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A solidariedade, ou: consequências econômicas da enchente

Volto ao tema da calamidade no Sul, porque depois de publicar o último texto percebi que algo importante ficou de fora.

Talvez a melhor entrada no assunto seja a última declaração infeliz do governador Eduardo Leite, afirmando que os investimentos em prevenção de enchentes foram reduzidos porque havia outras prioridades, em particular o equilíbrio fiscal. O que vale reter dessa quase-confissão é que, assim como no seu deslize anterior, sobre o impacto da solidariedade nos comerciantes locais das áreas atingidas, o erro é que seus pés estão cimentados na lógica contábil de um mundo de estabilidade; só que essa lógica e esse mundo, já deu para perceber, foram abalados, e certamente sem volta, pelas circunstâncias da catástrofe ambiental.

Mas não quero me concentrar em Eduardo Leite, o indivíduo, a figura pública. É tentador passar todo o tempo fustigando uma liderança política que demonstrou incapacidade, justamente, de liderança. É claro que o governador não entendeu em que mundo, tempo e país ele vive e o que se espera de um líder nessa situação. Acontece que ele está longe de ser o único. Ao contrário, sua paralisia, o impasse em que se instalou seu raciocínio, é o sintoma da bifurcação crítica do nosso tempo. Aliás, o comprometimento da capacidade de planejar, de que tratei no texto anterior, também reflete esse impasse.

O conflito entre dois imperativos, o econômico/contábil e o ambiental, é uma dicotomia impregnada no nosso, como se costuma dizer, espírito do tempo. Nem adianta retrucar que, entregando as terras alagáveis para salvar o orçamento, o Estado ficou com as terras efetivamente alagadas e as contas completamente furadas; ou que veremos operações de salvamento bem mais caras para os cofres estaduais do que as que retiraram as pessoas das casas isoladas. Por isso mesmo, é preciso explorar o campo em que essa dicotomia se apresenta, assim como quais estradas podem ser tomadas ou mesmo traçadas, se queremos escapar do círculo vicioso que se expressa nas falas de Leite. E também se queremos ir além da mera aceitação da derrota.

1. Solidariedade como semente

Na verdade, se volto ao tema da enchente, é por causa do outro lado dessa moeda ambiental-econômica. Há cerca de um mês estamos acompanhando a grande variedade de iniciativas de solidariedade com os gaúchos, que enfrentaram dificuldades incomuns até mesmo em desastres anteriores: com o aeroporto interditado, estradas bloqueadas, abrigos tomados pelas águas e outras barreiras, foi preciso estabelecer novas redes de contatos, articular grupos de distribuição com entidades locais, dar novas destinações a espaços e assim por diante.

Tudo isso me chamou a atenção porque em outros desastres, nos últimos anos, também vimos surtos de solidariedade, com doações e o afluxo de voluntários, mas eram ações um tanto pontuais, que não chegaram a afetar o dia-a-dia das pessoas em lugares não atingidos. Desta vez, foi diferente. Foi preciso discutir como se poderia fazer, de que maneira as doações chegariam ao destino, descobrir quais eram os canais confiáveis, como escapar de fraudes e mentiras em geral. Empresas de TI desenvolveram plataformas especificamente para coordenar a distribuição de alimentos e roupas, por exemplo.

Olhando um pouco mais detidamente, é como se emergisse um sistema econômico coeso baseado na distribuição e na dádiva. Por ironia, foi Leite quem captou isso, completamente sem querer, mas nem por isso com menos clarividência, quando demonstrou preocupação pelo possível efeito sobre o comércio da chegada de tantos bens doados. Logo em seguida ele se viu constrangido a pedir desculpas, mas o fato é que a incompatibilidade entre a distribuição solidária e os requisitos do comércio está realmente colocada. E é isso que precisamos explorar.

Mas seria um erro simplesmente contrapor uma economia da dádiva à de mercado, com seu mecanismo de preços e o incentivo do lucro. Primeiro, porque a economia da dádiva, como já mostraram fartamente os estudiosos que se debruçaram sobre ela ao longo do último século, não é gratuita, nada tem a ver com solidariedade e envolve, ao contrário, muito conflito. É preciso ir um pouco mais fundo nisso. Mas principalmente porque parece haver outros princípios em ação.

2. A Grande Transformação

Vale a pena voltar às páginas da Grande Transformação de Karl Polanyi, publicado em 1944, e também a alguns de seus ensaios que saíram em volumes como A Subsistência do Homem e outros não lançados no Brasil. Polanyi foi um daqueles raros pensadores a buscar uma conexão substancial entre os mecanismos da economia moderna e as formas de organização da vida coletiva em geral, sem se ater demais à excepcionalidade da riqueza industrial, nem tentar naturalizar ou essencializar os comportamentos a que nos habituamos. É isso que o torna, acredito, tão percuciente e, ao mesmo tempo, tão insuportável para quem acha que pensar é sempre propaganda.

