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Dialética do triunfo conservador

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Aconteça o que acontecer no segundo turno, já se vê que os próximos anos vão ser difíceis. Não é que tenhamos uma Câmara e um Senado conservadores, simplesmente. É mais que isso: candidatos do mais profundo fisiologismo, retrógrados, histriônicos, reconhecidamente desonestos no discursos e corruptos na prática tiveram votação expressiva no início do mês. Teremos mais bancada da bala, mais ruralistas, mais fundamentalistas e isso não vai ser fácil.

É tentador atribuir o triunfo de tantos raivosos ao conservadorismo arraigado na sociedade brasileira, um conservadorismo pobre e mesquinho que se materializa nessas figuras. Todos nós vemos diariamente demonstrações dessa visão de mundo sectária, covarde e insidiosamente violenta. Daqui por diante, essas demonstrações, muito bem implantadas no Legislativo, serão um celeiro de manchetes vergonhosas.

Outra possível explicação está na falha grosseira daqueles que, outrora progressistas, buscaram assegurar sua posição no poder abraçando os representantes do Brasil mais retrógrado: era um abraço de urso. Esse Brasil retrógrado tem suas próprias preferências, pouco importa com quem esteja abraçado. A cúpula petista deveria ter entendido e foi avisada, mas aparentemente tinha outros planos. Pois. Em poucas semanas, essas lideranças que se acreditavam tão prescientes poderão se ver sem pirão, sem farinha e até sem panela. Quanto ao país, estará nos braços daqueles que se nutrem de seus maiores males.

Há mais explicações, todas elas muito verdadeiras, certamente. Mas em vez de tentar explicar o que aconteceu, pode ser mais proveitoso procurar sua relação com as dinâmicas do que já acontecia e continua acontecendo. Será verdade que a sociedade está ficando mais conservadora e isso se reflete nas suas câmaras de representantes? É um estranho diagnóstico, que poderia ser verdade a partir de algumas premissas: que 1) esse conservadorismo ampliado refletisse o acúmulo de frustração de uma ampla camada da população ao sentir-se atingida por processos sociais e econômicos, a começar pela redução da oferta de trabalho doméstico; ou que 2) o contingente que ascendeu na última década traga consigo uma ética da segurança a qualquer custo, de uma ordem social e familiar cuja maior garantia é ser absoluta, diante dos perigos quase indivisáveis em um mundo novo e inconstante; ou ainda que 3) a religiosidade brasileira, tão mística e variegada, tenha entrado numa espiral de fundamentalismo incontrolável e assustadora.

Uma resposta?

Todas essas premissas têm uma razoável parte de verdade; algumas mais, outras menos. Mas elas mesmas contêm suas negações e, ainda que possam oferecer respostas satisfatórias – no sentido de reconfortantes – para a questão dos motivos da votação tão conservadora, não esclarecem em nada quais são as dinâmicas que atuaram e continuam atuando.

Por exemplo, a frustração e a raiva de uma camada historicamente conservadora só podem assumir a forma de grande onda reativa se estiverem a contrapelo de um movimento mais lento, porém mais seguro. Adiante, caberá perguntar se esse movimento existe, mas por enquanto vale dizer que, se uma coisa implica a outra, a idéia do retorno a um estado básico e fundamental de conservadorismo ganha novas nuances. Voltarei a isso, mas por enquanto vale a pena manter em mente que reações são profundamente dependentes de algo a que reagir.

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Também é importante olhar de perto a identificação de uma população que sobe de vida e se torna refratária a idéias modernizadoras. Essa noção reflete o princípio, tantas vezes repetido, de que quem conquistou coisas na vida fica mais conservador, porque quer manter o que ganhou. Sim, é um público conservador, na medida em que precisa ter a segurança de que seu mundo, esse no qual e graças ao qual a vida melhorou, não vai desmoronar de uma hora para a outra: filhos deslumbrados que começam a usar drogas, casais que se separam para buscar ambições individuais, empregos perdidos por causa de absenteísmo e bebida etc.

Ainda assim, não podemos esquecer que quem está subindo na vida tem uma consciência aguçada dos limites da ascensão. Ou, mais que consciência, tem a experiência desses limites. Sabe que a faculdade que fez (e isso já foi um triunfo) não é das melhores. Sabe que pode ter orgulho do carro que comprou, mas vai dirigi-lo em ruas engarrafadas por falta de transporte público. O que não sabe é se, até terminar de pagar as prestações, as condições da economia ainda vão atuar a seu favor. É o tipo de sensação angustiante e frustrante que pode jogar pessoas na mesma situação do grupo mencionado no primeiro item: a sensação de ser vítima dos processos sociais, quando ontem mesmo era beneficiário.

Em grande medida, o que essas pessoas querem conservar, e o que as torna conservadoras, é uma não-conservação. Querem manter idêntico um estado de movimento constante, numa inércia algo paradoxal, quando se trata da vida política. Talvez o melhor exemplo seja a figura ambígua de Celso Russomanno, eleito com votação recorde em parte graças à bandeira da defesa do consumidor. Quem depende do consumo não quer ser passado para trás de jeito nenhum. Um componente crucial no desejo de manter o mundo do tamanho que sempre foi – isto é, pequeno – é que resulta em grande parte da constatação de que ele está se ampliando. E essa ampliação não chega sem uma boa parcela de ameaças.

