os dominadores muito mais à vontade do que social-democratas, socialistas, anarquistas, comunistas, sindicalistas et caterva. O fascista ama seu dominador até mesmo quando o derruba e tenta transformar-se nele. Ele troca o amor difuso ao dominador obscuro por uma veneração concreta a essa figura ersatz do dominador, que é o líder. É isto o estatismo do fascista: tomar o Estado como modo de exercício de um poder que se conquistou, mas que, a rigor, em suas diversas formas, pertence a outro. É preciso transmutar-se nesse outro, vestir sua pele, sob risco de ser expelido por ele depois que o serviço sujo está terminado. Bonaparte fez isso, Mussolini fez, e Hitler, Suharto, Pinochet…
Vê-se na cara por que um Dijsselbloem ou um Schäuble estão plenamente dispostos a se ver livres do Syriza e não se preocupam com a perspectiva de uma Marine le Pen. (O caso de Merkel é outra coisa. Ela está com os dois olhos presos no eleitorado conservador do CDU/CSU e tenta equilibrar a situação o quanto pode. Seu problema é a ausência de postura de estadista e nada tem a ver com o radicalismo economicista dos dois citados acima.) Na cara, eu disse; e é na cara mesmo: compare a cara de Marine le Pen e a de Yanis Varoufakis. Compare a cara de Nigel Farage e a de Pablo Iglesias.
É um engano pensar que a “cara do fascismo” é Goebbels, com seus olhos desvairados. É antes Goebbels filmado à distância, projetando a voz e os braços, emanando um poder linear e sem ruídos. Não é Hitler passando as tropas em revista, mas as próprias tropas, tal como filmadas por Leni Riefenstahl: apolíneas e imaculadas. É claro que o proto-fascista não causa ao dominador o mesmo tipo de apreensão que o contestador: o proto-fascista corta o cabelo rente, escanhoa a barba toda manhã, usa gravata, respeita os horários (e contratos), ama sua pátria, defende a família, adora a polícia (tento resistir à tentação de dizer “posa para fotos com ela”, porque seria provocação demais…). Já o outro, esse aí deixa o cabelo crescer, toca violão na praça e diz coisas esquisitas. Melhor ficar longe.
O que pode causar mais pânico a essa turma do que ver na prefeitura de Barcelona uma mulher que faz piquetes e resiste até que os meganhas venham arrastá-la para fora? Dijsselbloem não quer negociar com Ada Colau. Mil vezes Marine le Pen.
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Acho que tu consegues captar boa parte da complexidade da situação, tanto é que é difícil apreender esse ensaio com uma única leitura.
Só uma coisa que percebi, e fiquei pensando, essa frase “Há muitas maneiras de seqüestrar a democracia sem instaurar uma democracia.” Não seria sem instaurar uma ditadura?
Valeu, Diego, em breve vou reler esse texto.
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Oi Delair, obrigado toque. Você tem razão, misturei as palavras. Agora está corrigido!
Abs
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