Ao tratar da emergência histórica do capitalismo como sistema, Polanyi apresenta a ideia de que a economia de mercado, baseada em trocas e viabilizada pelo mecanismo de preços, teria se “desenraizado” da sociedade, tornando-se autônoma e, em um movimento de inversão, “enraizando”, por sua vez, a sociedade na economia. Esse momento histórico é contraposto a outros três grandes princípios, ou lógicas, de organização da vida econômica. São eles a redistribuição, em que uma instância centralizadora, como os impérios mesopotâmicos, acumula os bens produzidos pelo coletivo como um todo e os redistribui segundo seus próprios critérios; a reciprocidade, da qual a troca é um caso particular, que designa um sistema onde diferentes partes trocam as suas produções através de um mecanismo de equivalências ou de um sistema de dádivas; e a domesticidade, responsável por uma existência predominantemente autárquica.

Quando a forma de mercado se torna dominante, diz Polanyi, não desaparece o espaço para modalidades dos outros princípios. Por exemplo, no caso da domesticidade, a família nuclear é responsável por muitas atividades cruciais da vida econômica; basta pensar no trabalho reprodutivo e não remunerado que recai sobre as mulheres. Da perspectiva institucionalista, a firma ou corporação também absorve uma parte do que cairia na categoria da domesticidade, internalizando modos de interação não mercantis. A redistribuição também ainda existe, especialmente na condição de subsídios, transferências, subvenções e doações, tanto do Estado como do setor empresarial. Instâncias de reciprocidade não mercantil aparecem, cá e lá, todo o tempo, incluindo presentes, favores e trocas ocasionais. Acontece que todos esses princípios se tornam sujeitos e secundários em relação à lógica geral da troca mercantil e monetária; seu valor é calculado a partir do vínculo que tiver com avaliações de mercado.

3. Sistemas alternativos

O que isso tem a ver com o desastre no Sul e a solidariedade que rapidamente se manifestou? Acredito que a resposta está em ver nessas iniciativas de organizar redes de doações, voluntariado e todo tipo de contribuição algo que vai se tornar cada vez mais comum à medida que a crise climática se desenrola, e por isso mesmo contêm a semente de uma futura recomposição da relação entre as lógicas econômicas que Polanyi apresenta.

É importante ter em mente que esse florescimento da redistribuição e das dádivas se deu num contexto não só de catástrofe, mas de comprometimento da distribuição habitual de bens e serviços pela via do mercado e do mecanismo de preços. Esse é um dos motivos pelos quais a preocupação do governador com o bom funcionamento do comércio local soa tão deslocada, justamente quando está paralisado o sistema que envolve logística, estocagem, venda, pagamento de salários, taxas e impostos, depósito das receitas no banco e por aí vai. Em que condição está esse comércio que ele deseja resguardar? Foram mesmo as doações que o colocaram nessa condição?

Já assistimos a outros momentos em que ruptura dos mecanismos de mercado produziram ondas de solidariedade ou circuitos econômicos alternativos, que emergiram espontaneamente, só porque era preciso. Foi o caso em situações de emergência que nada têm a ver com o clima, como o colapso argentino em 2001, cenários de invasão militar, guerra e pós-guerra, ou a queda da União Soviética. Ganharam vida formas de domesticidade, com comunidades tendo de prover suas próprias necessidades; redistribuição, com comitês organizando racionamentos; e reciprocidade não monetária, ou até monetária, mas alternativamente – como as redes de trueque na Argentina ou o scrip money da Grande Depressão.

É claro que o reverso disso é o surgimento de mercados negros, como também tem acontecido no Sul, com preços escorchantes e proprietários subindo aluguéis. Mas mesmo esse aprofundamento da lógica da troca com vistas ao ganho individual, com toda sua crueldade, é fruto de uma anomalia no próprio movimento de produção, circulação e pagamento.

Em todos estes episódios, a relativa volta à estabilidade que se sucede ao trauma restabeleceu os mecanismos de mercado, levando essas outras formas ao desaparecimento ou à marginalização – o trueque, por exemplo, existiu em pequena escala ao longo de todo este século, e agora reemerge com a ascensão de Milei e seu garrote. Algo semelhante se deu com todo o interminável rosário das calamidades ambientais no Brasil e outros cantos: circuitos de doações e redistribuição surgem e se dissolvem com a mesma agilidade.