A hipótese do discurso religioso é a mais complexa de todos, porque ele está vinculado, este sim, a movimentos muito profundos da sociedade que é difícil encerrar numa significação unívoca. É, aliás, um erro muito comum, como quando se diz que o evangélico, por exemplo, é mais rigoroso em sua fé que o católico, ou mais conservador. Para não me alongar demais numa discussão que não vai se resolver neste texto, deixo a recomendação de alguns outros.

A onda e o corpo

Todos os pontos acima sugerem que não existe um estado estacionário que subitamente tenha se tornado visível pela via eleitoral. E se existe uma mudança de direção, ela não é um bloco que abarca todo o país e o força para algum rumo. Por maior que seja o impulso de dizer algo como “é o fim!”, é bom ter em mente que a eleição é ponto nodal de uma dinâmica política, mas não é termo: nem fim, nem começo propriamente. Ainda que possamos traçar a narrativa do sistema político como uma sucessão de governos e legislaturas intercalados com eleições periódicas, essa narrativa sempre interage com outros ciclos e processos, alguns muito curtos (como a conjuntura macroeconômica e a ocupação de espaços nos governos), outros muito longos (como a maturação de ciclos econômicos, divisões de classe e reconfigurações fundiárias).

No caso do conservadorismo aparente que se revela na sociedade, como descrito acima, o que se pode vislumbrar é que algo tomou corpo, organizou-se; mas seria um engano profundo vê-lo como uma totalidade, a corporificação da mente coletiva. A idéia de que haja uma onda conservadora – e vamos dizer que o “corpo” mencionado acima é essa onda – implica que ela vá varrer algo da praia. Ela se levanta diante de algo, contra algo. O sentido de sua existência (se preferir: sua essência) é opor-se.

A bem dizer, a analogia do corpo é insuficiente: a onda conservadora é uma força. O que ela quer não é serser simplesmente, satisfeita consigo mesma (como poderíamos dizer de um corpo, por exemplo). O que ela quer é atingir algum outro corpo (ou outra força), derrubá-lo, quiçá anulá-lo, se tudo der certo, eliminá-lo. É uma onda reativa, e não é por acaso que o extremo do conservadorismo recebe o nome de reação.

Sendo assim, a primeira coisa a reconhecer é que se trata de uma manifestação visível de negatividade: se essencialmente é uma força que quer se opor (poderíamos brincar: o-por) a algo, é negação, não posição. A onda conservadora pressupõe para existir, e não faz sentido nenhum sem que esteja posto, algo que ela mesma identifique como seu contrário. Torno a isso logo mais.

O conservadorismo invisível

Por enquanto, ainda gostaria de citar um traço importante do conservadorismo: quando ele pode ser ele mesmo, é praticamente invisível. O conservadorismo essencial é quase a definição por excelência do consenso. É aquilo que não precisa ser enunciado. Por isso, não existe, não faz sentido, uma “onda” de conservadorismo bem instalado. A onda que pode existir é a do conservadorismo deslocado rumando de volta para o lugar fora do qual não pode viver por muito tempo: o centro, a base, o fundamento. Ou imitando esse retorno.

Pense em Bismarck, De Gaulle, Tristão de Athayde; ou Burke, Roberto Campos, Churchill. Grandes figuras conservadoras. Não são ondas, de maneira nenhuma: são rochas sólidas, frias e muitas vezes bastante admiráveis. Deles, pode-se até dizer que corporificam ou incorporam alguma totalidade presente no cerne de uma sociedade. Que semelhança têm essas figuras com nossos Heinze, Bolsonaro, Lorenzoni, Feliciano? Nenhuma, eu diria.

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Este é, finalmente, o ponto central do problema da onda conservadora: ela é composta de jatos d’água que não se parecem em nada com as rochas sólidas, aparentemente irremovíveis, do conservadorismo tradicional, que é maciço. A onda conservadora só existe quando é muito visível, quando exerce uma pressão muito forte, quando faz muito barulho. E é por isso que sua característica mais saliente é o histrionismo.

O histrionismo é mesmo um sinal de triunfo? Alguém que se coloca como anteparo para a chamada modernização dos costumes ou bastião da segurança amedrontada, vociferando contra o que entende ser uma ameaça existencial ao seu modo de vida, é plenamente vitorioso? Ou só é vitorioso até certo ponto?

A vitória do histrião

A vitória do histrião tem um alcance sintomaticamente curto: só chega até a beira do abismo, só persiste enquanto a derrota é iminente ou parece ser iminente. É por isso que o histrião é um histrião, e não um ativista ou o administrador de uma estado de coisas (um conservador efetivo). Para o histrião, é preciso que a ameaça seja iminente e constante. Sua resposta grosseira e grandiloqüente aparece, então, como um esplendoroso triunfo contra o mal. Só que esse mal não pode desaparecer, senão o campo de atuação e de existência do histrionismo some junto. O histrião é aquele que vive na superfície da aparência e luta para manter-se vivo ao garantir a permanência dessa mesma superfície. O histrião é o apêndice de seu inimigo, um inimigo que ele mesmo elegeu.

