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Direito natural, versão felina

Estou tentado a chamar a gata vira-latas da rua de “Espinosa”. Sendo um sobrenome, serve igualmente para macho e fêmea e, embora eu ainda a chame de “gata”, só comecei com isso por achar que estava prenhe, com a barriga enorme que tem. Mas gata nenhuma leva tanto tempo para parir, o que me traz à conclusão de que ela é gorda, simplesmente. Com isso, nem sei mais se é gata ou gato, porque machos e fêmeas engordam do mesmo jeito. Mas o nome provavelmente vai ser Espinosa.

A bem da verdade, nem sei se é mesmo um gato vadio e vira-latas. Nicole está convencida de que o bicho é da vizinha, o que não explica por que ele acredita tão piamente que nossa casa é o lugar para estar sempre e a todo momento. Por mais que eu adore animais, não sou tão chegado ao cheiro que deixam quando, indisciplinados, ocupam cantos de jardins e fazem de residências que não lhes pertencem um depósito de seus dejetos.

Também penso em chamá-lo Espinosa porque ele e eu vivemos num estado que lembra o direito natural como definido pelo sábio holandês: o direito de cada um coincide com a extensão de sua potência, levando em conta a potência, claro, de sufocar a potência dos outros. Pois bem, ele pode invadir a casa, se esgueirar pelas paredes e fugir saltando o muro com agilidade insuspeita para um gordo, ainda que o gordo em questão seja um gato. Eu, de meu lado, posso correr atrás dele, gritar, fingir que vou lhe atirar alguma coisa, na esperança de que o susto seja tanto que ele desista de aparecer por aqui.

(Hoje, aliás, as crianças já não cantam mais o “atirei o pau no gato”, o que está muito certo, já que toda violência possível deve estar contida em aparelhos eletrônicos.)

Ele pode voltar. Pode tentar me vencer pelo cansaço. Eu posso insistir, posso mesmo fechar a porta do depósito quando sei que ele está lá dentro, embora ainda não tenha tido a audácia de fazer algo tão cruel. É um jogo de gato e rato em que quem faz o papel de rato é o gato, já o gato sou eu. E não é um jogo: o que está em jogo é o asseio da minha casa. Como no direito natural, ele me teme (tanto que foge ao me ver chegar no portão) e eu também tomo meus sustos, como quando entro no escritório para dar com um volume de pelos dormitando em minha cadeira.

Exagero com essa história de direito natural. Há qualquer coisa de civil, também, na nossa relação. Pelo menos da minha parte. Firmamos um acordo tácito pelo qual não exercerei minha potência de esmagar seu crânio com uma pedra. (Ele também nunca me arranhou ou mordeu. Ai dele.) Ele invade minha casa, ele rompe com as regras mais fundamentais da propriedade privada, mas não vou puni-lo nem com o cárcere no depósito, nem com a morte. É um felino, ora bolas, e jamais foi instruído sobre o funcionamento das leis de propriedade.

Por outro lado, o gato malhado da rua não atravessa jamais o portão e prefere passar os dias debaixo dos carros. Sabendo que nada fez de errado, não vê motivo para fugir. Nem mesmo quando se aproxima um humano adulto armado com uma enorme barra de metal e um macaco. A dois passos de distância, assiste impassível, com ar até preguiçoso e despeitado, enquanto o humano em questão sua para trocar um pneu. Será que o instruíram nas leis de propriedade?

Na dúvida, segue cá nos fundos o laboratório de política e direito com Espinosa, o gato gordo, que, mesmo quando afugentado, encontra uma área inalcançável do telhado e lá se põe a espiar o inimigo (esse sou eu). Imóvel e de olhos arregalados, é capaz de agüentar horas à espera de que ele se canse e tudo possa voltar à rotina. E realmente vai voltar, no ciclo anárquico e conflituoso do direito natural em que vivemos, bicho e gente, no quintal de uma casa.

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