4. Capitalismo de desastre

Desta vez, no entanto, a escala é muito maior, as necessidades mais urgentes e a resposta proporcionalmente mais ostensiva. Do dia para a noite, surgiram centros improvisados de recolhimento, transporte e distribuição de doações, com uma notável capacidade de coordenação. Foram criadas plataformas online dedicadas a identificar necessidades específicas e conectá-las aos doadores. Os voluntários afluíram às áreas afetadas, mas, dada a magnitude da destruição, só puderam agir com efetividade quando coordenados com grupos que conhecem melhor a região.

Aliás: ficamos horrorizados com a enxurrada de chorume que tomou conta das redes digitais, com seu repertório infalível de mentiras, compartilhadas pelos culpados de sempre. Mas nem sempre o mais determinante é o que está acontecendo online…

Voltando ao assunto, é claro que todas essas iniciativas também tendem a se desmanchar, quando enfim começarmos a ver uma melhora da situação no Rio Grande do Sul. Mesmo assim, é importante levar algumas coisas em conta.

Para começar, estamos tão habituados a pensar no capitalismo como infinitamente engenhoso, implacável e inventivo (pense, por exemplo, no Manifesto Comunista, que é de 1848), que podemos esquecer que ele tem as suas próprias fragilidades internas. Embora possa ser mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, como disse Fredric Jameson, esse poderoso sistema ainda precisa que o mundo esteja no seu lugar e seja relativamente estável. O capitalismo de desastre, nas palavras de Naomi Klein, pode prosperar em torno de deslizamentos, guerras e terremotos, mas se esses eventos se tornarem a regra, a ponto de as pessoas perderem a capacidade de vender sua força de trabalho e comprar seus meios de subsistência, em que solo o mercado vai fincar sua barraca?

Para colocar um pouco melhor: a oposição que Eduardo Leite apresentou entre investir em prevenção e garantir o equilíbrio fiscal é fruto de modelos de pensamento em que se dá por certa a possibilidade de produzir, distribuir e consumir, de modo que choques são a exceção e simplesmente impactam preços e quantidades. De um jeito ou de outro, a moeda vai fluir. Não se leva em conta que a estrutura produtiva e os canais logísticos possam ser nocauteados, nem que as interrupções sejam de fato imprevisíveis, com gargalos surgindo a todo momento. A ideia de que um orçamento saneado é o que dá músculo para fazer investimentos depende de uma situação em que seja possível orçar com alguma segurança. Só que quando a instabilidade do mundo real é grande demais, qualquer orçamento é em boa medida uma peça de ficção.

Um aparte: a esse respeito, vale a pena acompanhar o trabalho de Isabella Weber sobre a inflação em tempos de emergências sobrepostas. Suas sugestões para mitigar a variação incontrolável de preços, algo que se apresentou nos Estados Unidos e na Europa com o bloqueio de cadeias de suprimento e com a guerra na Ucrânia, respectivamente, vão em boa medida na direção do que estou sondando aqui: estoques reguladores, controles de preços, patamares de consumo etc. O mais interessante é que até 2020, um economista teria que ser muito heterodoxo para dar ouvidos. Hoje, até alguns neoclássicos já entenderam que não dá para brincar com certas coisas.

Outro ponto é que a experiência que estão vivendo aqueles que se envolvem diretamente nos atos solidários, recolhendo ou distribuindo roupas, alimentos e remédios, ou conectando pessoas e grupos, representa uma valiosa aquisição de hábitos e saberes, ou seja: práticas. Com a sucessão das calamidades ambientais, e a esta altura só os mais alienados negam que estão se sucedendo e vão se apresentar ainda mais intensas, ao mesmo tempo em que mecanismos tradicionais passam a ratear com mais frequência e, como tratei no último texto, o planejamento em grande escala se revela mais complicado, faz sentido esperar que a prática de lógicas econômicas não estritamente mercantis comece a se solidificar, pelo menos do lado da distribuição, senão da produção. O recurso às soluções alternativas tende a perder, digamos assim, seu caráter alternativo, passando a constituir uma resposta permanente, uma verdadeira tendência.

5. O precedente da pandemia

Talvez essas considerações tenham soado um pouco panglossianas, admito. Principalmente porque o problema do futuro da atividade econômica não aparece só pelo lado da distribuição. Então alguém poderia objetar: está muito bem que a crise suscite novos processos distributivos, mas o que isso muda, se não afeta o sistema produtivo como um todo?

