No ano passado, quando se completaram 70 anos da publicação de A Grande Transformação, obra-prima de Karl Polanyi, Robert Kuttner publicou na revista The American Prospect um artigo excelente sobre o autor, que continha o seguinte parágrafo, após relembrar que no mesmo ano foi publicada a obra-prima de Friedrich Hayek:
Hayek afirma em O Caminho da Servidão que mesmo formas democráticas de planejamento estatal tendem a levar ao totalitarismo de um Stalin ou Hitler. Mas depois de 70 anos, não há um único caso de democracia social levando a ditadura, mas há dezenas de episódios trágicos de excessos de mercado que destruíram a democracia. “A solução fascista para o impasse a que chegou o capitalismo liberal”, escreveu Polanyi, “pode ser descrita como uma reforma da economia de mercado obtida ao preço de extirpar todas as instituições democráticas”. Sem dúvida, Polanyi tinha o argumento melhor. Mas Hayek teve mais influência sobre a prática e a ideologia que prevaleceram.
Kuttner chama a atenção para vários pontos importantes. Um deles responde a uma questão que está aí acima: de onde vem a estranha crença atual de que o estatismo é o ponto de partida do fascismo, e não o oposto. A partir de argumentos como o de Hayek, aquela divisão que já vimos, entre democracia e seu outro, nomeado ditadura, é recoberta por outra divisão, entre o mercado (ou indivíduo, termos por algum motivo intercambiáveis, embora isso não faça o menor sentido) e o Estado. O passo seguinte é assimilar “mercado” a “democracia” e “Estado” a “ditadura” e temos uma resposta pronta para qualquer problema do universo.
Outro ponto, este mais importante, é que o processo descrito por Kuttner está se repetindo. Tal como descrito por Varoufakis, o plano de Schäuble para a Europa é uma espécie de Prússia de Bismarck financeira, em vez de pietista. Bismarck queria extirpar a incômoda tendência democratizante, digna de Marshall, que se espalhava pelo território alemão desde 1848, em nome da monarquia Hohenzollern da Prússia. E conseguiu, unindo o império alemão com “aço e sangue”. Um império rígido, militarista, oligárquico, opressivo.
A União Europeia parece concretizar (mais uma vez?) a previsão de Polanyi. Aquilo que há a resguardar como ordem é bem conhecido: uma tecnologia econômica apresentada como verdade revelada sobre a natureza da ação humana (não à toa, título da magnum opus de Ludwig von Mises). Mais uma vez, o saber como poder, nada de novo aí; mas deveríamos inverter a fórmula: poder como hipóstase do saber. Um filtro epistêmico para o mundo, que define sem nuances o que é o comportamento válido (dito racional) e o que é desvio. Ou seja, uma tecnologia de produção de moral, uma roda de reafirmação de valores e de expulsão de seus auto-denominados opostos. Não é à toa que os países do norte da Europa recortam o problema do continente como uma questão moral.
Uma tecnologia, também, de administração pública. É claro! Para aproximar a realidade do projeto narrativo que se tem dela, é preciso agir sobre os componentes dessa realidade que conduzem em outras direções. Se a arte é um comportamento humano que não se parece em nada com a maximização utilitária, há que transformá-la em “economia criativa”. Se o conhecimento mostra que os modos de ação humanos são radicalmente indeterminados e constituem condutas estruturadas extremamente diversas, há que apelidar esse conhecimento como doutrinação ou metafísica anti-científica. Se novos partidos na Europa se erguem contra a opressão tecnocrata (que é, a rigor, uma forma de polícia aritmética), há que tachá-los de populistas, colocando no mesmo saco o Syriza e o Front National (muita gente faz isso, a começar pelo próprio Front National).
E principalmente, se houver modalidades de negociação – que é, afinal de contas, uma interação legítima entre grupos sociais e, portanto, uma ação perfeitamente contemplada pela “natureza humana”– cujo resultado se desvia dessa moldura epistêmica dotada de poder, há que exercer todos os modos possíveis de suprimi-las. Não é à toa que um dos itens mais importantes da intervenção de Bruxelas sobre as políticas nacionais é a supressão de negociações coletivas, como nesta carta de Jean-Claude Trichet para José Luis Zapatero em 2011. Ordenar a eliminação de negociações coletivas consiste em nada mais, nada menos que mutilar a tal da ação humana, com o objetivo de implodir o sindicalismo (não que o sindicalismo seja a coisa mais linda e maravilhosa do mundo) e o pretexto de tornar o resultado dessas negociações “mais eficiente”.
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Acho que tu consegues captar boa parte da complexidade da situação, tanto é que é difícil apreender esse ensaio com uma única leitura.
Só uma coisa que percebi, e fiquei pensando, essa frase “Há muitas maneiras de seqüestrar a democracia sem instaurar uma democracia.” Não seria sem instaurar uma ditadura?
Valeu, Diego, em breve vou reler esse texto.
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Oi Delair, obrigado toque. Você tem razão, misturei as palavras. Agora está corrigido!
Abs
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