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Notas esparsas sobre a água

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I

Alguns meses atrás, um urbanista me contou que é impossível estar em São Paulo a mais de 300 metros de um curso d’água. Tome um mapa da cidade e procure ruas tortas, difíceis de explicar por qualquer racionalidade dos traçados. É quase certo que ali tem um riacho escondido. Existem mais ruas dessas que peixinhos a nadar no mar.

Perto de onde moro há um beco famoso pela arte de rua. Ao longo do ano, clipes e videobooks são realizados naquelas ruelas. Turistas estrangeiros adoram, ficam pasmos. No verão, costuma se transformar em corredeira.

Mais adiante, as mesmas vielas são quase desconhecidas. Ainda assim, têm grafites. Alguns buracos no chão de cimento permitem ouvir um gorgulho. E cheirar. É fétido.

A viela começa numa quadra de basquete e termina num muro, antes de chegar à Cardeal. Ali, um buraco um pouco maior, em forma de sarcófago e tomado por uma árvore que brotou de rebelde, permite espirar o fio d’água que resiste. Esse fio d’água é aquele que, quarteirões para trás, transborda no verão e faz carros escalarem uns nos outros.

O estacionamento do SESC Pompeia tem uma placa enorme e alarmista segundo a qual os motoristas que se arriscam ali devem retirar seus preciosos bólidos quando chover. Três quilômetros distante está a estação de metrô da Vila Madalena. Ali nasce o Córrego da Água Preta, ameaça poderosa aos carros do SESC.

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A estação da Vila Madalena poderia ser um monumento à água, e não ao concreto. Ali também nascem o córrego das Corujas (que, na rua homônima, está no centro de um ambiente bem agradável) e o córrego Verde, esse que inunda o beco aqui perto.

Nos bairros mais afastados, as crianças ainda brincam em córregos, segundo o que aprendi na entrevista que fiz com o urbanista. Mas, na falta de saneamento, a água começa a feder e é imediatamente tapada com uma laje. Fim da brincadeira. O riacho acaba esquecido, a não ser que, à noite, ainda se possa ouvi-lo, como um fantasma.

É o mesmo processo que ocorreu no que hoje é centro: Anhangabaú, Vila Buarque, Bom Retiro, Pinheiros, Paraíso, Vila Mariana, Ipiranga. No século XIX, chegou a haver um banho público no Bom Retiro. Durou pouco. Falando nisso, as margens plácidas do Ipiranga, hoje, são canos.

O Parque do Ibirapuera tem um lago bem famoso, com jatos d’água e iluminação. O urbanista me mostrou mapas e fotos do córrego que, descendo pelo Paraíso e pela Vila Mariana, por baixo do asfalto e de algumas construções, vai dar ali. Antes de se tornar cartão postal, passa por um processo de limpeza que mal dá conta de o deixar em condições mínimas. Tudo isso é invisível.

Vizinhos dos córregos nem sempre sabem de sua existência. Nem desconfiam do por quê de sua rua ter enchente e a do vizinho, não. Alguns até sabem. Tem gente que economiza a conta da Sabesp recolhendo água da nascente para lavar o carro ou a louça. Para beber e tomar banho, é claro que não.

Isso não é proibido. Fazer poço artesiano privado é. Quem mora perto de um riacho desses, sabe de sua existência e tem a sorte de o encontrar não tão sujo… sofre menos com a crise da Sabesp que você.

II

As árvores ainda não murcharam, apesar do calor e da estiagem, porque absorvem a água do lençol freático. A mesma que, pressionada pelo peso do solo e, muitas vezes, pelo peso das construções também, emerge nas minas que criam esses riachos e córregos.

Nós é que não nos beneficiamos dessa água. Ela se torna um estorvo, porque cheira mal, atrai ratos, fomenta o mofo atrás dos armários e ainda transborda com as chuvas de verão. Nenhum de nós jamais fez um passeio romântico à beira de um riozinho paulistano, com banquinhos, amoreiras e bares com espreguiçadeiras. No máximo, corremos à beira do córrego das Corujas.

“Isto aqui não é Berlim”, poderia dizer uma professora da ECA, horrorizada com a idéia de que a vida em São Paulo poderia ser tão agradável quanto nas capitais europeias. Pode não!

Só quem se beneficia do córrego Pirajussara são os remadores da USP. A avenida Eliseu de Almeida é cheia de curvas não para homenagear Copacabana, mas para acompanhar esse córrego. Poderia ser uma das avenidas mais lindas da cidade. Hoje, pelo menos tem ciclovia. A Ricardo Jafet, a Pacaembu, a Nove de Julho e tantas outras também poderiam ser bulevares espantosamente belos. Mas são avenidas feias.