Neste ponto, acho que vale a pena recuar um pouco no tempo e lembrar da pandemia, que foi considerada, nem faz muito tempo, uma espécie de “ponto inaugural” do século do Antropoceno. Também ali houve um enorme surto de solidariedade, em escala global, que envolveu desde pessoas se cotizando para comprar refeições de restaurantes fechados até a pressão no Congresso pelo auxílio emergencial. Aqui e em muitos outros países foram criados instrumentos para sustentar a renda das famílias, mas também o fluxo de caixa de pequenos negócios.

Esses instrumentos vão um pouco além do que já se pensava, nos anos anteriores, em termos de renda básica de inserção, universal e incondicional ou não. O motivo é que já não se tratava mais de garantir o acesso dos mais vulneráveis ao sistema do consumo e, portanto, da produção para o mercado e o lucro. O problema passou a ser o de estabelecer formas de reequilíbrio em situações de ruptura e instabilidade. Uma vez que as estruturas do mercado e do capital começam a se tornar dependentes desses mecanismos, elas já se encaminham para um retorno à condição de “enraizamento”.

Também não devemos esquecer que as iniciativas de política industrial, como a americana, devem muito a esse momento traumático e à percepção de que nem sempre esticar cadeias globais de suprimento em nome da redução de custos é uma ideia razoável. Vem emergindo algo como uma consciência de que as situações antes excepcionais passam a ser recorrentes, levando a uma ainda incipiente tendência à formulação de mecanismos compensatórios. Mais uma vez, o provável resultado, caso essa necessidade se torne permanente – e tudo indica que é o rumo em que stamos –, é o “enraizamento” dos mercados na vida social mais ampla.

Voltemos ao Rio Grande do Sul: além de algumas iniciativas de pequena escala, embora simpáticas, como empresas que dedicaram parte de sua produção a esse circuito distributivo, é sempre bom lembrar que a – vamos chamar assim – “crise do arroz” tem dois lados. O primeiro é esse que se arrasta até agora, com a busca por fornecedores no mercado internacional, encabeçada pelo governo federal, na tentativa de contornar os aumentos de preço que vendedores estão promovendo desde já, obedecendo à “lei da natureza” que se tornou a relação de oferta e demanda. Aliás, estamos diante de uma forma clássica de redistribuição, conduzida pelo Estado.

Mas o que interessa mesmo é o segundo lado, em que o cálculo da produção de alimentos responde à crise. É instrutivo o caso das cozinhas solidárias, envolvendo o MTST, o MAB, a CNBB e outros movimentos, na medida em que dezenas de assentamentos da reforma agrária direcionam parte da sua produção para evitar a penúria no Sul, com o uso dos canais de distribuição do MST. Neste ponto, vemos em potência uma organização produtiva coesa, em grande escala, que seria efetivamente capaz de incorporar diferentes princípios da economia não formalista, nos termos de Polanyi, mas substantivista, isto é, levando em conta a reprodução das condições de vida.

Claro que nada disso tem força a esta altura para competir com o gigantesco aparato técnico-financeiro que domina o planeta, lançando satélites e dejetos, emitindo debêntures e carbono, inovando nos mecanismos de captura da atenção e nas tecnologias urbanas de engarrafamento verde. Mas sabemos que essa máquina começa a engasgar, já que seus canais de reprodução se entopem com sua própria saliva. Sabemos também que os princípios de organização econômica da vida comum, esses mesmos que encontramos em Polanyi, se reconfiguram de acordo com as demandas da história, de tal maneira que o “desenraizamento” do capital não é uma condição definitiva.

É triste constatar que a emergência de arranjos econômicos mais amplos se torna concebível devido à deterioração das condições de vida na Terra tal como a conhecemos, isto é, as condições da nossa vida. O simples fato de termos chegado a este ponto é um testemunho da incapacidade que demonstramos para construir alternativas duradouras e em grande escala à voracidade predatória do capital, sobretudo sua forma radicalizada do último meio século. Temos que ter em mente, com toda a clareza, que a emergência ambiental passa longe de ser uma oportunidade para mudar o que quer que seja. Na verdade, mudar é a única saída para respondermos às calamidades que advêm da degradação ambiental. Tomar essa saída exige um trabalho cuidadoso de construção e articulação, algo que ainda só começamos a vislumbrar em episódios como o do dilúvio gaúcho.

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O Sul, a prova adiada e o fim das distopias

Nas palavras do secretário de Comunicação Social do governo federal, Paulo Pimenta, o dilúvio no Rio Grande do Sul é o maior desastre ambiental já ocorrido no Estado. Geralmente catástrofes são ranqueadas pelo número de mortes e desabrigados ou, na perspectiva econômica, pelos prejuízos que se acumulam. Seja qual for o critério, não sei em que posição a atual desgraça gaúcha apareceria na lista nacional ou mundial. Só sei que não é essa quantidade que revela a dimensão do que está acontecendo.

