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Da fome dos patos

Criança alimenta cisne negro
Era muito divertido quando se podia dar comida aos bichos no zoológico e nos parques, despedaçando pão francês e lançando as migalhas em direção às jaulas. Mas isso foi no tempo de vovó criança; de lá para cá, constatou-se que a saúde dos animais, pelo menos no contexto de um jardim zoológico, deve vir à frente dos caprichos das crianças. (Deve ser a última coisa que ainda prevalece sobre o desejo imperioso da molecada). Parece uma descoberta banal, dentre tantas que tornaram o mundo mais eficiente e mais chato. Tão banal, que me pergunto como era possível nossos avós não saberem que os tratadores conhecem melhor o que convém aos animais do que os visitantes esporádicos, folgados e muitas vezes sádicos. Não é evidente que chimpanzés e lontras têm dificuldade em digerir pipoca, brigadeiro, algodão doce?

Seja como for, com isso, agora, onde o homem põe bichos, já finca junto uma placa proibindo alimentá-los. Avisos às vezes bem-humorados, outras vezes secos, não raro sentimentais, como este que se lê no parque Batignoles, aqui perto: “Se você ama as aves, não as alimente”. E é impossível não as amar, no inverno, quando se encolhem à beira do lago; na primavera, quando nascem seus filhotes de pelos eriçados; no verão, quando correm e grasnam entre os pés dos freqüentadores; no outono, quando brigam a bicadas, os biólogos que venham explicar a razão. Batignoles é um pequeno paraíso à beira da linha de trens. Lar de patos, gansos e um casal de cisnes negros que são a coisa mais linda.

Em tese, não há como escapar à lógica do aviso. Amamos os patos, não os alimentamos, e se alguém lhes atira um naco de pão, é sinal de que tem alguma coisa contra eles, um rancor secreto, raiva da vida selvagem. Mas mesmo uma tolice tão grande quanto essa, a proibição, aparentemente irrelevante, de dar comida a patos e cisnes já bem gordos, pode servir para mostrar que nem todo mundo pensa do mesmo jeito. A unanimidade, mais do que burra, é uma quimera absolutista. O caso é como segue:

Eu voltava para casa pelo parque, um desvio considerável, mas delicioso, que procuro tomar sempre. Lá pelo meio do caminho, encontro a tal placa, que me lança em devaneios sobre a história da liberdade nos zoológicos, como se pode ver pelos parágrafos que precedem. Passado o aviso, uma curva, e dois passos além está uma mulher, sentada à beira do caminho. Ela discute, em tom até ameno, com um jovem funcionário do jardim, devidamente uniformizado e identificado.

Primeiro, pensei que ela fosse uma dessas desabrigadas que vagueiam pelas áreas verdes de Paris, conferindo à paisagem um aspecto próprio, meio rebelde, meio pitoresco, típico desta famosa cidade. (E não é terrível fazer da miséria humana um detalhe urbano pitoresco?) Mas não era desabrigada. Descobri-o por lhe observar o rosto, onde logo identifiquei a dureza e a firmeza de opinião características a uma categoria social tipicamente francesa: a engajada.

Não é que em outros países sejam todos conformistas, não me entendam mal. Mas aqui, por algum motivo, engajar-se em algo é mais do que uma escolha pessoal. Envolve qualquer coisa de classificação social. Ao decidir engajar-se, pela causa que for, o francês se sente na obrigação de também vestir-se, andar, falar, usar o cabelo, morar, calçar-se, tudo de um jeito determinado. A França, já devo ter mencionado em outro artigo, é o país dos códigos. Externar uma opinião que não concorde com a aparência, não digo que seja um absurdo, é apenas incompreensível para os conterrâneos.

Foi assim que reconheci a engajada. A saia colorida, tema hindu, varrendo o cascalho do chão; os cabelos compridos, lisos e grisalhos, esticados e amarrados com força em rabo-de-cavalo; a coleira que prendia um gato negro e entediado; o tom intransigente e corajoso com que se dirigia ao jardineiro, provavelmente o mesmo tom que usou, quarenta anos atrás, contra os policiais do CRS nas barricadas da Sorbonne. Honestamente, adoro conversar com engajadas como ela, fazendo abstração da indefectível certeza de estarem sempre com a razão. O assunto é sempre interessante e a paixão, envolvente. Foi por isso que prestei atenção no desenrolar da conversa.

A engajada, dedo em riste, afirmava que é absurdo deixarem os animais à própria sorte, buscando a comida no interior de um ecossistema tão diminuto quanto o do parque Batignoles. Dizia que patos e cisnes entrariam em conflito, haveria morte e inanição, injustiça e tragédia, e tudo por culpa de um aviso que não autorizava os humanos a distribuir o maná das aves. Os administradores do parque, ela continuou, são irresponsáveis e cruéis. “Mas eu não vou me dobrar”, prometeu, “vim aqui para que os animais tenham alimento e paz!”

