1) Democracia e medo
As esperanças de Varoufakis foram por água abaixo, como dizia minha intuição. Há mesmo sinais de que, desde a posse de Alexis Tsipras como primeiro-ministro, em fevereiro, o esforço da dita troika – particularmente o Eurogrupo, reunião autodenominada informal de ministros da Economia da zona do euro – concentrou-se em inviabilizar qualquer acordo e, com isso, forçar a saída do governo recém-eleito. Recentemente, o economista Fernando Cardim de Carvalho, da UFRJ, lembrou também que a era Berlusconi da Itália foi encerrada em 2011 por causa do pacote de austeridade à européia, mas ninguém se incomodou, afinal, quem é que gosta de Berlusconi…
Com isso, ficou evidente que a atuação das entidades supranacionais européias, ali mesmo no coração da democrática Europa, estava passando por cima de tudo que nos acostumamos a entender por democracia, do processo eleitoral à transparência nas negociações. Já se consolidaram duas expressões que, usadas corretamente ou não (isso é bastante discutível), não deixam dúvidas de que batem de frente com os ditos “princípios democráticos”: a “tecnocracia” de Bruxelas (tecnocracia é um termo cunhado por Max Weber para se referir à racionalidade administrativa dos Estados modernos, e não a um regime de poder) ou a “plutocracia” do sistema financeiro internacional (pensando bem, esse termo tem sido bastante bem empregado! – embora o poder exercido aqui não seja o dos “ricos”, o que seria banal, mas mais especificamente o dos “detentores do capital monetário”, o que é bem mais preciso). Ambas essas palavras expressam a percepção de que, ali onde “deveria haver” uma democracia, na verdade há outra coisa… e muito pior.
Foi mesmo nesses termos que Tsipras colocou a proposta do referendo: uma atitude tomada em nome da democracia (que nasceu na Grécia etc. etc. etc.), contra um acordo que ia de encontro ao mandato recebido das urnas: ele e seu partido prefeririam perder os cargos a assinar aquele papel. Como era de se prever, os representantes da Europa institucional acusaram o golpe, disseram-se traídos, fizeram ameaças. As elites econômicas da Grécia e da Alemanha mobilizaram uma de suas armas mais eficazes: os meios de comunicação, que atingiram níveis inacreditáveis de desonestidade, quase tão descarada quanto a de uma certa revista brasileira. Uma charge alemã comparou o referendo grego à atitude folgada de um grupo de pessoas que faz um banquete e “vota” por não pagar. Já as televisões e rádios da Grécia, relata o correspondente inglês Paul Mason, fizeram tanto terrorismo a favor do “Sim” que muita gente decidiu votar pelo “Não”, só por despeito!
Nada mais perfeito para reforçar aquela narrativa binária da democracia versus seu oposto, seja “tecnocracia”, seja “plutocracia”: se o oposto da democracia é ditadura, então poderíamos falar em “ditadura tecnocrata” ou “ditadura plutocrática”. Foi bem o que Tsipras deu a entender, quando saiu o resultado acachapante de 61,3% a favor do “okhi”, ecoando, sem saber, a campanha de Lula em 2002: “a democracia venceu o medo”, disse o premiê!
O problema aqui é o mesmo que já apontei: a democracia aparece como uma essência encarnada. Esse é um vício de pensamento com ares de platonismo, como se a democracia fosse algum tipo de eidos (já que estamos falando de gregos) político (estável, perene, eterno), ameaçado constantemente pelas inconstâncias de paixões que a deturpam e adulteram. Um platonismo invertido, por sinal, já que no platonismo propriamente dito a democracia ela mesma é uma das maiores adulterações políticas.
Assim, se para alguns o populismo “deturpa a democracia” porque agita as paixões das massas – exatamente o que o platonismo via como causa da democracia como adulteração –, para outros a plutocracia “deturpa a democracia” ao colocar acima dessa divina idéia aparentemente fixa a dinâmica da paixão pelo lucro – ou, melhor dizendo, pela renda. Por todos os lados, paixões que fazem fissuras nas colunatas (mais uma metáfora grega) da democracia: medo, ganância, eventualmente ambições, sadismo…
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Acho que tu consegues captar boa parte da complexidade da situação, tanto é que é difícil apreender esse ensaio com uma única leitura.
Só uma coisa que percebi, e fiquei pensando, essa frase “Há muitas maneiras de seqüestrar a democracia sem instaurar uma democracia.” Não seria sem instaurar uma ditadura?
Valeu, Diego, em breve vou reler esse texto.
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Oi Delair, obrigado toque. Você tem razão, misturei as palavras. Agora está corrigido!
Abs
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