Já sabemos que episódios mortíferos como esse vêm se sucedendo a intervalos cada vez menores. Inclusive, parte do RS esteve debaixo d’água ainda no ano passado. Mas este agora subiu um degrau: algum outro desastre ambiental no Brasil afetou tão amplamente a infraestrutura da vida moderna? Não me lembro de um caso comparável, envolvendo aeroportos fechados, com pistas às vezes inacessíveis até mesmo para aviões que trazem ajuda; barragens rompidas; cidades e bairros isolados; estradas cortadas; rede elétrica, internet e telefonia comprometidas.

Na escala global das catástrofes, a desgraça no Sul representa a chegada a um patamar qualificado. Se temos algo a aprender, é algo que vai nos acompanhar pelo resto das nossas vidas: que, no mundo altamente conectado em que vivemos, uma perturbação nunca é apenas localizada e temporária. Melhor dizendo, um episódio como um desastre natural jamais é “só ele mesmo”, nem se resume a suas causas imediatas e efeitos diretos, nem – e isto é o mais importante – fica circunscrito a seu próprio regime de existência. Não existe mais a natureza fixa, estanque, estável, de um sistema climático que seria externo aos demais: social, econômico, político etc. Tudo se espraia e contamina outras lógicas, outros sistemas e realidades.

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Essa vinculação se revelou no começo do mês de uma maneira até prosaica e, por isso mesmo, bastante instrutiva.

Quis o destino que o mesmo Paulo Pimenta fosse um dos responsáveis por comunicar ao país a informação que deixou explícito o transbordamento do desastre local para uma reviravolta nacional, passando do clima à administração pública, da vida dos gaúchos às ambições de concurseiros país afora. Na sexta-feira, 3 de maio, o secretário estava em Brasília, ao lado da ministra da Gestão, Esther Dweck, para anunciar em entrevista coletiva o adiamento do Concurso Nacional Unificado (CNU), mastodôntica prova organizada pela Cesgranrio e marcada para o domingo imediatamente seguinte, ou seja, meros dois dias depois.

Pode ser só uma predisposição de minha parte, mas sinto que captei, enquanto acompanhava a coletiva, um ar atônito em ambos os ministros. Desconforto, certamente; talvez uma dose de incredulidade. E não só neles. Eu diria que algo assim transparecia em todos os presentes. Para quem estava desde o ano passado planejando uma operação com 2,14 milhões de candidatos e 6640 vagas, posso imaginar que a ideia de ter que adiar as provas nem passou pela cabeça dos organizadores. De fato, algo assim chegou a ser perguntado por uma repórter. Resposta: não havia mesmo previsão de adiamento no edital.

O CNU é uma iniciativa de vulto, que o governo federal coloca no topo de suas prioridades. É uma inovação no recrutamento do setor público, visando reverter quase uma década de esvaziamento do funcionalismo. É uma empreitada dispendiosa e arriscada, que mobilizou um aparato logístico e de segurança considerável, com candidatos e candidatas já em deslocamento. Mas teve de ser interrompida às pressas. Por coincidência, o governo estima que a população atingida corresponde quase exatamente ao número de candidatos do certame: 2,1 milhões.

Até mesmo a tomada de decisão dá mostras do impasse em que as inundações colocaram o poder público. Quando a imprensa foi convocada, já havia dezenas de mortos, cidades inteiras estavam quase incomunicáveis – consta que mais de 80% dos municípios do Estado foram atingidos – e era evidente que os concurseiros gaúchos estavam excluídos da prova. Se a comunicação ao público geral só ocorreu na tarde de sexta-feira, é porque desmobilizar os sistemas já engatilhados é quase tão difícil quanto colocá-lo em movimento. Imagino que até mesmo a lei orçamentária precise ser emendada.

Essa irrupção do concreto, palpável, real, no universo do planejamento, da abstração e da burocracia ilustra à perfeição a realidade em que estamos entrando. Quero chamar atenção para a diferença radical entre o efeito-dominó da catástrofe gaúcha sobre o CNU e outros abalos que vêm sendo comentados, sobretudo de natureza econômica.

São dois: um diretamente econômico e um mais financeiro. Primeiro: já sabemos que a produção de arroz, carne e trigo será comprometida, pressionando os preços, o que leva à necessidade de importar, já anunciada. As ondas de choque podem chegar às decisões sobre taxas de juros e, com um repique da inflação, consequências políticas desagradáveis são verossímeis, embora nada certas.