O que é o histrião? Não é o capitão de um navio em águas límpidas. O histrião é uma espécie de esquadrão suicida chamado para ocasiões que se anunciam catastróficas. O histrião é um kamikaze. Não há histriões e não há onda conservadora quando uma sociedade atravessa um consenso conservador. Nesse mar, não há ondas e o dissidente faz papel de lunático ou visionário. Só surgem reativos, histriões, quando brota o dissenso. Ou seja, quando surge um espaço até então desconhecido, inaugurando um novo regime da aparência. Só há onda conservadora onde há linhas de força correndo em sentidos opostos.

Isso posto, o que a onda conservadora nos diz sobre o Brasil? Não diz uma coisa só, e isso é que precisamos entender melhor. Aliás, precisamos investigar melhor. Vimos acima que o Brasil quotidianamente conservador existe, sim, e não deixa de ser natural que se represente no Legislativo. Vimos, porém, que não avançamos muito só com essa constatação. A solidez do conservadorismo brasileiro (com todas a perversão que contém, mesmo do ponto de vista de um conservadorismo mais castiço) está muito, muito abalada, e aquela rocha maciça está rachada. Ou, para usar uma imagem brasileira: milhares de cinzéis arrancam lascas dessa enorme pedra-sabão.

Não subestimemos a importância de episódios como os xingamentos ao goleiro do Santos e as conseqüências que tiveram. Os xingamentos sempre aconteceram, como bem lembrou Pelé, o rei do futebol e só do futebol, numa de suas declarações infelizes. O que não acontecia era a condenação do racismo. Não subestimemos a onda de torcidas organizadas gay, mesmo se tiver sido um fenômeno circunscrito às redes sociais: as pessoas estão se expondo no espaço público porque esse espaço está começando a surgir.

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Será pouca coisa o furor que cercou a “PEC das domésticas”? Será que a turma do “gagau” triunfou só por ter colocado seus histriões no Congresso? Talvez, mas só até um ponto: a beira do abismo. Eu pretendia não falar do segundo turno presidencial, mas vá lá: quando Aécio promete manter os programas sociais do PT, é mais que mero cinismo. Existem avanços que se pode até tentar esvaziar aos poucos, mas não se pode seriamente pensar que é possível remover de uma vez só. É o caso das cotas, da transferência de renda, da expansão do ensino superior. E tudo isso deixará marcas na população, mesmo quando elas preferirem candidatos conservadores.

(A propósito, recomendo vivamente este vídeo.)

Como se vê, as transformações da sociedade, muitas delas invisíveis e no plano do potencial, podem produzir resultados visíveis muito divergentes. Tem razão quem duvida de que mudanças se concretizem sem uma contrapartida institucional, uma forma perene e identificável que possa assumir seu nome. Mas formas assim não se compram no supermercado. Não estão dadas de antemão. Há descompassos e alternâncias de velocidade que são muito bem manobrados por quem domina os caminhos que já estão abertos. Abrir outros caminhos é tarefa mais árdua, incerta e demorada. Nesse meio-tempo, as emoções fervilham.

Outro terreno de jogo

É por isso, por exemplo – e aqui voltamos a algumas das questões que apareceram bem no começo – que não chega a ser absurdo que um período tão agitado como vivemos nos últimos tempos, de manifestações e violência escancarada, resulte num retrocesso eleitoral. Bastante gente se mostrou frustrada com isso, e não por nada: é frustrante, mesmo. Mas não inédito. Uma explosão coletiva como foi junho de 2013 é capaz de destruir muita coisa muito rapidamente, mas só consegue construir algo de concreto à medida em que vai esfriando. O rescaldo continua sendo como as cinzas de um incêndio e quem se aproveita é quem consegue se enfiar pelas brechas do sistema posto. É de se esperar que o histrião conservador seja o mais bem sucedido, mas não é o único: basta ver a votação do PSOL e do Jean Wyllys em particular, no Rio de Janeiro, e a notícia de que os candidatos das milícias foram rejeitados.

Eu disse que o momento explosivo do desejo no espaço público destrói rapidamente e constrói lentamente. Mas destrói o quê? Difícil dizer, quando tudo parece ter voltado ao normal. Por outro lado, essa normalidade é incompleta e certamente alguém está enxergando a situação com outros olhos. Isso se percebe por sinais vagos, cá e lá, a começar por um aumento das apostas. Primeiro, desses conservadores de estilo histriônico que discuti acima. Segundo, da esquerda de rua até ontem completamente desarticulada e deixada à sombra do PT vencedor, mas agora mais assanhada depois que o MPL fez e aconteceu. Dos Comitês Populares da Copa ao fortalecimento do movimento por moradia – e o senso de oportunidade dos Frias não permite que ignoremos o convite de Guilherme Boulos para ser colunista da Folha –, germes de articulação vão surgindo. Terceiro, pela figura de Marina Silva, que galvanizou as aspirações de muita gente que, oprimida pelas insuficiências do velho em política, encanta-se com a idéia de que houvesse uma nova.

