abril, crônica, descoberta, Estocolmo, férias, fotografia, frança, imagens, opinião, paris, parque, passeio, primavera, prosa, reflexão, Suécia, tempo, transcendência, tristeza, viagem, vida

Um jardineiro ao fim do dia

Sol De Estocolmo
Pensei que pudesse agarrar os ponteiros do relógio, mas chegou a hora de se despedir da cidade que passei a última semana a explorar. Não sabia que expectativa deveria ter, mas agora estou certo de que amanhã decolo com Estocolmo no coração. É triste descobrir um lugar apaixonante e ter de voltar ao tédio, aquele que existe em qualquer dia-a-dia, irritante e quase agradável de tão pessoal. Mas esse é o destino de todo espírito nômade. As novas paixões pertencem sempre ao campo das exceções, isto é, ao menos quando são paixões verdadeiras.

Numa situação dessas, a questão foge às categorias todas que deveriam reger a fruição de uma viagem. Qual é a melhor maneira de dar o adeus a uma cidade que me tocou, para que ela fique segura de que não será esquecida? Para Nicole, parece ter sido mais fácil escolher: no principal teatro da cidade, três peças seguidas de Strindberg, seu dramaturgo preferido e um dos maiores nomes da literatura sueca. Mas quatro horas e meia numa língua desconhecida são demais para minha coragem limitada, e dois ingressos custam o dobro de um. Enquanto ela se ajeita na poltrona, dedico o final da tarde a arrastar os pés pelas calçadas.

Deixo em casa o mapa. Não sei por onde vou mas, fora a expectativa de partir, está tudo bem. Era essa a idéia. Acabo por me achar de frente para a água, coisa bastante provável numa cidade construída em cima de um arquipélago. Se é o destino, obedeço. Sigo pelo passeio, escutando as marolas que dão com violência contra o cais. Ao longe, avisto o Chapman, um velho navio que virou albergue e está ancorado há décadas numa ilha chamada Skoppsholmen (conferi a ortografia no mapa). A bebida, ali, tem preço razoável, e há um terraço com vista para Gamla Stan, a cidade antiga, de frente para o palácio real (onde vive Sílvia, a rainha brasileira). Uma delícia de terraço, uma vista fantástica. Melhor idéia, impossível.

Atravesso a ponte devagar, atinjo o terraço, peço uma taça de vinho e escolho uma mesa. São oito e meia, o sol vai baixando. Acompanho sua evolução oblíqua, quase tangente ao horizonte. Tento perceber cada detalhe da coloração que muda pouco a pouco, imitando Monet diante da catedral de Rouen. Mas não sou Monet, sou Diego, e minha atenção prefere se concentrar sobre um jardineiro de boné azul, homem velho, rugas e costas curvas, a trabalhar sobre um canteiro de tulipas à beira do cais. A julgar pelo horário, não é empregado do governo. Está ali por conta própria, cavoucando a terra em movimentos lentos, mas cuidadosos, só pelo prazer de estar perto da primavera encarnada.

A esse ponto, o sol ainda forte acima dos telhados, lançando sua faixa de tilintares sobre a água, parece que existe alguma identificação sobrenatural entre mim e o jardineiro. Mesmo se ele não toma conhecimento de minha existência. Vejo com tanta nitidez a concentração de seu olhar, que é como se pensássemos juntos. Mas a natureza pensa diferente. O sol continua descendo e leva consigo a luz, os contrastes, a profundidade. O lusco-fusco expõe as limitações de minhas lentes de contato. De dia, chego a crer que enxergo como na infância.

Vem a noite, vai-se a ilusão. Os contornos se desfazem. Busco o jardineiro e só o que capto é uma silhueta quase duplicada. Aquela identidade sobre-humana entre nós, vinte minutos de pôr-do-sol bastaram para quebrá-la. Não estão mais ali o rosto, o olhar, a concentração que observei. Parece que foi embora uma pessoa, para a chegada de outra. Sei que é o mesmo homem, reconheço-o assim, mas de que me vale tudo isso, se o que sinto é coisa bem diferente?

Me atinge com desconforto a idéia de que tudo que conheço, reconheço e mesmo estimo pode ser vítima da mesma mudança de luz que me privou do vínculo com o jardineiro. Quanto mais familiar sou de algo ou alguém, mais me vejo no direito de interpretá-lo e mais estou enganado, porque conhecer melhor uma pessoa é multiplicar os sóis com que a vemos. Na intimidade, infinitas são as alvoradas e os crepúsculos. Penso no meu círculo: família, colegas, amigos, os que beberam comigo e os que foram além, me confiaram segredos e choraram mágoas no meu ombro. Quem vai saber o quanto é viciada e torta minha percepção de cada um! Mas tampouco existe garantia de que a noção que eles têm de si próprios seja melhor. Nem a que tenho de mim, por sinal.

Enquanto isso, Estocolmo continua diante dos meus olhos, mas anoitecida, com a luz das janelas projetada sobre as águas, como era antes a do sol. Tenho daqui a melhor das impressões e é esta que levarei de volta. Não como um conhecimento perfeito da cidade, mas como um quadro, um sentimento, diria mesmo um poema sobre a capital que não pode ser assim tão deliciosa, não é possível. A realidade, o insuportável quotidiano, não terei a oportunidade de provar para quebrar o encanto.