Segundo: as seguradoras já vêm chamando a destruição nas cidades e plantações gaúchas de “maior sinistro da história do Brasil”. O custo da reconstrução pode abalar algumas dessas instituições e deve significar uma realocação de recursos, o que enfraquecerá outras políticas públicas. Quanto aos seguros, como já é previsto há tempos, podemos esperar um progressivo e pesado aumento dos prêmios, encarecendo investimentos de toda ordem, principalmente os mais ambiciosos e caros, como os de infraestrutura.

Em ambos os casos, estamos falando de problemas graves e de longo prazo, mas, em boa medida, já incorporados ao cálculo. É comum ouvir de economistas e gestores, mas também de alguns cientistas dedicados aos sistemas complexos, que a interconexão global dos sistemas logísticos, financeiros e econômicos permite contornar as rupturas e falhas que eventualmente apareçam em alguma parte, garantindo a estabilidade do todo. A referência habitualmente evocada é o projeto inicial da Arpanet, de 1966, o embrião da nossa internet: conexões descentralizadas e cada vez mais numerosas são quase impossíveis de derrubar. Para dar um exemplo, certa vez ouvi de um célebre economista americano que, no contexto da mudança climática, a globalização será uma bênção para a África, que pode importar comida quando suas safras quebrarem.

Por outro lado, outros cientistas ligados à complexidade também alertam que esses sistemas ultra-complexos, embora resilientes, são vulneráveis. Isto significa que conseguem resistir a deformações e se manter estáveis, mas se houver uma perturbação capaz de comprometer o sistema, ele ruirá completa e subitamente. Numa analogia perigosa, mas não absurda: assim é a morte de um organismo, por exemplo, ou o colapso de um ecossistema. Para voltar à referência da Arpanet: nem sempre o problema está em evitar que as transmissões se interrompam. Pode ser que ele esteja no que se transmite. Foi pensando nisso que, ainda nos anos 1990, Edgar Morin cunhou o termo policrise, hoje retomado pelo historiador Adam Tooze e teorizado pelo think tank canadense Cascade Institute.

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É claro que o adiamento de um concurso está longe de corresponder à ruína de um sistema – ou de múltiplos sistemas conectados. Mas é um aperitivo, na medida em que deixa entrever o salto que se produz de um problema a outro. Tragédias climáticas com dezenas ou centenas de vítimas vêm se repetindo ano após ano no Brasil, mas até outro dia era fácil acreditar que o problema atingia só os habitantes das regiões afetadas, nada mais. A cada vez, vemos rapidamente a solidariedade se manifestar e nos emocionamos, enquanto procuramos culpados que, na verdade, já conhecemos. Mas, passados alguns meses, o assunto desaparece. Foi necessário que coincidisse no calendário uma dessas catástrofes e uma empreitada de natureza completamente diferente, administrativa, política etc., para que um vínculo indissociável ficasse explícito.

Vínculo entre o quê e o quê? Entre a sorte dos que sofrem as intempéries diretamente e o destino de todos os demais. Mal comparando: há alguns anos, quando pela primeira vez as cinzas de queimadas na Amazônia escureceram o céu de São Paulo durante o dia, ainda podíamos (tolamente) tratar o caso de maneira anedótica, mera curiosidade sobre o regime dos ventos na América do Sul. Por quê? Simplesmente porque cá na metrópole nenhuma grande rotina foi comprometida, à parte, talvez, o afluxo de crianças e idosos aos hospitais, queixando-se de asma e bronquite.

Desta vez, o caso foi bem diferente. Além das tradicionais ofertas de ajuda federal e de recolhimento de doações, das expressões de surpresa de um governador que cortou as despesas de preparação e adaptação, a realidade de dois milhões de pessoas em todo o território nacional foi transtornada, em aspectos que nada têm a ver, ou assim pensávamos, com chuvas.

Dá para comparar o sofrimento profundo de quem perde parentes, casa e pertences com o desconforto de quem só está postergando um projeto de vida? É claro que não. O que importa, ao constatar a conexão entre essas duas realidades, é que ela nos coloca diante do que tem sido chamado de “novo normal”. Para quem achava que essa expressão dizia respeito só a ver pela televisão – quero dizer, pela tela do celular – as imagens de inundações, incêndios e secas; de gente perdendo tudo, até a vida; de territórios sendo devastados: pense de novo.

O caso do CNU também sugere com limpidez a dificuldade cada vez maior que teremos em planejar, articular projetos e programas, em grande escala. Sem levar em conta o fator climático, que cada vez menos podemos dizer “imponderável”, o governo quis realizar um projeto amplo e sólido – e descobriu que era frágil. Acredite, não vai ser a última vez que algo assim vai acontecer. Não é à toa que a expressão “novo normal” está se tornando corrente. Só que em vez de “novo normal”, talvez fosse melhor dizer “nova norma”. Daqui por diante, a norma vai ser que todo planejamento estará sujeito ao fracasso por motivos que cairão do céu ou emergirão das profundezas, não exatamente sem aviso, mas com avisos que teremos dificuldade de escutar, porque emitidos em linguagem telúrica, mais que adâmica.