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O que foi destruído? Pelo menos um certo consenso sobre as linhas em que o país se divide. Não hesito em dizer que a despolitização que vinha aos poucos tomando conta da sociedade, oriunda de um sistema político bastante despolitizado, sofreu uma fratura. Discreta, claro, mas visível, mesmo que em filigrana, mesmo que por sinais esparsos. As agruras do PT em diversas frentes dão testemunho dessa fratura, porque o partido acreditou poder beneficiar-se da despolitização para ocupar os espaços e empurrar os adversários para fora. Mais do que beneficiar-se dela, acabou promovendo-a. E o resultado foi lançar os adversários nos braços do histrionismo, ao mesmo tempo em que alienava seus melhores aliados potenciais. Agora o jogo será jogado em outro terreno.

Ao destruir, a explosão social, que se revela nas manifestações de rua mas não se limita a elas, pelo menos deve limpar o terreno para que as forças se realinhem. Parece que a política está de volta: tomara que façamos bom proveito dela. Haddad parece ter entendido, ou pelo menos vislumbrado esses sinais. Toda a briga em torno das faixas de ônibus e das ciclovias dá mostras de que há muita política para acontecer por aqui. E mesmo nesse caso, o que emerge primeiro é a golfada de histrionismo conservador.

Muitos dos nossos fantasmas coletivos vão emergir como efeito da onda conservadora no Congresso. Muitos contingentes da população vão ter de se situar e se revelar. Mesmo assim, ou exatamente por isso, o cataclismo do triunfo conservador precisa ser entendido como o aspecto fenomenal, visível, superficial, de um turbilhão de forças, recomposições, rearticulações.

Isso não significa que, daqui a poucas décadas, seremos necessariamente um país menos amarrado a modos de vida sectários e envelhecidos. Todavia, significa que antigas linhas de divisão e disputa, tendo caído na obsolescência mas continuado em vigor por muito tempo, estão começando a ceder o lugar para linhas novas, provavelmente mais condizentes com as forças que efetivamente disputam espaço. Os próximos anos serão difíceis, é claro, mas, olhando direito, o fácil pode ser mais assustador.

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A batalha perdida do pastor

A polêmica suscitada pela entrevista de Silas Malafaia a Marília Gabriela é uma daquelas oportunidades de ouro para levantarmos hipóteses igualmente polêmicas, com as quais tentamos chamar a atenção. No meu caso, não pretendo fazer uma análise detalhada das opiniões do pastor, como fez, por exemplo, o biólogo Eli Vieira. Meu escopo é mais abstrato e minha hipótese trata das diatribes de Malafaia no contexto de um fenômeno ainda vago, mas já repisado: “a volta da religiosidade”. O que quero sugerir é que a luta de Malafaia é uma luta vã, isto é, uma luta que só pode vir a acontecer porque sua premissa fundamental é uma admissão de derrota. Malafaia conduz uma briga perdida, provavelmente por querer.

Antes de mais nada, é preciso estabelecer um ponto, sem o qual estou só gastando meu tempo ao escrever e o seu ao ler. É preciso conceder ao pastor o benefício da dúvida e considerar, sem embargo de quaisquer evidências (contrárias ou favoráveis), que ele fala com seriedade e honestamente acredita tanto em seus métodos quanto em seus argumentos. Este postulado é indispensável, porque não foram poucos na história aqueles que adotaram posições extremadas, sobretudo perante a mídia, com o intuito exclusivo de criar para si próprios uma imagem socialmente relevante. Hoje, não são poucos a pensar que Malafaia se encontra nesse grupo. Mas, para efeito de argumento, suponho que não seja o caso, ainda que, como os mencionados, ele tenda a tratar argumentos, evidências e teses com uma leviandade espantosa.

À hipótese, então: parece-me que Malafaia luta (com sinceridade e galhardia, ainda que histriônicas) uma batalha perdida de partida. A grande questão é que ele se dirige a um público bastante particular e, diria eu, provavelmente numeroso, com proporção considerável entre seus fiéis. Não me parece que ele esteja se dirigindo a uma malta histérica e sanguinária de fundamentalistas religiosos, como levaria a crer seu tom de voz e a já referida leviandade. Para justificar sua condenação dos homossexuais, ao contrário, Malafaia busca justificativas na ciência: explicações comportamentais, dados genéticos, origens sociais e ambientais… Ele fala em cromossomos, em traumas, um vocabulário, cá entre nós, bem pouco teológico. (Volto à questão da teologia mais tarde.) E se ele faz isso, ora, é porque o público ao qual se dirige tem algum nível de exigência por explicações como essas, ou seja, faz questão de fundamentar suas opiniões e crenças em dados empíricos. De fato, pesquisas e mais pesquisas reiteram que, para a infelicidade de Silas e tantos outros, o público evangélico não é nem tão homogêneo, nem muito menos tão intolerante quanto costumam pintá-lo.

