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Um vício é um vício

Caneca
Ouvi dizer que parar de fumar é muito difícil. Não sei, jamais fui fumante. Comprar cigarro, observe, nada mais é do que transformar dinheiro em fumaça. Sem falar no cheiro que impregna as roupas e os ambientes, a tosse, o câncer. Fico imaginando o desespero de tantos colegas durante uma longa palestra da qual não se pode sair para aliviar o vício, e a idéia me parece, menos que triste, engraçada.

Existem outros vícios, sim. Eu não poderia escapar de todos. Está para nascer o homem que vive sem obedecer a alguma substância, impulso ou idéia. Mas estou livre dos principais, acredito. Ao menos, dos mais perigosos. Não consumo químicos ilegais. Minha relação com o álcool é plenamente gustatória. Que culpa tenho, se há uma variedade tão grande de bebidas com valor gastronômico? Sói prová-las o mais rápido possível. E eu as provo. Não a ponto de ser alcoólatra, por favor.

Há um vício, porém, de que não consigo me libertar, e sei que é mortal para o organismo. Uma substância cheirosa, líquida, negra e quente. Uma frutinha vermelha que enriqueceu muito latifundiário brasileiro. Vendida para o mundo inteiro, torrada e moída, fervida e coada, servida no desjejum ou após as refeições. Pelos céus, eu admito, não consigo passar o dia sem tomar café.

Começou quando decidi que deveria escrever sem parar. Foi, digamos, uma decisão leviana de juventude. Acreditei que pudesse ser um desses autores que se debruçam sobre o teclado na hora do almoço e só se levantam para o café-da-manhã (com trocadilho). Horários definidos por e para outras pessoas, porque, com esses artistas geniais e incompreendidos, a comida serve apenas para não cair doente sobre uma página incompleta. Esses abnegados não dão importância às coisas boas da vida. Não buscam prazeres, nem glórias. Querem apenas fazer sua literatura… e assim por diante.

Jamais consegui. Tentei por alguns dias, mas sempre ocorria uma dessas três coisas: 1) Algo me puxava de volta para o mundo exterior, um jogo de futebol, uma morena passando na janela, uma goteira pingando na cozinha. Qualquer coisa. 2) Eu me via sem assunto. Queria escrever, mas, bolas, sobre o quê? Com que palavras? Tentava escrever apenas frases, até que delas saísse algum tema. Não funcionava. Ou as frases eram ruins, ou o assunto era banal. 3) Eu tinha sono. Dormia na escrivaninha, acordava, dormia de novo. Escrever é algo muito chato, já aviso a quem quer começar. Ver televisão é mais interessante e, se dormimos, não sentimos culpa.

O café, insumo insidioso, ofereceu-se como solução. Prometia mil maravilhas. Que me deixaria acordado, alerta, esperto. Que faria de meu cérebro uma máquina incansável, sempre produzindo idéias, frases e imagens. Que eu me tornaria o mais produtivo dos homens, preenchendo laudas e laudas com letra miúda e nervosa. O café, mais do que as drogas, o álcool ou o tabaco, é o segredo dos grandes autores. Acreditei nessa história, caí no conto.

Não demorou para que ele se tornasse minha fonte principal de alimentação. No trabalho, eu afundava o dedo no botão da garrafa térmica. Duas, três vezes por dia. E todos comentavam. Cada colega preparava para si uma pequena xícara a cada manhã. Quanto a mim, era um copo cheio até a borda. Mais de uma vez, vi meu chefe meneando a cabeça, em negativa ressentida. À tarde, quando a garrafa estava vazia, eu quase me recusava a continuar prestando meus serviços. O que me impedia era o medo de ser mandado embora. Sabe como é a situação, a coisa não está fácil para ninguém.

Há anos, eu me arrasto para fora da cama, esbarro em todos os móveis, vou até a cozinha e, em gestos de cágado, preparo a cafeteira. Espalho-me no sofá, à espera, ainda sonhando, os olhos bem atados. Quando ouço o chiado da bebida pronta, não sei explicar o que se produz em mim. Desperto imediatamente e pulo sobre ela. Bebo tudo de uma vez, e só daí parte o dia. Minhas roupas cheiram a café. Meus lençóis, idem. Minha mulher, às vezes, tem insônia, apenas da essência que a roupa de cama exala. E olha que ela também é viciada, e já o era antes de nos conhecermos.

Parar parece impossível. Um dia sem café corresponde a um dia como morto-vivo preguiçoso, mais morto do que vivo. Não quero conversar, mal cumprimento as pessoas, a luz do sol me incomoda. Arrisco dizer que é como se nesse dia eu simplesmente não tenha sido. É um vão na minha existência, a negação da continuidade do tempo.

Pois bem. Há coisa de uma semana, decidimos, juntos, reduzir o consumo da bebida. No lugar das duas canecas diárias, uma xícara. Pois bem. Funcionou no primeiro dia. No segundo, fui acometido da dor de cabeça típica dos dias de pouco café. Resisti bravamente. Depois, vieram os dias cheios de aulas e trabalhos por entregar. Tomamos duas xícaras, cada um. Uma escorregadela, certamente. Mas nada que se compare às canecas transbordando de outrora.

Tenho suado. Tenho tido pesadelos. Não tenho conseguido manter o ritmo de leitura e estudos. Um vício é um vício. Mas hei de resistir. Mesmo se, hoje, algo tenha dado errado. Escrevo com a caneca amarela ao lado do computador, oferecendo-se como prova de meu fracasso. Mas hei de resistir. Parar de fumar, dizem, é bem mais difícil. E tem muita gente que consegue.

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