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Quando vi o plano-sequência do drone entre os prédios de Porto Alegre, e mais tarde o mapa das áreas alagáveis e alagadas, meu primeiro instinto foi dizer que parecia um “cenário distópico”. A semelhança com os filmes e livros pós-apocalípticos retornou diante das imagens de pessoas resgatadas, plantações soterradas, deslizamentos de terra, tudo isso misturado a postagens encharcadas de mentiras, golpes, montagens, discursos negacionistas e aproveitadores. A cacofonia de uma disputa político-cultural sobreposta à realidade crua das vidas se desfazendo em tempo real, além de ecoar sensações sinistras da época da pandemia, também me pareceu ser a epítome da distopia contemporânea.

Mas também foi durante a entrevistas coletiva que anunciou o adiamento do CNU que me dei conta de que essa analogia é frágil, ou melhor, estéril. Nenhuma obra distópica se preocupa em mostrar o que se produz na mesquinharia das decisões burocráticas. Os limites da capacidade de planejamento e execução de políticas públicas não são matéria para nenhuma obra pós-apocalíptica que eu conheça. Nenhuma cena de La Jetée ou Mad Max é dedicada à obtenção de créditos adicionais na lei orçamentária ou em emendas ao plano plurianual.

Há muito tempo estamos falando em fim das utopias: o socialismo real não foi nada do que se esperou dele, a social-democracia se entregou de muito bom grado ao neoliberalismo e a modernidade dos séculos XIX e XX se desmanchou no ar, morrendo não com um gemido, mas com um estouro – no cartão de crédito. Esteticamente, a derrocada desse tempo utópico de crescimento econômico e aceleração tecnológica proporcionou a era de ouro das distopias: de Akira ao Conto da Aia, do Exterminador do Futuro à Estrada (Cormac McCarthy). Logo antes da pandemia, uma das séries de maior sucesso era a inglesa Years and Years, em que o cenário é o nosso mundo atual, com apenas um mero desvio, um clinamen, para a distopia – o que já bastou para ser aterrorizador.

E o que se pretende com a distopia? A utopia era um não-lugar que, desde Erasmo de Roterdã, se buscava imaginar, como contraste com as limitações de imaginação do mundo real e presente no espaço. Seu reverso distópico emergiu como fabulação ou representação dos horrores de um possível mundo vindouro, contrastável com o atual, de modo a ressaltar ou resguardar o que valia a pena salvar. Há muito de parábola bíblica nas distopias, ou de fábula de La Fontaine, por estranho que isso possa parecer. Como se a história dissesse: “fique sabendo das consequências possíveis dos seus atos”.

Talvez tenha chegado a hora de falar em fim das distopias, como antes falamos em fim das utopias. De que adianta amplificar e dar corpo aos perigos de uma deriva do mundo real se as cenas do nosso storyboard estão ocorrendo logo ao nosso lado? E se, como bem entenderam os executivos de seguradoras e os gestores públicos do CNU, a questão hoje não está em fabular os horrores, mas em administrá-los? Por esse prisma, parece que a noção de distopia está perdendo o sentido e não é mais capaz de expressar o que se pretendia com ela. O pós-apocalíptico implica imaginar a passagem a esse pós, mas não há mais passagem a realizar, já que estamos em plena transição.

O que vemos no sobrevoo da Porto Alegre alagada não tem nada a ver com uma passagem ao pós. Vemos ali o que vimos com o ciclone no mesmo Rio Grande do Sul, ano passado. O que vimos durante a pandemia. O que ouvimos de conhecidos que contraem dengue com cada vez mais frequência. Assim como há alguns anos vimos o túnel do metrô de Copacabana transformado em um canal veneziano enterrado e eletrificado. E como vimos em 2014 o leito das represas no entorno de São Paulo transformado em solo craquelado, como na tradicional imagem das secas do sertão. E acompanhamos a destruição do rio Doce com rejeitos de minério. E também o avanço destrutivo sobre o cerrado e a Amazônia…

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É curioso como, se é para falar em termos de gêneros literários, estamos mais próximos da lógica de um drama com toques de ficção científica, ao estilo do Inimigo do Povo, de Ibsen, do que de qualquer grande distopia. Uma boa parcela das distopias – não todas, claro – retratam o que se sucede a uma grande ruptura, algo destrutivo e, em geral, desconhecido, que de um golpe deixou atrás de si um mundo irreconhecível e arruinado.