Troca de papéis

Observe que Malafaia não recorre à ciência simplesmente como citação. Contra Jean Wyllys, por exemplo, que é historiador por formação, o pastor tenta a carteirada do argumento de autoridade: “eu sou psicólogo”. Ele se coloca na discussão não como pastor, não como intérprete ou defensor das Escrituras, mas como psicólogo, ou seja, como autoridade científica! Sim, verdade, um psicólogo de formação não é necessariamente um cientista; pode muito bem, por exemplo, ser um profissional de RH ou trabalhar com marketing. Mas não é como Malafaia se apresenta: ele busca usar sua condição de bacharel em psicologia para se passar por cientista, ainda que isso, normalmente, exigisse publicações na área, entre outras coisas.

Mas a discussão, neste texto, não é sobre as qualificações acadêmicas do homem. O crucial, neste momento, é entender a dimensão dessa troca de papéis: Malafaia, por sua própria iniciativa, apresenta como credencial não a espiritualidade, mas a ciência. “A razão”, poderíamos dizer, se estivéssemos com pressa de fazer juízos. Mas não estamos com pressa. Por enquanto, tudo que quero expressar é que, ao se colocar como homem de ciência, ainda que pseudo-ciência, um indivíduo, pastor ou não, se submete de livre e espontânea vontade ao risco de refutação e à exigência de rigor metodológico. Isso é verdade mesmo para alguém que, paralelamente, ainda pode tentar a carteirada inversa, ou seja, reafirmar-se como autoridade religiosa, com uma posição inicial inflexível que coloca, desde o início, fora do alcance o tal rigor metodológico. Isso é extraordinário, porque é uma situação paradoxal, um beco sem saída em que ninguém o obrigou a entrar.

Esse é o elemento central da “batalha perdida” de que falei, mas ainda é preciso desenvolver. Lembremo-nos de que Silas Malafaia é pastor da Assembléia de Deus Vitória em Cristo, uma igreja herdeira dos avivamentos do século XIX, nos EUA e, por isso mesmo, uma religião de culto, ou seja, da experiência direta e individual do divino. Essas religiões, pentecostais e neo-pentecostais, recusam tanto quanto possível as exigências de discussão teológica, do estabelecimento de dogmáticas e da observância estrita de liturgias – elementos vigorosamente criticados nas religiões à época já estabelecidas. Nesse contexto, Malafaia é um líder espiritual, de fato e de direito, numa estrutura em que o direito decorre imediatamente do fato. Em outras palavras, ele tem seguidores, por isso é líder. Não há chancela de autoridade formal e hierarquizada, como no caso do catolicismo, por exemplo. Essa posição de líder espiritual, nem preciso dizer, é muito forte.

Sem embrago de toda essa força, Malafaia não consegue se bastar nessa posição. Ele precisa buscar combustível, munição e mantimentos fora da área espiritual. Eis um fato surpreendente. Se ele precisa fazer isso, é porque a autoridade da religião não basta mais para orientar o comportamento, nem mesmo a convicção, em certas áreas cruciais, como a sexualidade. Sem esquecer, é claro, que Malafaia, pelo histórico de sua religião, não pode recorrer àquelas formulações teológicas que renderam tantos embates, até guerras, entre protestantes e católicos, católicos e católicos, protestantes e protestantes. Como resultado, Malafaia, ao se entregar a incursões clamorosas no debate público, flutua entre inúmeros campos distintos, sem conseguir ancorar-se a nenhum deles: o pentecostal, o teológico-dogmático, o psicológico, o cromossômico… Se ainda fosse líder apenas espiritual, especificamente no estilo de John Newton ou Luigi Francescon, ele poderia deixar de lado o recurso à genética e fazer valer sua visão de mundo pela força da autoridade religiosa. Mas não é o que acontece, provavelmente porque já não são muitos os que estão dispostos a discriminar vizinhos só porque alguém poderoso diz que deve ser assim.

Por outro lado, também poderíamos perguntar que aspecto tem essa batalha perdida de Malafaia, quando a colocamos no contexto da anunciada volta do sentimento religioso. Aqui, para poder apresentar as tonalidades do problema, é preciso fazer um breve excurso. Quando falamos em retorno do sentimento religioso, geralmente não sabemos muito bem que sentimento religioso é esse que está voltando. Mas se colocamos isso em questão, a dúvida passa a ser relativa à idéia de que algo esteja mesmo voltando, isto é, que uma religiosidade do passado saiu de cena, mas agora retorna tal e qual. Afinal, se encararmos as manifestações religiosas de hoje, será que enxergamos um retrato fiel da religiosidade de meio século atrás – ou um século inteiro, ou dois…? E não basta responder que não, porque seria igualmente possível entender o retorno do religioso como o renascimento do espírito místico inerente ao humano, ou seja, sua atração pelo transcendente.

