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O tempo e o Rio

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Desta vez, foi o motorista do táxi. Como se o céu não estivesse visível, enorme, através do pára-brisa, pesando grave sobre as pistas do Aterro do Flamengo, o bom homem esticou o pescoço e arqueou as sobrancelhas, na postura de quem quer avistar ao longe. Ainda nessa posição significativa que lhe esgarçava as peles do pescoço, emitiu um decreto carioca típico, idêntico ao que sempre escutei pela cidade, desde menino. Disse ele, alongando as sílabas:

– É… quando faz tempo feio, o Rio é muito triste mesmo.

Não conheço um só carioca que discorde.

Jamais em minha vida pude constatar tão rápido a verdade de um lugar-comum. Pousei no Galeão numa dessas madrugadas de bruma que fecham o Santos Dumont pela manhã, mas pela hora do almoço já deram lugar ao céu azul e à cerração. Enfrentei os primeiros incômodos do trânsito por uma Linha Vermelha esfumaçada e pálida, mas consegui atingir a cidade são e salvo. Fazia até um certo frio, guardadas as devidas proporções.

Mal cheguei e fui me dedicar à minha atividade preferida quando estou no Rio. Desci para caminhar pelos antigos bairros da Zona Sul – Catete, Glória, Largo do Machado -, onde resistem aqui e ali algumas belas fachadas de tempos gloriosos, algumas largadas, outras preservadas, todas sufocadas pelo horror arquitetônico e urbano que se espraiou pela consciência brasileira no último século.

Com um certo esforço, nesses belos dias de temperatura suportável e luz forte, é possível sentir-se caminhando em outra cidade, um Rio de Janeiro que diz respeito menos a nós do que a gente do estirpe de Machado de Assis, Pereira Passos, Coelho Netto, Nelson Rodrigues. O Rio pelo qual todo brasileiro suspira e sonha, ressalva feita aos cretinos, e olha que somos pródigos em cretinos.

Esse é um Rio talhado para captar as pequenas conversas, fragmentadas, mas pungentes. Os ambulantes, aqui, que riem histéricos e provocam as clientes; as senhoras, ali, que reclamam dos preços e dos jovens; em todo canto, as moças de coxas queimadas, que entortam pescoços por onde passam.

Há algo nesse Rio de Janeiro que é imortal, por mais que há décadas o asfixiem. Algo de muito atávico e brasileiro, uma cordialidade mansa, encantadora, uma beleza que está, sim, na paisagem, mas também nas pessoas. Sobretudo nas pessoas. Com tempo bom, o Rio é irresistível, mas perigosamente enganador. O vazio econômico parece irrelevante e a guerra urbana parece mentira, tão absurdos que não conseguimos acreditar em nenhum dos dois, essas tragédias que crescem pelos bastidores.

Rio, és estranho, és único.

E assim foi na terça-feira. Na quarta, ainda mais. O céu parecia ter ficado mais anil. Vi muitos desconhecidos que puxavam papo, muitos transeuntes caminhando quase a dançar, juro que minha visão periférica captou uma pincelada de civilidade no trânsito. Copacabana cintilava, as bandeiras na areia pareciam bailar o Quebra-nozes, caminhei pela orla até a Visconde de Albuquerque e fui cumprimentado por um punhado de pessoas que jamais havia visto. O caminho de volta foi pela Ataulfo de Paiva, excelente para me atardar pelas livrarias, onde todos os títulos pareciam interessantes, todas as capas elegantes, e recebi sugestões de vendedores que me tratavam como se me conhecessem desde a infância, eu que já perdi o hábito da familiaridade.

Eis o clima que reinava, até que o sol se pôs sobre a Cidade Maravilhosa.

Mas aconteceu alguma coisa na noite de quarta, na madrugada de quinta, em algum momento dessas cercanias, e o sol não voltou de manhã. O dia que se desvelou ao clarear era soturno, diria mesmo aterrador. Debrucei-me à janela, mas os prédios eram feios, concreto quadrado manchado por anos de chuva, montanhas encobertas revelando apenas os barracos encalacrados, e buzinas, e berros que soavam como grasnados, e fogos de artifício cujo motivo eu preferia não conhecer. Mesmo a folhagem das palmeiras, na rua Payssandu, era opaca.

