arte, capitalismo, cinema, comunicação, economia, Ensaio, escultura, Filosofia, guerra, história, inglês, literatura, livros, opinião, passado, Politica, prosa, reflexão, teatro, tempo, trabalho, transcendência

Readymade e work in progress: esboço de pesquisa

Eu organizava meu material, colocando em caixas e decidindo o que vai na mudança e o que fica para ser reciclado, quando encontrei uma pilha respeitável de artigos sobre um mesmo tema: o readymade. Foi como provar uma madeleine: eram textos de apoio a cursos de estética e história da arte que segui há três ou quatro anos[i], e de cuja existência já tinha até esquecido. De repente, vieram-me lembranças de como o readymade é a manifestação da arte, ou do artifício humano, que provoca as reações mais instigantes nos professores e pesquisadores, fato que muito me chamou a atenção durante os cursos. É como se tudo que eles têm para dizer da arte, como um todo, fosse só uma desculpa para discorrer sobre esses objetos do cotidiano, isolados e expostos, com plaqueta de identificação abaixo, à direita.

Veja que divertido: Duchamp faz de um suporte de garrafas vazias obra de arte, por mero desígnio de sua vontade. E o que consegue com isso é instigar pesquisadores de gerações e gerações, ao redor do mundo, a produzir páginas intermináveis de especulações. Tenho para mim, como regra geral, que o assunto mais interessante é aquele que nos faz gaguejar, porque, afinal de contas, é um campo brumoso, em que tentamos avançar sem conhecer o caminho. Se não gaguejamos, é porque temos certeza e segurança no que dizemos, ou seja, estamos só repetindo algo de adquirido, conhecido, concretizado, …, velho. Juro que já vi professores gaguejando ao falar do readymade, essa centenária instituição. Houve um que chegou a parar no meio de uma frase, levar a mão à cabeça, manter essa posição por alguns eternos segundos, depois prosseguir com outro assunto, como se nada tivesse acontecido. Inesquecível. Em que pese o embaraço para uma pessoa que passou a vida estudando esse mesmo tema, mas gagueja, é prova de que a iniciativa de Duchamp dá pano pra manga: as laudas todas gastas com o readymade são como uma gagueira coletiva. Continuar lendo

Padrão
alemanha, arte, história, imagens, ironia, livros, opinião, reflexão

Série Citações, I : Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte

Se desde já começássemos a destruir completamente nossa ligação com a natureza, a nos orientar violentamente para a liberação, e a nos contentarmos exclusivamente com a combinação da cor pura e da forma independente, criaríamos obras que seriam ornamentos geométricos e que se pareceriam, para falar cruamente, com gravatas e tapetes.

Wassily Kandinsky. Do espiritual na arte, 1909-1912. Em tradução indigente e pouquíssimo confiável de Über das Geistige in der Kunst. Insbesondere in der Malerei.

Há tempos tenho a intenção de começar aqui uma série de citações. São trechos curtos que vou encontrando em minhas leituras e que acredito merecerem aparecer isoladas ou destacadas. Não são trechos que já copiei antes, embora eu já tenha tido a intenção, logo frustrada, de transcrevê-las aqui outras vezes.

Não prometo comentar as citações. Seria melhor, eu sei, mas não só existem coisas que dispensam comentário, como é melhor colocar logo a citação na roda, do que esperar para comentar mais tarde e acabar não publicando jamais.

Quanto a esta citação de Kandinsky, ela é tanto mais curiosa quanto o pintor em questão é o “pai” da arte abstrata. Mais tarde ele dirá algo como: “o objeto estraga minhas telas”. Enfim, talvez a idéia de abstração não fosse assim tão unívoca na cabeça dele, como é hoje na nossa.

Padrão
abril, arte, Brasil, centro, costumes, crônica, crime, descoberta, desespero, doença, economia, escândalo, escultura, flores, folhas, fotografia, frança, francês, guerra, história, ironia

De dois plátanos

Platano
Bem no meio da região conhecida Batignolles, existiu até meados do século XIX um terreno largado, coberto de lixo deixado pelos fazendeiros do entorno, em suas idas e vindas para os mercados da capital. Não havia o menor motivo para prestar atenção no que houvesse sobre os tufos de grama anêmica. Eram objetos esquecidos, indesejados, pontilhando o espaço entre umas poucas árvores quase desfolhadas, tortas, irrelevantes.

Do dia para a noite, Batignolles se tornou um naco do 17o arrondissement de Paris, pelas ordens de Napoleão III (“o pequeno”, segundo Zola). Pequeno ou não, o sobrinho do diabo corso mandou transformar em parque aquela área perdida no meio de seu novo e estimado bairro burguês. Dando seguimento a uma folclórica fixação sua, quis algo no estilo inglês, em que os caminhos são curvos e a grama, impecável. Encarregou seu paisagista preferido, Jean-Charles Alphand, de canalizar a água e criar um córrego com pequenas cachoeiras e pontes, dando num lago artificial para os patos e cisnes negros que passariam a viver ali. Um canto para crianças, caminhos tortuosos, grama capinada e árvores substituídas, uma pequena estufa para uma única pequena árvore, trazida da Ásia e coberta de folhas até hoje. Alphand era um homem muito competente. A square Batignolles, século e meio depois, é um lugar delicioso para ver o tempo passar, pelo menos quando não faz muito frio.