Ora, será que esse espírito esteve mesmo tão adormecido? É claro que não. A sede, o sonho de transcendência, pode manifestar-se de uma infinidade de maneiras. Nas catedrais góticas, nas construções harmônicas de Bach, nos sacrifícios de São Francisco de Assis, na voz dos pastores que entoam spirituals; mas também na conquista do espaço infinito, no desejo de dominar o mundo, no patriotismo cego, na fé inabalável de que são objeto o progresso, a propriedade, o mercado, a revolução. E o misticismo pode tanto ser monacal quanto pentecostal quanto psicodélico quanto druídico quanto futebolístico…

Ciência e fé

De que se trata, então? É aqui que retorna o tema Malafaia… Falei de um homem disposto a subordinar sua autoridade religiosa à chancela da ciência, ou de algo que se pareça com ciência, e reafirmei que isso continua sendo verdade ainda que ele esteja disposto a virar de cabeça para baixo o que dizem os estudos dessa mesma ciência. Não se trata de um homem qualquer, mas um homem que poderia perfeitamente abrir mão dessa chancela e cujo programa televisivo, ainda por cima, é acompanhado por centenas de milhares de telespectadores – de fiéis, por sinal. Estamos, então, diante de um caso de preceitos religiosos que buscam, porque precisam, se justificar na ciência… E pensar que, por séculos e séculos, o mecanismo das relações entre ciência e religião se orientou por uma lógica rigorosamente inversa! Mesmo com todas as suas revoluções, suas acusações de heresia, da Idade Média até fins do século XVIII o que impulsionou a ciência foi a submissão a Deus, declarada e irrenunciável!

O cientista trabalhava para explicitar a glória da Criação, para narrar o poema épico da obra de Deus. Mesmo Galileu, que teve de se retratar para não sofrer a mesma sorte trágica de Giordano Bruno, trabalhava para demonstrar que “Deus escreveu o livro do mundo em linguagem matemática”… Cientistas como ele só estavam dispostos a enfrentar o caos aparente para se aproximar de Deus, cuja perfeição transmitia segurança quanto à eficácia dos cálculos. Leibniz, por exemplo, desenvolveu o cálculo infinitesimal não para romper com religião alguma, mas para colocar à prova suas idéias sobre a Graça divina, como resposta ao inextinguível problema da teodicéia e do mal. Mesmo a física newtoniana se propunha a ser um tributo a Deus.

Tudo isso, todo esse esforço de séculos, foi feito sob o signo da submissão a Deus e ao tal sentimento religioso. Afinal, entender as leis da natureza era uma forma de aproximar-se da Vontade d’Ele. Ou seja, se o sábio, como o vulgar, mas em plena consciência, submete-se aos mecanismos da física, por exemplo, é porque ele se submete aos comandos da Divina Providência. Melhor entendê-la é melhor louvá-la. Mas o ponto é que a autoridade espiritual vinha sempre em primeiro lugar, fosse como dogma, fosse como teologia e metafísica. E a ciência que se orientasse por esse gigantesco farol sobre as consciências. Porque a verdade era uma verdade revelada, era ela que fundamentava todas as verdades particulares. Poucos eram os que se dispunham a questionar essa construção tão sólida.

É claro que houve gente disposta a questionar a submissão do método científico ao dogma religioso. Desde o espinosismo proscrito – que, ainda assim, se colocava como um caminho para a beatitude – até Voltaire, houve também o conflito aberto da religião com a ciência. Darwin está aí que não me deixa mentir: até hoje, para muitos líderes religiosos, rejeitar a teoria da evolução é questão de honra, Malafaia entre eles. Um episódio famoso a esse respeito envolveu o matemático Laplace e o imperador Napoleão. Laplace, inspirado em Newton, mas também de seus rivais teóricos Descartes e Leibniz, escreveu um “Sistema do Mundo” em que tudo, até mesmo a lei da gravitação universal, consistia em forças naturais. (Para Newton, ironicamente, a gravidade era uma prova da existência de Deus, ou, ao menos, do sobrenatural.) Pois Napoleão folheou o texto e perguntou ao sábio: “Qual é o papel de Deus?” E o cientista respondeu: “Majestade, não precisei dessa hipótese”. A essa altura, a autoridade espiritual e a religiosa estavam em campos opostos ou, no máximo, perfeitamente independentes, como era o caso das críticas de Kant à metafísica.

O retorno

Mas uma oposição não é uma submissão. Fala-se em retorno do sentimento religioso como uma reversão no processo de “desencantamento do mundo” de que falava Weber. O mundo foi se tornando mais e mais secular, num processo que teve seu ápice na segunda metade do último século. As igrejas começaram a se esvaziar e pareceu que todas as respostas seriam buscadas na pesquisa empírica, ou melhor, nas soluções de mercado, ou melhor, nas lutas políticas… Mas basta reler a frase anterior para perceber que essas respostas são animadas, ainda, pela mesma busca do transcendente que sempre alimentou o sentimento religioso. Seja o que for que foi embora, não foi um sentimento. Terá sido, antes, uma realidade física e palpável, uma forma de autoridade, portanto uma manifestação política, que dava solidez a esse sentimento. Ainda que se possa dizer que essa solidez, de tão sólida, era sufocante. Era a autoridade espiritual que Malafaia – mas não só ele; também o papa, por exemplo – não pode mais encarnar sem problemas. Uma autoridade que sustenta, entre tantas outras coisas, o impulso científico. Ou então, que se opõe a esse impulso, quando ele resolve escapar do recipiente que lhe é destinado. Mas que jamais se submete a ele.