São Paulo foi fundada no encontro de dois rios hoje canalizados e escondidos. Os rios que acabaram se tornando os mais famosos da cidade foram retificados e cercados por avenidas. “Dá para pensar em São Paulo sem as marginais?”, pergunta o prefeito da época, pessoa de fama pouco invejável. Pensar é o que nos resta, eu diria.

Décadas depois, as marginais foram ampliadas com uma terceira pista. Continuam engarrafando.

Um desses rios, além de retificado, teve seu curso invertido. “Usina Elevatória de Traição”, lê-se a certa altura. Traição é o nome de um córrego que também ninguém vê. Esse rio abastece uma represa pontilhada de clubes de campo e de iatismo. A represa é cercada de favelas e bairros irregulares. Todos sabemos como é.

A Guarapiranga abastece parte da cidade, principalmente a Zona Sul. Outros sistemas de represas que abastecem São Paulo são a agora famosa Cantareira, o Alto e o Baixo Cotia, o Rio Grande, o Alto Tietê. Os de Cotia estão bem, ao que parece. Os outros estão secando, assoreados ou contaminados. A Guarapiranga ainda tem bastante água, mas está ficando suja demais.

Falando em Cantareira, também é o nome de uma enorme área verde ao norte da cidade. Como se sabe, não são muitas as áreas verdes da cidade. Uma mudança de rotas do aeroporto de Guarulhos está fazendo os aviões passarem por cima da serra da Cantareira. Isso ameaça a vida selvagem dali, incluindo a vegetação. Tudo muito coerente.

Marilena Chauí estranha que um dos maiores responsáveis por deixar a cidade sem água potável tenha sido reeleito com tanta facilidade. Seus eleitores são os mesmos que fizeram tudo que está descrito acima.

III

Outro entendido em água que entrevistei há alguns meses é engenheiro hidráulico. Ele comentou a disputa em torno do rio Paraíba do Sul, o primeiro no país a ter o uso de sua água cobrado. Lembra disso?

O Paraíba do Sul, que nasce em São Paulo, abastece o sistema Guandu, que fornece água e energia para a Baixada Fluminense e o Rio de Janeiro. Depois segue para o Norte Fluminense. Puxam tanta água dele que não sobra o suficiente para a agricultura nessa região.

Agora o governo paulista quer tirar uma lasquinha um pouco maior. Mas nada garante que sobrem muitas lascas para tirar.

Falando nisso, o Paraíba do Sul, milênios atrás, corria para o sul. O Amazonas, na mesma época, corria para o Pacífico. Hoje, erros de cálculo em usinas amazônicas causam enchentes. O desmatamento no Norte eliminou a nuvem de umidade que cobria o Sudeste. Essas poucas frases já servem para explicar o uso do termo “antropoceno”.

“Puseram uma usina no mar, talvez fique ruim pra pescar”. Chico rimou em eufemismo. Pescar é o de menos.

IV

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Esse engenheiro hidráulico gostava de reiterar o vínculo entre o cuidado com a água e a própria idéia de civilização, seja essa idéia o que for. Agora entendo por quê.

Depois que o poder militar, político e econômico de Roma colapsou, Lugdunum continuou sendo um centro urbano respeitável. O que se perdeu foi a técnica de manutenção dos aquedutos. Depois de um tempo, os canos entupiram e a cidade foi esvaziada. Isso deve valer para muitos outros centros urbanos da Antigüidade.

Por baixo dos fóruns de Roma, aliás, bem no coração da cidade, passava a Cloaca Maxima. Era uma cidade limpa. Deixou de ser na Idade Média, como todas as demais cidades do Continente.

Quando os espanhóis chegaram para a destruir e massacrar sua população, Tenochtitlan tinha 200 mil habitantes. Paris, maior cidade da Europa, tinha 300 mil. Tenochtitlan era alimentada por dois aquedutos e diversos canais de estilo veneziano. O centro urbano era limpo e fresco. Não resistiu à fúria de Cortez.

Naquele tempo, não fazia sentido falar em “vingança de Montezuma”.

Tifo, cólera, difteria e doenças semelhantes matavam dezenas de milhares de pessoas por ano nas maiores cidades da Europa. Hegel, que sucumbiu ao cólera, talvez seja o caso mais ilustrativo. Criou-se o sistema de esgoto tal como o conhecemos hoje. A população dessas cidades explodiu.

O que uma sociedade faz com sua água é um indício do que faz consigo mesma.

Nossa água contém flúor. É uma iniciativa de saúde pública. Ou seja, uma política pública. Ideólogos de um liberalismo hiperbólico vêem nisso a interferência do Estado-Leviatã na vida dos indivíduos. A água é um campo de batalha político.

