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A aposta de Varoufakis

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5) Isto é um seqüestro!

Tendo dito isso tudo, posso voltar à pergunta sobre a supressão de direitos e liberdades a que damos o nome de ataques à democracia, mesmo quando ocorrem em nome da democracia. Posso também voltar a Varoufakis e seu diagnóstico preciso, mas falho como prognóstico – ele mesmo tem relatado em seu blog e em entrevistas a surpresa que teve nesses cinco meses ao descobrir a que ponto seus colegas europeus estavam desinteressados de negociações e argumentos racionais, em função do exercício puro e simples do poder que têm nas mãos…

Falei acima da obsessão por segurança depois do 11 de setembro e agora mais ainda, depois de sermos todos Charlie por 15 minutos – com desdobramentos completamente desligados de qualquer relação com terrorismo. Afinal, não é o jihadismo o que mais tem sufocado as dinâmicas características da esperança de democracia, sem a qual o regime democrático é uma carcaça. Isso tem ficado cada vez mais claro. A maior ameaça vem daqueles que têm o mandato para assegurar a ordem.

Provavelmente o exemplo mais assustador vem da Espanha, pelo menos se eu me ativer ao contexto europeu. No começo do mês, entrou em vigor um novo conjunto de leis denominado “Lei de Segurança Cidadã”. Como sempre quando se fala em segurança, o cidadão é quem leva a pior: fica proibido manifestar-se na frente das sedes do poder, divulgar imagens de abuso policial e uma série de outras insanidades. Desconheço um conceito de democracia que contemple esse tipo de legislação.

Outro país que caminha na mesma direção é a Grã-Bretanha. O país que mais cedo começou a liberalizar seu regime político, e que no século XIX mandava sua imbatível marinha para combater o tráfico de escravos, hoje está não só instaurando uma nova forma de escravidão (os contratos de zero-horas), como pretende, mais uma vez em nome da “segurança”, bloquear qualquer forma de comunicação digital codificada, pondo em risco o funcionamento de aplicativos como o Whatsapp, por exemplo. É interessante que essa seja a maior preocupação manifestada nas notícias sobre o assunto. Afinal de contas, como é que alguém pode se sentir “mais seguro” sabendo que um agente do MI5 pode estar – e provavelmente está – ouvindo toda a sua conversa?

Ou então uma pergunta ainda mais perturbadora: como é possível que a opinião pública, a mídia, os observadores externos, a ONU, sei lá mais quem, não esteja alertando para semelhantes ataques à liberdade, que são, sem tirar nem pôr, ataques à democracia? Será que essas pessoas não viram um filme como A Vida dos Outros, por exemplo? Cito esse filme sobre a Alemanha Oriental para obter um gancho que me permita colocar aqui uma citação de Lev Manovich, recolhida de um artigo de McKenzie Wark:

“Como súdito pós-comunista, não posso deixar de ver a internet como um apartamento comunal da era stalinista: nada de privacidade, todos espiam todos, sempre uma fila pelas áras comums, como o banheiro e a cozinha”[, escreve Manovich]. Que irônico, agora, que Edward Snowden, aquele que mostrou como é aí mesmo que as coisas foram parar, tenha precisado pedir asilo na Rússia pós-soviética de Putin.

Manovich escreveu a parte entre aspas em 1996. Desde então, inúmeras são as pessoas que apontaram o quanto as sociedades contemporâneas estão, pouco a pouco, ficando parecidas com o mundo de trás da cortina de ferro. Não são muitos que discordariam do diagnóstico de que aquele era um mundo profundamente anti-democrático… E também não vou entrar demais no tema do conformismo generalizado com uma sociedade de vigilância, controle e produtividade, porque seria preciso ir bem além do mero tema da servidão voluntária, exigindo um texto à parte.

Os elementos de comparação se empilham: vigilância constante; controles rigorosos de fronteira; detenções políticas e para-legais; uma economia concentrada nas mãos de poucos (lá, o partido; cá, oligopólios transnacionais); supressão de protestos; mídia controlada por poucos (lá, o comitê central; cá, Rupert Murdoch!); controle ideológico sobre a produção intelectual. É claro que não estou afirmando que são situações idênticas, eu teria que ser louco para dizer isso. Mas a nau está com a proa apontada; nada impede que cheguemos ao ponto de descobrir que tanto Orwell quanto Huxley tinham razão.

Essa é uma das falhas da mera dualidade entre democracia de um lado e ditadura (que, no caso soviético, é totalitarismo) de outro. Há muitas outras maneiras de administrar, suprimir, controlar ou abafar as liberdades civis, individuais ou coletivas. Há muitas maneiras de seqüestrar a democracia sem instaurar uma ditadura. Esse é o ponto essencial.


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4 comentários sobre “A aposta de Varoufakis

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  2. Delair disse:

    Acho que tu consegues captar boa parte da complexidade da situação, tanto é que é difícil apreender esse ensaio com uma única leitura.
    Só uma coisa que percebi, e fiquei pensando, essa frase “Há muitas maneiras de seqüestrar a democracia sem instaurar uma democracia.” Não seria sem instaurar uma ditadura?
    Valeu, Diego, em breve vou reler esse texto.

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