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A fórmula do roteiro perfeito

Vida+outros
Não sei se já estreou no Brasil o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano; se estreou, recomendo vivamente. Senão, recomendo para quando estrear. “A Vida dos Outros” (se é que vão traduzir assim o título Das Leben der Anderen) é um grande filme, baseado num roteiro perfeitamente amarrado, com uma direção precisa e consciente de cada detalhe da dramaturgia. Provoca as mais fortes sensações, sem precisar apelar em momento algum a qualquer coisa que possa ser considerada piegas. Saindo da sala, fiquei surpreso ao descobrir que são quase três horas de projeção.

O ponto alto está, sem dúvida, nas atuações. Os três papéis principais são muito bem interpretados, sobretudo o agente da Stasi Gerd Wiesler, por Ulrich Mühe, e a atriz Christa-Maria Sieland, por Martina Gedeck. O cinema alemão, a propósito, tem nos brindado com algumas das melhores obras dos últimos anos. De “Corra, Lola, Corra” e “Adeus, Lênin” até “A Vida dos Outros”, tivemos “Edukators” (Die Fetten Jahren sind Vorbei), “A Queda”, “Sophie Scholl, die letzten Tage” (“Uma Mulher contra Hitler”), e tenho certeza de que estou esquecendo mais alguns.

Vou esboçar um resumo do enredo, mas muito curto, porque não é esse o intuito do texto. Na década de 80, um zeloso agente da Stasi (Staats Sicherheit, a polícia secreta da Alemanha Oriental) é incumbido de vigiar um dramaturgo e sua esposa, atriz, apesar de o casal ser considerado entre os maiores colaboradores do regime socialista. Munido de suas próprias desconfianças e preocupado em fazer um bom trabalho (afinal, é um prussiano), o agente mergulhará na vida dos artistas, mas muito além do recomendado. Qualquer coisa a mais que eu disser estragará o filme. É uma pena que seja tão fácil ler mais detalhes por aí!

O diretor, produtor e roteirista chama-se Florian Henckel von Donnersmarck. Se o nome parece comprido, saiba que, completo, fica Florian Maria Georg Christian Graf Henckel von Donnersmarck, em que o Graf significa “barão”. Pois esse aristocrático alemão ocidental, 33 anos, nascido em Colônia, descendente de uma linhagem de militares e industriais prussianos, batalhou durante anos para ver nas telas o resultado de seu trabalho. Sem jamais ter pisado na antiga DDR, nome oficial da Alemanha Oriental, escreveu, captou recursos e dirigiu a história que melhor toca nas chagas do antigo país. Reza a lenda que um grande escritor do lado oriental o expulsou de seu escritório aos brados, ironizando sua condição de “filhinho de papai” criado em Nova York.

Chegamos ao ponto que eu queria abordar. O roteiro, que, como em todos os filmes bons que tenho visto nos últimos anos, é muito bem construído. Não há ponto sem nó, frase solta, seqüência sem sentido. Cenas do final explicarão detalhes do início, atitudes aparentemente corriqueiras se revelarão fundamentais. As variações da tensão dramática são impecáveis, o riso se interpõe à apreensão nos momentos certos. Os personagens são profundos, ambíguos. Não há heróis claros, nem vilões absolutos. Tudo perfeito.

Como eu disse, tenho visto a mesma perfeição em muitos filmes, das mais diferentes origens. Americanos, europeus, brasileiros, argentinos, orientais. Em todos, os roteiros são precisos, enxutos, ricos. É fantástico. A impressão que tenho é de que os alquimistas da tela, esses seres fabulosos que existem para nos divertir e impressionar, descobriram a fórmula do ouro cinematográfico. O cinema nunca mais será o mesmo. Penso em Fellini, Godard, Buñuel, Truffaut, Antonioni, Glauber. Nas suas obras-primas, cheias de momentos estonteantes, que só ganhavam em riqueza com os pequenos pontos de imprecisão. As falhas deliciosas, às vezes gritantes, não são menos fruto da genialidade que as seqüências apoteóticas, que marcaram época, como o final de “Oito e meio” e a verborragia de “Terra em Transe”.