Acontece que nosso cenário, hoje, é outro. Envolve males perfeitamente conhecidos, previstos, modelados, experimentados na pele em um crescendo paulatino. É o caso clássico do “eu avisei” encarnado pelo personagem Thomas Stockmann, o médico de Ibsen que descobre a contaminação da água no spa da cidade. É a primeira vez que me dou conta de que esse texto tem um toque discreto de ficção científica, talvez porque só hoje a ficção científica esteja tão próxima e palpável, não como distopia, mas como drama – o que inclui o drama burguês clássico, a que a obra de Ibsen pertence.

Isso ajuda a explicar por que o adiamento do CNU me pareceu tão importante: porque é matéria de planejamento, de capacidade técnica, talvez até mesmo – numa incursão trágica, mais que dramática – de húbris humana. A dança perigosa entre a capacidade técnica e a potência dos elementos se manifesta também de maneira mais evidente no Rio Grande do Sul, onde a força das águas – e deveríamos dizer: a força “nas” águas – comprometeu o sistema de comportas que desde a década de 1970 mantém no seco as partes mais baixas da cidade, a começar pelo centro.

Muitas cidades dependem de sistemas semelhantes: assim como a engenharia gaúcha procurou soluções grandiosas para evitar a repetição da enchente de 1941, Paris criou seus reservatórios para não passar de novo pela inundação mortífera de 1910. Cidades construídas sobre pântanos, como o Rio de Janeiro ou Berlim, drenam suas terras alagadas e preenchem com prédios o espaço recém-conquistado. Nos vales, as cidades precisam de piscinões, a exemplo de um gigantesco, abaixo do estádio do Pacaembu, de que Paulo Maluf tanto se orgulhava. Atualmente, para demonstrar de novo e de novo a tendência à corrida insensata para estar sempre um passo à frente do potencial de aniquilamento, metrópoles costeiras erguem muros contra um mar de ressacas cada vez mais – como se diz das ressacas – homéricas.

E é essa espiral que temos chamado de mitigação e adaptação. Essa corrida para adiar sempre um pouco mais a derrota. Enquanto isso, onde o engenho e a arte não alcançam, seja por falta de imaginação e planejamento ou de interesse e investimento, as catástrofes se sucedem, seja no sul da Bahia, na Amazônia, no Cerrado, ou mundo afora – geralmente a parte mais pobre dele. Nos lados de dentro, aqueles que procuram se proteger; nos lados de fora, uma crescente classe de refugiados climáticos. E mais uma vez, as chuvas do Sul mostram: só para muito poucos é possível estar seguro de permanecer em algum lado de dentro quando chegar o próximo desastre.

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Quando terminei de escrever o que está aí em cima, ainda tinha uma minhoca rodopiando na cabeça. Ela perguntava: se estamos no fim das distopias, depois de atravessar o das utopias, o que resta? Não sei. Inventar alguma coisa cabe aos nossos escritores e artistas.

Só posso dizer que, claramente, os horizontes se encurtaram: não mais, digamos, histórias situadas em 2130, mas que se passam depois de amanhã. Espaço para a ficção científica certamente haverá, mas talvez de um jeito que não seja evidente. Seria uma ficção científica um pouco diferente, muito mais próxima das nossas “vivências científicas” e das nossas “angústias científicas”?

Também é possível que o fim das distopias convide ao renascimento das utopias. Quem sabe?

Talvez já seja isso o que vai fermentando em publicações e festivais de cinema recentes. Tem feito sucesso um gênero ainda indefinido, que transita pelo documental, pela reportagem, não raro também pelo confessional. Na verdade, talvez não seja bem um gênero, mas uma linguagem que perpassa outros gêneros, do melodrama ao terror. Seja como for, o que tem sido lido e visto ultimamente – e não vou citar exemplos, para não direcionar a atenção – trabalha frequentemente sobre um material composto por experiências de quem teve de reconstruir, reinventar ou reimaginar uma vida, algo análogo ao que é vivido pelos refugiados climáticos, essa categoria nova com que estamos nos acostumando.

Quando lemos o que dizem, geralmente em tom de alerta, os autores oriundos de povos originários, por exemplo, na pior das hipóteses estamos colhendo o conhecimento de quem conhece os plenos efeitos de uma catástrofe se abatendo sobre sua cabeça e, desde então, se mantém ao abrigo sem tentar a queda-de-braço com as forças da terra, da matéria, dos céus. É político, sem dúvida, e o público sabe perfeitamente. E também é o formato da crônica de nosso tempo.

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