Uma outra cidade.

Um pulo na rua revelou um povo que em nada lembrava o da véspera. Talvez a atmosfera opressiva, sombria, tenha se insinuado pelos humores dos passantes, dos estudantes, dos guardas, dos vagabundos, esses que sempre estiveram por aí, sempre aos montes, mas que às vezes podemos até achar pitorescos, tolos que somos. As gentes revelam seu lado mesquinho, sua vulgaridade, a falta de educação, respeito, princípios. A solidariedade parece dissolvida na grande nuvem que paira sobre as avenidas. Aquelas amenas conversas cujos fragmentos captei nos dias de sol para montar meu doce mosaico carioca, valha-me Deus, viraram do avesso. Vendedores e dondocas, bicheiros e secundaristas, no lugar de bater papo, passam a tarde a se espezinhar, resgatando da insignificância os assuntos mais comezinhos. É um susto tremendo descobrir nesse povo tão charmoso o pendor para as maiores baixezas. Um susto tremendo e amargo.

A luminosidade forte que delineava as figuras faz uma falta enorme. Por uma, como se alteram os rostos quando o contraste das peles queimadas com o branco enorme dos sorrisos largos dá lugar a perfis grisalhos e indistintos! Por outra, tornam-se mais visíveis os detalhes que melhor seria não ter de encarar; as pilhas de lixo que bloqueiam as calçadas, a confusão do comércio, mesmo o regular; as rodas mal traçadas de gente desocupada, barriguda, contente de não ter o que fazer. Nas bancas, os jornais com manchetes mentirosas, deliberadamente ofensivas à inteligência e ao bom gosto do público. Os vendedores, espelhando o produto que expunham, só faltavam enfiar nos bolsos dos passantes, mediante o achaque de somas absurdas, os pasquins que parecem infestar a cidade.

Em dias difusos como esta quinta-feira, as belas cores de ontem desaparecem, substituídas por uma feiúra e um mau gosto que não fazem jus ao Rio de Janeiro, aquele Rio de nossos suspiros e sonhos. Mas é impossível não reconhecer aí mais um elemento do enorme paradoxo que é essa cidade sem par. O lado feio e de mau gosto é claramente um dos tantos alicerces que sustentam o mito carioca. O mito, sim, e a verdade, sendo que raramente conseguimos distinguir quando é um e quando é outro, ainda mais no Rio de Janeiro.

Meu sentimento é de que preferia não estar na cidade neste momento agudamente deprimente, em que até respirar é difícil e desagradável. Mas estou, mas vi o que vi, e não é nada que já não conhecesse, mas que a distância fez quase esquecer. Contudo, também sinto, ainda que soe contraditório, que aceitaria de bom grado esse quotidiano, deitando e acordando para Rios tão diversos quanto a diversidade dos dias, e sem os quais não haveria um, unificado, que fosse o Rio de Janeiro.

Sobretudo sinto que, hoje, para acessar aquele Rio de Machado, Nelson, Coelho Netto e Pereira Passos, é preciso ter a coragem de atravessar esse outro Rio, superar a cidade de Cesar Maia, Brizolla, Garotinho, Kleber Leite. Como quem supera a montanha do Purgatório para se banhar na Ipanema do Paraíso. Com isso, finalmente, sinto que compreendo o porquê dos sonhos e dos suspiros. Principalmente dos suspiros.

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abril

A grande transformação*

Gente Sentada No Parque
Novamente sobre o Primeiro de Abril, quando saí de casa em busca de uma mentira e não encontrei. Como já expliquei no último texto, aliás. Por outro lado, e para meu grande espanto, o que encontrei foi uma nova cidade. Absorto na minha busca infrutífera, ganhei a rua, mas antes mesmo de atingir a esquina, já me sentia deslocado. Esta não é a mesma Paris de ontem, isto é, 30 de março; estes não são os mesmos parisienses. Terei atravessado um portal místico ao empurrar as cinco toneladas da porta do edifício? Terei sido transportado para outra realidade, outro país? Meu humor anda assim tão bom, que vejo tudo de outra forma?