Não há mais espaço para isso, como, de qualquer forma, não há mais espaço para o cinema de autor. O risco de que um roteiro resulte ruim, falho, cheio de buracos, é quase nulo. Um responsável “óbvio” poderia ser apontado, sob o nome de Syd Field, o “script-doctor” que virou uma espécie de Lair Ribeiro do roteiro internacional, com seus livros escritos em estilo imperioso, diria até tirânico. Mas ele é apenas parte da explicação. O cinema é uma indústria cara. Muito rentosa, mas cheia de riscos, então perder dinheiro é inaceitável. Antes de ir para o estúdio ou a locação, um roteiro é lido centenas de vezes, por dezenas de pessoas. Passa por uma cirurgia estética (literalmente) muito mais minuciosa do que a das modelos da Playboy, e muito mais eficiente, porque sempre imperceptível. Ao final do processo, o texto só não será impecável por um desastre.

Isso não significa, claro, que não haja filmes surpreendentes. Pelo contrário: todos o são. Mas não consigo deixar de sentir que a surpresa é planejada, testada em laboratório, quem sabe em ratos, antes de chegar às salas de projeção. Numa analogia de gosto duvidoso, é como se o filme fosse um dentifrício, e pesquisadores tivessem descoberto o tubo perfeito, aquele que mais agrada ao consumidor e economiza a pasta. A partir daí, todos os tubos, nas farmácias, serão idênticos. Melhor, impossível. Claro, mas estamos falando de arte, não de uma commodity. A princípio.

No cinema, ou pelo menos no roteiro, o erro foi definitivamente eliminado. Mas não posso deixar de sentir que o gênio, o sublime, o êxtase, e por que não dizer, o dionisíaco, sucumbiram junto. Hoje, vou ao cinema sabendo que o filme será bom, ou às vezes não, mas o roteiro será previsivelmente imprevisível, excelente em sua regularidade, cheio de boas sacadas, mas sem nenhum grande vôo, nenhum risco, nenhuma jogada de mestre. Isso não impede que se produzam filmes maravilhosos, como esse “A Vida dos Outros”. Mas algo está faltando. Sinto saudades de ser arrebatado por seqüências como o final de “O Eclipse”, do Antonioni. Algo assim, hoje, é simplesmente impensável.

PS: Diretores como Lars Von Trier, David Lynch, Wim Wenders e Woody Allen são um caso à parte. Mas eles já estão aí há bastante tempo, então não contam.

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13 comentários sobre “A fórmula do roteiro perfeito

  1. Angela Carolina disse:

    Achei vc lá no Alex Senz… Gostei de um comentário que vc fez por lá e vim até aqui te conhecer.Valeu a dica!Bjs

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  2. tina oiticica harris disse:

    Fui ver um filme alemão sobre os últimos dias do Bunker do Führer, muito bom, correu ao Oscar e perdeu. Gosto da variedade temática no cinema alemão e aqui chegamos a um ponto que nem posso ouvir falar em Quentin Tarantino, de tantos imitadores que há.

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  3. Pancho disse:

    Quero ver o filme, mas sabe-se lá quando que vai chegar ao interior do riogrande do sul, no cinema provavelmente não irá passar, em dvd chaga junto com o resto do brasil, mas como eu não sei quando é isso resta esperar.

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  4. - Lui - disse:

    paulo: osrevniinverso :oluappaulo in versoGostei.Pois é. Só nos resta seguir caminhando e, no palco do mundo, ir encenando (e não só ensaiando) os atos da vida.

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  5. manoela afonso disse:

    Olá Paulo, a gente vai fazendo arte como pode, mas isso dá uma satisfação danada. Obrigada pela visita ao Le Mur. Bom, o último filme que vi foi um clássico: Godard, Alphaville. Beijos

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  6. Bosco Sobreira disse:

    Vim retribuir sua visita, meu caro Paulo e me deparo com um texto que me chamou a atenção pela fluidez e leveza. Vou me demorar um pouco nas postagens anteriores. Espero retornar com assiduidade.Um abraço e, mais uma vez, obrigado por sua visita.

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  7. Paulo Villela disse:

    OLá Paulo, tudo bem?Gostei da indicação do seu filme.Vou procurar saber se ele já chegou aqui no Brasil.Gosto muito de filmes.

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