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De Gabriel e sua alma

Faz pouco menos de um ano que uma grande amiga telefonou com um pedido: que eu hospedasse seu namorado por uma semana. Ele se preparava para uma volta ao mundo em mochilão, começando pela França (ele tinha dupla cidadania, por sinal), depois cortando a Rússia, pela China, o sudeste asiático, a Índia e a África. Naturalmente, qualquer redução de custo seria muito bem-vinda e era aí que eu deveria entrar em cena. Cristina é realmente uma grande amiga, daquelas a quem não se recusam favores. Além do mais, sou sempre aberto a conhecer gente nova, principalmente quem tem alma de aventureiro, como Gabriel.

Ele chegou numa época de trabalho intenso; conversei pouco com ele, nas raras vezes em que nos cruzamos, um entrando, o outro saindo. Foi o suficiente para ele me mostrar o plano de sua viagem, cada cidade em que passaria, cada país, os preparativos que tinha feito, tudo. A ideia era bem simples: tendo terminado o mestrado em economia na PUC, ele passaria um ano esperando as respostas do doutorado nos EUA (acabou sendo aceito na UCLA). Esperando, em termos… Ele conheceria o mundo.

Descobri hoje, por acaso, que Gabriel não conseguiu fechar o círculo. Fins de julho, no Malawi, ele escalava o monte Mulange, 2000 metros de altitude. Perdeu-se do grupo, perambulou durante pelo menos quatro dias, depois sucumbiu ao frio. Estava preparado para condições climáticas muito hostis, mas não por tanto tempo. Não sei se devo pensar no sofrimento de Gabriel enquanto tentava sobreviver na montanha africana, ou no fato de que ele terminou os dias numa viagem admirável, maravilhosa. Estranhamente, continuo invejando sua força de vontade e sua coragem. Sim, inveja é uma palavra que já passou pela minha cabeça… mas no bom sentido. Ele estava fazendo o que eu queria ter feito, mas não fiz por falta de coragem e desprendimento. Sua vida continuará sendo uma lição, muito mais do que sua morte.

Só fiquei sabendo de tudo hoje, mas vi que houve uma grande cobertura na imprensa brasileira. Então há pouco que eu possa acrescentar, senão o fato de que estou consternado de saber que perdemos aquele rapaz despachado, economista que escolheu estudar a verdadeira economia, ao contrário da maioria de seus colegas, que preferem aprender fórmulas de ganho artificial (falo com conhecimento de causa, eu convivi nesse meio). Imediatamente após a confirmação da morte, lembrei-me de duas outras tragédias que vivenciei, e que descrevi neste post. Como eu escrevi naquela ocasião (devo ter escrito, é algo de que estou convicto), a morte parece ter preferência pelas pessoas muito, muito boas.

Lembrei-me também de Into The Wild, filme dirigido por Sean Penn. Um rapaz bem formado, muito jovem, resolve viajar sem dinheiro, sem documentos, até o Alasca, onde se embrenha na neve e acaba morrendo intoxicado por uma raiz venenosa. É uma história parecida, senão pelo fato de que Gabriel queria conhecer o mundo para reformá-lo, ao passo que o personagem de Penn só queria se livrar dos pais, a julgar pela forma como o diretor constrói o filme. Pouco importa, são ainda duas almas que buscavam se libertar desse óbvio em que nos afogamos sem perceber.

Eis o caso. Agora, eu gostaria de conseguir continuar escrevendo muito sobre o destino de Gabriel. Gostaria de convencer milhares de pessoas a buscar o mesmo tipo de ruptura de que acabo de falar. Gostaria, sem dúvida, de convencer a mim mesmo. Mas o verbo me escapa e acho que tudo já está óbvio o suficiente sem minha lenga-lenga. Para quem soube da história pela televisão, deixo apenas um pedido: esqueça o melodrama que certamente acompanhou as matérias; esqueça todos os comentários cafonas que nem preciso ter ouvido para saber que foram feitos. Nada disso tem a ver com o Gabriel Buchmann que conheci em Paris um ano atrás. Pense, ao contrário, no espírito autônomo, contestador, curioso.

É isso.

PS: Leio agora que o corpo deve ter sido cremado hoje mesmo. Deixo este texto, então, como uma forma de participar da cerimônia, mesmo à distância.

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