Isso é o que ficará, como uma utopia, como um certo sebastianismo, a idéia da cidade que alia beleza, civilização e prazer. O que terei diante dos olhos no próximo lusco-fusco é a imagem bem digerida de Paris. Dela, conheço bem o sorriso, a cólera, as rugas todas. E as expressões que faz quando quer seduzir ou rejeitar, como a diva que é. Da mesma maneira como conheço tudo o mais que me pareça próximo e íntimo. Da mesma maneira.

Padrão
abril, arte

Como aprendi sobre a morte

Bobby O Boneco De Neve
Vou ter de deixar para a próxima o tal comentário sobre os plátanos, que venho prometendo desde o início do mês. Como sói acontecer no poço inesgotável de surpresas que é este mundo, veio se interpor a meus projetos botânicos um fenômeno insólito. Já a alma dirigia seus cuidados à sagração da primavera, ao final de mais um inverno tão ameno quanto desagradável; espaços já se abriam nos armários, para receber as carapaças que nos protegem desde outubro; passeios e refeições ao ar livre já estavam no programa. Mas São Pedro tinha outros planos. Mandou baixar bruscamente a temperatura, dos dezesseis para o zero mais quadrado. A tal ponto que, na madrugada de ontem, perigosamente equilibrado entre a saúde e a pneumonia, levantei-me da cama, espiei por uma fresta da cortina e constatei o absurdo: do alto vinha neve.

Em vez de me meter em divagações seriamente preocupadas com as piores questões climáticas de nosso tempo (e talvez essa fosse mesmo a reação mais adequada), corri de volta ao quarto e despertei Nicole. Sabedor de sua frustração por não ter visto um floco sequer de neve desde que chegamos à Europa, não podia deixar passar essa singular chance primaveril. Tadinha, ela acordou com olhos deste tamanho, grogue e incapaz de compreender meu entusiasmo. Isso, até o momento em que se acercou da janela e avistou os automóveis todos brancos. Como no pátio de um hospital. Ela saltitava de contentamento.

Puxei o casaco que tinha mais à mão, um cachecol, um gorro, um par de luvas. Meti-me na carapaça e saí. Como um turista tropical, o que no fundo não deixo de ser, tirei fotos e fiz desenhos na camada de gelo sobre os veículos. Corri até a janela de casa, bati no vidro, Nicole abriu. Finalmente, recolhi neve e mais neve, que resultou num boneco de um palmo e meio de altura, ereto sobre o parapeito. Bobby (não fui eu que o batizei) ganhou olhos de botões, um cachecol cor-de-rosa e terra espargida sobre a cabeça à guisa de cabeleira. Tudo na mais refinada técnica que aprendi quando garoto e não pudera mais aplicar.

Assim termina a parte alegre da narrativa. Bobby teve vida curta. A neve parisiense, à qual fui praticamente apresentado ontem, é tão fraca, que nem cobre de branco as calçadas. Nessas condições, um boneco de neve, como o sol de Gregório de Matos, não dura mais que um dia.

Pior do que aprender da existência efêmera é acompanhar o processo. Chegando em casa, parei diante da janela e me deparei com um corpo branco, ainda em pé, tendo ao lado a cabeça tombada, toda suja, sobre a terra negra de um vaso que em breve deverá receber flores. Do pescoço cortado não escorria sangue, mas filetes de água, como se a essência da vida se esvaísse lentamente do pobre Bobby. Tentei encaixar novamente a cabeça, ela voltou a tombar. Recolhi os olhos, reduzidos novamente a botões sem luz.

Ao anoitecer, restava do corpo de Bobby somente um cotoco amolecido. Pensei em guardá-lo na geladeira, mas venceu a sensação de que seria como meter os restos de um filho no IML. Aquele montículo de neve fazia pensar nos corpos dos imolados pelo fogo, embora tão oposto em cor e temperatura. Uma imagem dolorosa e, de certa forma, repulsiva. Estragou meu humor pelas horas seguintes.

Já deitado, pensei no infeliz destino de Bobby, que tão pouco pôde ver deste mundo antes que um sol fraco o consumisse lentamente. Vieram à memória passagens da infância, vivida numa cidade fria, muito mais do que Paris, coberta de neve por quatro ou cinco meses todo ano, a ponto de ao menos um dia de aula ser cancelado a cada mês do inverno. Lembrei-me principalmente de um homem de neve digno do nome, de cachecol, chapéu de cangaceiro e charuto, olhos, nariz e boca, que passou a vida toda de sentinela no quintal, vendo e cumprimentando as pessoas que passavam. Uma existência mais digna e bem mais longa que a do último boneco: quase dois meses. Mas acabou. Sua agonia foi semelhante à de Bobby, só muito mais demorada. Dia após dia, a massa do corpo ficava menor e perdia a forma, a poça se adensando na base. Cachimbo e nariz tombaram, os olhos furaram os flocos da carne, o chapéu e o cachecol foram logo confiscados.

Lembro-me de uma fotografia, já na primavera, desse homem de neve reduzido a quase nada. Em verdade, a fotografia não era dele: era um intruso, ao fundo, mas foi o que vi. A imagem é chocante. E a experiência de acompanhar a decomposição de um amigo que ajudei a conceber e montar, nem preciso dizer, ficou gravada com um selo de dor.

Foi a primeira vez em que aprendi algo sobre a morte. Com quantos anos? Cinco, no máximo seis. O falecimento de Bobby produziu um déjà-vu tenebroso. Foi como uma sessão de psicanálise. Entendo agora, também, por que os povos do Norte, enfim, do frio em geral, têm a expressão sempre tão triste e fechada. Não é a escuridão do inverno. É a experiência tão precoce da morte, repetida a cada ano no corpo frágil e roliço de um boneco simpático como Bobby.

Padrão