De casa até lá, ando pouco mais de dez minutos. Um caminho que já percorri um sem-número de vezes. Sempre que precisei de sossego, inspiração, verde, rostos. É o lugar em que vivem os tais plátanos sobre os quais venho prometendo escrever desde o início do mês. São dois. Caules robustos e negros implantados com firmeza na terra, um ao lado do outro, seus galhos espalhados a uma distância desrespeitosa. Cobrem o lago inteiro, servem de pouso e guarda-sol para as aves, recortam a vista do céu como se quisessem nos lembrar de que a vida real está aqui, colada ao chão, e as copas das árvores mais vetustas são seu limite.

Até a última vez em que os vi, jamais tinha percebido que eram dois. Contemplava o emaranhado opulento de madeira escura e era só o que via: um emaranhado opulento de madeira escura. Desta vez, por acaso, e essas coisas só acontecem por acaso, vi-me parado diante de um dos troncos, que eu não conseguiria abraçar sozinho. Pude observar as ranhuras da casca, as reentrâncias na madeira, as cicatrizes do tempo, que acumula madeira em camadas, como uma vela que vai derretendo. Mas quanto tempo? Pensei que jamais saberia. Até que avistei, distraído, uma plaqueta verde pendurada, quase invisível. E descobri que se trata de uma árvore de 1860.

Aquele plátano silencioso mudou de figura no mesmo instante. Seu nascimento precedia de alguns anos o do próprio parque. Foi plantado pelo vento, não pelo homem, a quem só coube a sabedoria de não derrubá-lo e incluí-lo em seus cálculos. O lago recebeu seu formato tal como é simplesmente porque, com o tempo, uma bela árvore cresceria e abriria os galhos sobre ele, como asas de um cisne sobre os filhotes. Alphand subiu no meu conceito: além de paisagista competente, não comungava do maior vício de seu tempo, que era a fé doentia na razão e no planejamento humanos. Essa presunção estúpida, que derrubou monumentos e matas, teria levado qualquer engenheiro da época a impor ao lago o traçado de seu esquadro. Mas Alphand considerou que dali a 150 anos um plátano valeria mais do que uma piscina, e cedeu. Com toda razão.

E não foi a última conclusão que tirei do passeio. Mais uma meia-dúzia de passos e fui surpreendido com a informação de que não havia um plátano, mas dois, como eu já disse. Esse segundo tinha o caule ainda mais largo, escuro e áspero. Um grande buraco, à altura de meus olhos, banhava em breu o coração da árvore e revelava o heroísmo com que ela se mantinha de pé. Aquela imagem de força e decrepitude tinha a singular qualidade de ser ao mesmo tempo bela e sublime, se é que os guardiães da Estética me permitem falar assim.

Em seguida, procurei conferir a idade. A placa me deu mais informações do que eu precisava. Seus poucos numerais explicavam que já crescia a árvore antes mesmo de a região entrar para Paris. Os vendedores que atiravam seu lixo sobre a grama o faziam nas redondezas de um jovem plátano. Enquanto Haussmann botava a capital abaixo, folhas nasciam e caíam dos mesmos galhos, em obediência às leis da primavera e do outono, da mesma maneira como as vejo agora.

A regularidade do ciclo biológico não foi alterada nem com as barricadas de 1848, nem com os alemães desfilando pelas Champs-Élysées em 1870, nem com a violência da Comuna, no ano seguinte, nem com a chegada dos nazistas. Tudo isso nada significou para nenhum dos plátanos. Se a Sorbonne parou em 68 e em 2006 (mal comparando), os plátanos nem ficaram sabendo.

De repente, surpreendi meu pensamento nas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, enfeitando os caminhos desde que éramos colônia. Quietas, belas, soberanas, enquanto tivemos golpes, ditaduras, escravos e reis, miséria e milagre. Lembrei de D. João VI e do hábito que temos de retratá-lo como glutão e ligeiramente retardado. Que seja, mas então são as palmeiras de um retardado que nos ligam com maior clareza a nosso passado, leia-se nossa história.

De lá para cá, derrubamos o morro do Castelo, abrimos a avenida Rio Branco, demolimos os prédios elegantes que lhe enfeitavam o entorno. Mudamos de capital, de regime, várias vezes de vocação econômica, ao sabor de caprichos nacionais. E as palmeiras balançando ao sabor de ventanias e chuvaradas. Neutras enquanto nossos pais e avós as contemplavam e deixavam de contemplar, elas acompanharam nossos nascimentos e mortes. Exatamente como esses dois plátanos que uma dúzia de crianças agitadas, dois passos à minha frente, tenta desenhar para um trabalho de escola. Plantados no mesmo lugar desde Napoleão III, até Sarkozy e sabe Deus quem mais.

Padrão