Bons foram os tempos em que as grandes causas eram a fome do Terceiro Mundo, a opressão do trabalhador, a condição feminina, a discriminação racial. Agora, parece que a solução para todos esses problemas virá com o tempo e as campanhas publicitárias veiculadas pela televisão, enquanto cada um leva sua vida, mais ou menos esperançoso. Não há mais espaço para quem acredita no poder do punho erguido, da rua ocupada, de exprimir indignação. Para esses, os engajados, resta garantir a alimentação dos patos.

O paciente funcionário explicava que os bichos do parque não estão submetidos à luta pela sobrevivência porque têm comida à vontade, disponível no lago principal. Enquanto isso, o gato preto, mesmo encoleirado, era o personagem mais atento ao destino do pão. A cada ganso que se aproximava para bicar a iguaria, só faltava o felino sorrir. Como se pensasse: “muito bem, meus filhos, engordem mesmo, engordem bastante!” Com seu espírito de predador, ele, sim, estava envolvido na luta pela sobrevivência.

A discussão deve ter seguido por muito tempo. Franceses, quando começam a discutir, vão até o fim. Coisas de quem bebe cerveja quente. Não sei se o caçador encoleirado conseguiu agarrar alguma presa, mas pouco importa. No fundo, vejo que a engajada não estava lutando para garantir a saúde das aves, mas do seu bichano, maior interessado nos patos robustos. É menos nobre, decerto, mas não deixa de ser uma demonstração de altruísmo.

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13 comentários sobre “Da fome dos patos

  1. Vivi uma experiência, para mim, surreal. Hospedado no Novotel da rue Vaugirard, fui almoçar lá mesmo, por falta de táxi. Sentei e me dei conta que era encarado por um pardal. Ali no chão. Voltei a fazer o que estava fazendo, pensando estar preso em alguma aluicinação. Passado um tempo, lá estava ele. Dei um pedaço de pão, como teste. Ele pegou e o levou para os filhotes, num outro canto do restaurante. Voltou, pegou um outro mais. E somente comeu o terceiro que lhe dei. Cometi meu crime, a minha mulher me disse que isso (miolo de pão) faz mal para o pássaro. Eu retruquei a natureza é perfeita. Essa responsabilidade não é minha. Não consigo refutar um olhar pidão, provado e comprovado. O banal pardal é amestrado. Parabéns. Seu texto está excelente, acredite no Kovacs. Abs.

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  2. Essa engajada aí merecia umas palmadas. Uma vez, lá em Recife, em 199* (não lembro, eu tinha 10 ou 11 anos), dei um maldito chiclete de canela aos macaquinhos do Parque 13 de Maio. No dia seguinte, no jornal local noturno, vi a notícia: um macacaquinho morrera, outra tava mal pacas. Quando vejo alguem tentando dar comida aos bichos em zoológicos faço escândalo, chamo o segurança, dou porrada (metaforicamente), etc, etc.

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  3. sim, devemos cuidar da saude dos bichos, vivi alguns anos “no campo” como engenheiro e habitava acampamentos, contato direto com a natureza, era uma faceta da minha profissão que eu gostava, aranhas, lagartixas e insetos todos poupados no meu castelo de madeira, e lá fora dezenas de especies plumadas, e até macacos prego, tucanos belos, aguias e jacarés e tartarugas, vivi muito na Amazônia, sim devemos antes de mais nada acabar com o cativeiro, zoológicos “abaixo com eles!”, primeiro a liberdade, cuidar do bicho em cativeiro não nos salva do pecado do enjaulamento e tem muito mais a fazer antes de proibir distribuir pipoca aos prisiioneiros.
    abraço e como sempre patrabens pelo seu texto

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  4. Grande Diego!
    Vim agradecer a visita que fez ao meu blog. Muito obrigado pelo incentivo!
    Acompanho semanamente teus textos e o LM Diplô. Gosto muito do que você escreve, e faço questão de recomendá-lo aos meus amigos.
    Abração de Curitiba!

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  5. Emmanuel disse:

    Diego,

    O que acho interessante n os seus textos é que, de um acontecimento cotidiano, você realmente consegue arrancar uma análise profunda e sensível, com um humor muito sutil e de bom gosto. Isso é raro, mesmo para um país como o Brasil, no qual a crônica é um gênero consagrado. No geral, o que vemos são cronistas forçando a barra para parecerem profundos ou engraçados, nunca os dois juntos. Com você, isso não acontece.

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  6. Ao contrário de ti, fico demasiadamente cansado quando encontro pessoas que estão sempre certas.

    Certa vez, fui em Porto de Galinhas, PE, lá, num de seus recifes, encorajava-se a dar comida aos peixes, pagando R$1,00 por uma porção de ração de peixe. Talvez essa fosse uma solução interessante para dar às crianças o prazer de alimentar alguns dos bichos do zoológico (já que não consigo vislumbrar que item da dieta de um leão uma criança poderia atirar-lhe).

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  7. Hilariante sua descrição da francesa “engajada”!

    Sensacional, já perdi a conta de quantas criaturas assim já encontrei por aí nas ruas de Paris. Você tem razão, assim como o prazer orgásmico que eles sentem ao bebericarem uma taça de vinho com uns pedaços de pão e de queijo, a atitude de sindicalismo engajado faz parte da identidade gaulesa!

    Abração,

    Lelec

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