Rumo ao pequeno parque escondido nos fundos do bairro, percorro as ruas do quotidiano como se explorasse as veredas de Atlântida. Mesmo os mendigos, encalacrados pelos últimos meses nas soleiras e nas escadarias do metrô, têm o ar de quem toma sol. Sentados em banquinhos de três pés, pedem seus trocados com gentileza, numa subversão tão perturbadora do desespero do inverno, que chega a parecer artifício. Um motorista com vocação para Nakajima quase atropela um motociclista, mas nem por isso um xinga o outro. Ao contrário, produz-se ali a Segunda Revolução Francesa: um pede desculpas ao outro e segue sua vida.

Quanto às moças, as célebres patricinhas francesas, elas trocaram seus cachecóis felpudos e brilhantes por coques estilizados. Chego a perder um minuto observando uma dessas estruturas de melenas: parece projetado por Calder, tamanha a delicadeza do equilíbrio, sob a ameaça da primeira brisa. É abril. Adeus botas de saltos mais altos que os canos, olá saias curtas e sandálias.

Descrito assim, pode parecer caso de dia ensolarado, mais quente do que os anteriores, irreversível final do inverno. Ledo engano. Primeiro de abril não foi mais quente do que 30 de março. Talvez a média tenha ficado até um ou dois graus mais baixa. Sol, houve. Menos do que no dia anterior, mais do que no seguinte. O horário de verão já vige desde o dia 21. Oficialmente, já temos quase duas semanas de primavera. Lanço a pergunta: que raios, afinal, mudou tanto de segunda para terça-feira?

Resposta singela, mas verdadeira: o mês. Nada mais. Não há ato psicológico mais forte que arrancar uma página de calendário. Abril é quando se fica mais alegre e se vestem roupas mais leves, certo? Pois bem: alcançamos abril, então é hora de inverter o guarda-roupa. Se eu disser que o francês deixa a condução de sua vida, em muito vasta medida, a cargo de datas, horas e outras funções matemáticas, vai certamente parecer exagero. Mas afirmo que, se for, é por muito pouco. A metamorfose está aí que não me deixa mentir. A mudança do vestuário não aconteceu gradualmente, tampouco a do humor. Foi, literalmente, de um dia para o outro.

É a regra. O mesmo acontece, por exemplo, no início do inverno. Os imóveis que têm aquecimento central automático o ativam, todos, quase sem exceção, em 15 de outubro. Eis o dia em que se começa a sentir frio. E, de fato, é o dia em que os casacos aparecem. Pouco importa que esteja muito mais quente que no dia 14. O dia 14 não é o dia em que se começa a sentir frio. É o dia 15, esse sim. Eis o dia, repito. Ponto final.

Cheguei a desenvolver uma teoria sobre o Primeiro de Abril. Assim como é a data em que as roupas se tornam leves (sob o risco de tiritar, não nos esqueçamos), é também o momento de começar a demonstrar alguma alegria, de vez em quando. Os sorrisos guardados no fundo do armário podem sair, empoeirados e cobertos de um ligeiro bolor. Daí a idéia de instituir a data de zombaria sobre os outros, de ser maldoso, mentir, pregar peças. É mais um pretexto para dar risadas; afinal de contas, os europeus precisam de fortes incentivos para gargalhar e, quando o fazem, normalmente exageram. Ainda hei de publicar uma tese a respeito.

Quanto ao que há de extraordinário e acintosamente belo na primavera de Paris, especificamente em abril, prefiro me ater ao texto do ano passado e à música que, naquele momento, embalou meus dias.

Na semana que vem, os plátanos prometidos!

* Título plagiado da obra magistral de Karl Polanyi.

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