Ou seja, a posição subalterna em que Malafaia a coloca é estranha à religião em qualquer campo, sobretudo no comportamento, esse de que se tratou na entrevista a Marília Gabriela. A religião, e isso é particularmente verdadeiro em relação aos monoteísmos como o de Malafaia, só se sente verdadeiramente à vontade e só pode funcionar a contento quando tem condições de afirmar, sem desmentidos à altura: eu sou a fonte de todas as verdades fundamentais, seja em cosmogonia, em moral, em escatologia, até em política. Por sinal, essa condição se reflete na frase que João atribui a Jesus: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Há, na religião, um componente muito mais amplo do que a fé, entendida meramente como a convicção de um fiel de que sua salvação ou seu consolo passam por aquela doutrina. É difícil imaginar uma religião que não seja normativa. Poderia ir longe, de verdade, uma religião que afirmasse, em vez da sentença acima: “trago conforto aos que sofrem, contanto que não precise desdizer os cientistas, nem as cosmogonias, morais, escatologias, políticas, dogmáticas e liturgias de religiões concorrentes”? Que potência decisória teria essa religião, na hora em que um fiel precisasse aplicar a doutrina em sua vida quotidiana? Algo assim é impensável, pelo menos no quadro dos nossos monoteísmos do “Deus ciumento”, ainda que esse mesmo Deus seja considerado também amoroso e misericordioso. Afinal, a misericórdia é o atributo de quem está em posição superior, jamais subalterna.

Quando leio sobre a participação de religiosos nos debates em torno de casamento homoafetivo, aborto, eutanásia e assim por diante, sempre me vem à mente o célebre trecho de Mateus com o “a César o que é de César”. Belo preceito do cristianismo, que faz grande falta a outras religiões semelhantes. Mas muito difícil de cumprir. Tudo vai bem quando César e Deus estão, ou parecem estar, lado a lado, seja num Estado teocrático, seja a partir da crença, absolutamente majoritária até o século XVII, de que o poder do soberano emana diretamente de Deus. Em outras situações, o cumprimento é bem mais difícil, porque exige do fiel que tome atitudes que vão frontalmente de encontro a suas convicções. Ou, pelo menos, que ele aceite, e até apóie, legislação que contradiga suas crenças. Haja autonomia de pensamento para agir dessa forma! Mesmo o convívio pacífico entre religiões me parece menos a regra e mais a exceção. Depende de um certo equilíbrio de forças entre grupos de fiéis e a comunidade como um todo, algo que nem sempre se verifica…

Ouço Malafaia argumentar que a homossexualidade não é um fenômeno determinado geneticamente, mas comportamental. O determinismo do pastor é primitivo e terrivelmente perigoso, mas não está no escopo da minha hipótese criticá-lo. O biólogo citado no início já o fez. A questão, aqui, é outra. Estamos diante de um líder religioso que, ao menos implicitamente, afirma: “se ficar demonstrado que a homossexualidade é um fenômeno genético, ainda que parcialmente, então eu aceito que ela não é condenada por Deus, já que o código genético é parte da Criação”. Provavelmente isso não é verdade, quero dizer, provavelmente o pastor encontraria um jeito de manter sua condenação ainda que o determinismo genético, tal e qual, ficasse mesmo provado. Ele encontraria um jeito de dizer que a prova não é válida ou que, na verdade, era outra coisa que ele queria dizer. A rigor, ele provavelmente está mais do que ciente de que nenhum cientista sério jamais vai afirmar categoricamente que “a homossexualidade é um fenômeno determinado geneticamente”, já que um determinismo tão forte não pode existir em sistemas complexos como o psicossocial.

Mas isso não é o mais importante, e sim que tal postura, sincera ou não (e estou assumindo que ela é sincera, não vamos nos esquecer), é um atestado de que a batalha de Malafaia é, como eu disse, uma batalha perdida. Porque uma religião que aceita assumir essa posição subalterna não tem como cumprir seu papel. É inverossímil que uma religião afirme: “cremos que Deus determinou tal e tal, mas talvez não seja assim, pode ser que a ciência ou a experiência demonstrem o oposto”. Malafaia se faz o porta-voz de um grupo que, mesmo mantendo todo o misticismo que as religiões tão belamente trabalham, está disposto a subjugar seus dogmas fundamentais a evidências desencavadas pelo trabalho científico. Isso não é pouca coisa. Em outros casos, pode-se chegar a alguma forma de acomodação. Por exemplo, quanto à origem do universo, com seus quinze bilhões de anos, em vez de seis mil. Pode-se dizer que o tempo, como tal, não existe para o Ser Supremo; pode-se dizer que o texto sagrado é metafórico; pode-se mesmo dizer que o tempo tem outro ritmo no mundo espiritual. Ou então, o conflito: “isso é só uma teoria”, que é o caminho escolhido por muitos religiosos radicais com relação à evolução. O que não funciona é jogar fora a parte cosmogônica da religião e ficar só com a parte moral. Mesmo esta parte, provavelmente a mais útil, precisa de um fundamento ontológico, ou melhor, onto-teológico, a não ser no campo de uma ética puramente imanente, algo difícil de imaginar para uma religião como os nossos monoteísmos.

