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Da urna aos muros

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Quarta-feira, cinco de novembro, oito horas da noite. Entranhas da Gare Saint-Lazare, estação do oitavo arrondissement de Paris. Uma mulher de meia-idade, cabelos brancos e bem curtos, destaca-se da multidão, quase despercebida. Ela escreve com uma caneta pilot negra sobre o fundo branco de um painel publicitário, em movimentos tranqüilos e seguros. Ninguém a incomoda.

Tendo-a avistado à distância, logo penso se tratar de um membro do grupo anarquista que ataca propagandas por toda a cidade, na missão de denunciar o consumismo e a lavagem cerebral. Mas é uma surpresa: eu pensava que os ativistas underground fossem todos muito jovens. Ao menos o são os que, vez em quando, acabam apanhados pela segurança e sofrem processos por dano a propriedade.

A corrente de viajantes vai passando aos encontrões, sem espiar a mulher resoluta em seu discreto vandalismo. Um fluxo penoso, sem ritmo, mil rumos sem direção. Como sangue empurrado por um coração fora de compasso.

Entre pastas, meias de seda e capotes, só uma pessoa interrompe a marcha para ler a mensagem: outra mulher de meia-idade, mas de cabelos anelados, tingidos de vermelho berrante.

Quando a ativista termina seu texto, estou quase perto o bastante para ler. A fulva espectadora sorri de leve. A autora anui de um gesto brusco da cabeça. Um sorriso e ela tampa a caneta. Está claramente satisfeita com o serviço. Pode voltar a seu caminho.

Já estou bastante próximo para enxergar a mensagem. Sobre o anúncio de sapatos elegantes, lê-se:

À quand un Obama ici?

Uma constatação de como a onda azul está espalhada pelo mundo. A onda que venceu, como não venceu a verde, de Gabeira, no Rio. A francesa engajada, figura tão peculiar deste país, queria um Obama para seu país.

Nações diferentes, histórias diferentes, contextos diferentes. Um Obama na França teria de cair realmente do céu, mas pouco importa. A grafiteira do metrô não quer um presidente jovem, inteligente, carismático e negro.

Ela quer o símbolo, a imagem. O Obama dos cartazes, não o do Salão Oval. Ela quer o nome ao qual está associado tudo que se pode esperar de bom e revolucionário neste nosso começo de século, que parecia tão conformista e reacionário.

“Quando teremos um Obama aqui?”, ela quer saber.

Minha senhora, nesse sentido em que a senhora está pensando, já temos.

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Da fome dos patos

Criança alimenta cisne negro
Era muito divertido quando se podia dar comida aos bichos no zoológico e nos parques, despedaçando pão francês e lançando as migalhas em direção às jaulas. Mas isso foi no tempo de vovó criança; de lá para cá, constatou-se que a saúde dos animais, pelo menos no contexto de um jardim zoológico, deve vir à frente dos caprichos das crianças. (Deve ser a última coisa que ainda prevalece sobre o desejo imperioso da molecada). Parece uma descoberta banal, dentre tantas que tornaram o mundo mais eficiente e mais chato. Tão banal, que me pergunto como era possível nossos avós não saberem que os tratadores conhecem melhor o que convém aos animais do que os visitantes esporádicos, folgados e muitas vezes sádicos. Não é evidente que chimpanzés e lontras têm dificuldade em digerir pipoca, brigadeiro, algodão doce?

Seja como for, com isso, agora, onde o homem põe bichos, já finca junto uma placa proibindo alimentá-los. Avisos às vezes bem-humorados, outras vezes secos, não raro sentimentais, como este que se lê no parque Batignoles, aqui perto: “Se você ama as aves, não as alimente”. E é impossível não as amar, no inverno, quando se encolhem à beira do lago; na primavera, quando nascem seus filhotes de pelos eriçados; no verão, quando correm e grasnam entre os pés dos freqüentadores; no outono, quando brigam a bicadas, os biólogos que venham explicar a razão. Batignoles é um pequeno paraíso à beira da linha de trens. Lar de patos, gansos e um casal de cisnes negros que são a coisa mais linda.