Contra-exemplos

Agora que já apresentei a hipótese, surgiu uma dúvida pessoal. Como seria uma postura religiosa forte neste caso? É evidente que a mais “forte”, no sentido de inabalável, seria aquela que afirmasse: “Esses estudos todos, frutos da vã razão humana, não valem de nada. Ai de ti, mortal, se te dobrares ao pecado, à tentação de um confronto racional com a Palavra!” No passado, essa postura fortíssima bastaria para satisfazer à grande maioria dos ouvintes. Mas parece não ser mais o caso, não majoritariamente. Cada vez menos os fiéis aceitam esse tipo de resposta. Eles não esperam mais da religião uma resposta inflexível, definitiva e autoritária, ao contrário do que pode parecer para quem se mantém à distância, amargamente, balançando a cabeça diante do que lhe parece ser o retorno dos bárbaros fundamentalistas. Os fatos parecem demonstrar que os bárbaros fundamentalistas, em que pese todo o barulho que são capazes de fazer, são menos comuns na religião do que no futebol, na política e, se bobear, até mesmo na ciência.

Penso em outra postura, também forte, mas não no sentido da potência impositiva, e sim no sentido do pleno gozo do poder normativo que uma religião pode ter e do qual, a bem da verdade, não pode abdicar. Lutero, por exemplo, quando jovem monge, tinha dificuldade em entender por que sua carne era tão propensa ao pecado. Ele cobiçava, invejava monges mais santos que ele, desejava mulheres, tinha uma queda pela boa alimentação que não condizia com o estoicismo monástico. Tudo isso apesar de suas orações e boas obras. Então ele desenvolveu a célebre doutrina do “sola fides, sola gratia…” O pecado estava nele para que a graça divina pudesse se manifestar de maneira mais gloriosa. Alguém que quisesse manter a condenação ao amor homoafetivo sem abdicar de sua espiritualidade monoteísta poderia seguir essa linha. Aceitaria que esse amor possa estar inscrito, ainda que parcialmente, nos genes e reproduzido nas estruturas psíquicas que as neurociências seriam capazes de ler no cérebro. Mas afirmaria, na linha de Lutero, mas também com uma pitada de Leibniz: Deus inscreveu no código mais profundo da vida um comportamento que ele mesmo condena (o mal, portanto), para que sua graça possa se manifestar, através da fé e das orações, naturalmente, naquele corpo. Uma versão católica desse argumento acrescentaria mortificações e a purificação da carne, exercícios espirituais, aconselhamento com sacerdotes e assim por diante. Mas a essência provavelmente não seria muito diversa.

Em qualquer de suas vertentes, esta é mais uma forma de solucionar o problema da teodicéia, desta vez com o recurso à genética. É, também, uma forma de acondicionar as evidências científicas ao dogma. É, ainda, uma maneira de tentar resgatar o “a César o que é de César”. É, em todo caso, uma postura muito diferente da que vemos em Malafaia. Uma espécie de meio-termo é o estranhíssimo fenômeno da “cura da homossexualidade” (ou do homossexualismo, como dizem), proposta por auto-intitulados psicólogos. É mais uma forma de se colocar no meio do caminho entre a força normativa da religião e a potência empírica das evidências científicas. Afinal, não fica claro até que ponto a cura em questão é espiritual ou propriamente psicossomática; o fato é que, se esses psicólogos se dispõem a considerar a homossexualidade como patologia, não estão falando nela como pecado, mesmo que, paralelamente, usem esse termo dentro dos templos. Ou seja, estão também aceitando que considerações racionais, científicas, ainda que integralmente equivocadas, sejam postas acima das escrituras. Mas, ora, como já vimos, pelo próprio conteúdo do conceito de sagrado ou de divino, as Escrituras, do ponto de vista do fiel, deveriam estar acima de qualquer outro argumento, de qualquer evidência. É, também, portanto, uma batalha perdida.

Como fica, então, o retorno do sentimento religioso? Continuo não sabendo. Para mim, o sentimento religioso jamais deixou de existir, enquanto entendemos que as religiões se nutrem de um sentimento que consiste em desejar ardentemente a transcendência, o infinito, o eterno, o imutável, o perfeito, o absoluto. O divino, em suma. Por outro lado, se entendemos que o que está voltando não é exatamente um sentimento, mas um fato de ordem política, um poder normativo atribuído às religiões, então me parece que posturas como a de Malafaia, dos psicólogos curadores de homossexuais e até, muitas vezes, do Vaticano – como quando, por exemplo, padres tentam argumentar que estupros não provocam gravidez, ou quando encíclicas papais insistem na interdependência estreita entre fé e razão – desmentem essa noção. Algo fundamental para o funcionamento de um tal poder parece ter se quebrado, dentro mesmo da mente dos fiéis, no comportamento daqueles que crêem. Eu diria que é a disposição para remover do caminho do dogma tudo que tenha qualquer outra fonte de legitimação. É esse campo minado que tentam atravessar os Malafaia da vida, com suas batalhas inviáveis.

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