Em tese, não há como escapar à lógica do aviso. Amamos os patos, não os alimentamos, e se alguém lhes atira um naco de pão, é sinal de que tem alguma coisa contra eles, um rancor secreto, raiva da vida selvagem. Mas mesmo uma tolice tão grande quanto essa, a proibição, aparentemente irrelevante, de dar comida a patos e cisnes já bem gordos, pode servir para mostrar que nem todo mundo pensa do mesmo jeito. A unanimidade, mais do que burra, é uma quimera absolutista. O caso é como segue:

Eu voltava para casa pelo parque, um desvio considerável, mas delicioso, que procuro tomar sempre. Lá pelo meio do caminho, encontro a tal placa, que me lança em devaneios sobre a história da liberdade nos zoológicos, como se pode ver pelos parágrafos que precedem. Passado o aviso, uma curva, e dois passos além está uma mulher, sentada à beira do caminho. Ela discute, em tom até ameno, com um jovem funcionário do jardim, devidamente uniformizado e identificado.

Primeiro, pensei que ela fosse uma dessas desabrigadas que vagueiam pelas áreas verdes de Paris, conferindo à paisagem um aspecto próprio, meio rebelde, meio pitoresco, típico desta famosa cidade. (E não é terrível fazer da miséria humana um detalhe urbano pitoresco?) Mas não era desabrigada. Descobri-o por lhe observar o rosto, onde logo identifiquei a dureza e a firmeza de opinião características a uma categoria social tipicamente francesa: a engajada.

Não é que em outros países sejam todos conformistas, não me entendam mal. Mas aqui, por algum motivo, engajar-se em algo é mais do que uma escolha pessoal. Envolve qualquer coisa de classificação social. Ao decidir engajar-se, pela causa que for, o francês se sente na obrigação de também vestir-se, andar, falar, usar o cabelo, morar, calçar-se, tudo de um jeito determinado. A França, já devo ter mencionado em outro artigo, é o país dos códigos. Externar uma opinião que não concorde com a aparência, não digo que seja um absurdo, é apenas incompreensível para os conterrâneos.

Foi assim que reconheci a engajada. A saia colorida, tema hindu, varrendo o cascalho do chão; os cabelos compridos, lisos e grisalhos, esticados e amarrados com força em rabo-de-cavalo; a coleira que prendia um gato negro e entediado; o tom intransigente e corajoso com que se dirigia ao jardineiro, provavelmente o mesmo tom que usou, quarenta anos atrás, contra os policiais do CRS nas barricadas da Sorbonne. Honestamente, adoro conversar com engajadas como ela, fazendo abstração da indefectível certeza de estarem sempre com a razão. O assunto é sempre interessante e a paixão, envolvente. Foi por isso que prestei atenção no desenrolar da conversa.

A engajada, dedo em riste, afirmava que é absurdo deixarem os animais à própria sorte, buscando a comida no interior de um ecossistema tão diminuto quanto o do parque Batignoles. Dizia que patos e cisnes entrariam em conflito, haveria morte e inanição, injustiça e tragédia, e tudo por culpa de um aviso que não autorizava os humanos a distribuir o maná das aves. Os administradores do parque, ela continuou, são irresponsáveis e cruéis. “Mas eu não vou me dobrar”, prometeu, “vim aqui para que os animais tenham alimento e paz!”

Bons foram os tempos em que as grandes causas eram a fome do Terceiro Mundo, a opressão do trabalhador, a condição feminina, a discriminação racial. Agora, parece que a solução para todos esses problemas virá com o tempo e as campanhas publicitárias veiculadas pela televisão, enquanto cada um leva sua vida, mais ou menos esperançoso. Não há mais espaço para quem acredita no poder do punho erguido, da rua ocupada, de exprimir indignação. Para esses, os engajados, resta garantir a alimentação dos patos.

O paciente funcionário explicava que os bichos do parque não estão submetidos à luta pela sobrevivência porque têm comida à vontade, disponível no lago principal. Enquanto isso, o gato preto, mesmo encoleirado, era o personagem mais atento ao destino do pão. A cada ganso que se aproximava para bicar a iguaria, só faltava o felino sorrir. Como se pensasse: “muito bem, meus filhos, engordem mesmo, engordem bastante!” Com seu espírito de predador, ele, sim, estava envolvido na luta pela sobrevivência.

A discussão deve ter seguido por muito tempo. Franceses, quando começam a discutir, vão até o fim. Coisas de quem bebe cerveja quente. Não sei se o caçador encoleirado conseguiu agarrar alguma presa, mas pouco importa. No fundo, vejo que a engajada não estava lutando para garantir a saúde das aves, mas do seu bichano, maior interessado nos patos robustos. É menos nobre, decerto, mas não deixa de ser uma demonstração de altruísmo.

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