Hoje, a água do paulistano vem do volume morto do sistema Cantareira. O racionamento foi descartado por motivos político-eleitorais. O dinheiro que deveria ser investido na expansão do sistema não estava disponível por motivos ideológico-econômicos. E talvez por outros motivos também. A ordem do Ministério Público para fazer, de uma vez por todas, as obras necessárias foi ignorada e contornada por 11 anos. A água é um campo de batalha político.

O que uma sociedade faz com sua água é um indício do que faz consigo mesma.

Além de flúor, sabe-se lá o que vem na água que estamos bebendo. Os filhos de uma amiga da minha mulher ficaram doentes e o médico culpou a água. Há quem fale em metais pesados. Há quem ataque caminhões-pipa. Há quem queime ônibus. Há quem ridicularize os que queimam ônibus porque o ônibus não tem nada a ver com a água. Há quem venda água e esteja jogando os preços lá em cima. A chance é agora de garantir o fim do ano.

O governador primeiro comprou briga com o Rio de Janeiro. Depois, comprou briga com a ANA. Agora, comprou briga com a ONU. Não vai ter tropa de choque pra agüentar tanta briga.

Da minha janela, vejo pelo menos seis piscinas. Domingo, dia quentíssimo, as piscinas estavam cheias de gente. Como vão estar essas piscinas no mês que vem?

V

Para encerrar, alguns versos apocalípticos:

cidade com luz

É noite em São Paulo
A cidade está com aspecto de morte.
As distopias nos alcançarão.
Incauto, penso no trabalho; em vão
Acredito que isso ainda importe.

Até o ar respirado é sombrio,
Anunciando as ruínas futuras
Das fachadas, que nossas amarguras
Testemunharam, ante o eterno estio.

Se tratamos por distante o presente,
Somos mais covardes ou ignorantes?

Se o corpo o golpe fatal já sente,
Não se passou algo na mente antes?

Sufocamos. Já estamos afogados.
Cidades prenunciam nossos fados.

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De dois plátanos

Platano
Bem no meio da região conhecida Batignolles, existiu até meados do século XIX um terreno largado, coberto de lixo deixado pelos fazendeiros do entorno, em suas idas e vindas para os mercados da capital. Não havia o menor motivo para prestar atenção no que houvesse sobre os tufos de grama anêmica. Eram objetos esquecidos, indesejados, pontilhando o espaço entre umas poucas árvores quase desfolhadas, tortas, irrelevantes.

Do dia para a noite, Batignolles se tornou um naco do 17o arrondissement de Paris, pelas ordens de Napoleão III (“o pequeno”, segundo Zola). Pequeno ou não, o sobrinho do diabo corso mandou transformar em parque aquela área perdida no meio de seu novo e estimado bairro burguês. Dando seguimento a uma folclórica fixação sua, quis algo no estilo inglês, em que os caminhos são curvos e a grama, impecável. Encarregou seu paisagista preferido, Jean-Charles Alphand, de canalizar a água e criar um córrego com pequenas cachoeiras e pontes, dando num lago artificial para os patos e cisnes negros que passariam a viver ali. Um canto para crianças, caminhos tortuosos, grama capinada e árvores substituídas, uma pequena estufa para uma única pequena árvore, trazida da Ásia e coberta de folhas até hoje. Alphand era um homem muito competente. A square Batignolles, século e meio depois, é um lugar delicioso para ver o tempo passar, pelo menos quando não faz muito frio.

De casa até lá, ando pouco mais de dez minutos. Um caminho que já percorri um sem-número de vezes. Sempre que precisei de sossego, inspiração, verde, rostos. É o lugar em que vivem os tais plátanos sobre os quais venho prometendo escrever desde o início do mês. São dois. Caules robustos e negros implantados com firmeza na terra, um ao lado do outro, seus galhos espalhados a uma distância desrespeitosa. Cobrem o lago inteiro, servem de pouso e guarda-sol para as aves, recortam a vista do céu como se quisessem nos lembrar de que a vida real está aqui, colada ao chão, e as copas das árvores mais vetustas são seu limite.

Até a última vez em que os vi, jamais tinha percebido que eram dois. Contemplava o emaranhado opulento de madeira escura e era só o que via: um emaranhado opulento de madeira escura. Desta vez, por acaso, e essas coisas só acontecem por acaso, vi-me parado diante de um dos troncos, que eu não conseguiria abraçar sozinho. Pude observar as ranhuras da casca, as reentrâncias na madeira, as cicatrizes do tempo, que acumula madeira em camadas, como uma vela que vai derretendo. Mas quanto tempo? Pensei que jamais saberia. Até que avistei, distraído, uma plaqueta verde pendurada, quase invisível. E descobri que se trata de uma árvore de 1860.

Aquele plátano silencioso mudou de figura no mesmo instante. Seu nascimento precedia de alguns anos o do próprio parque. Foi plantado pelo vento, não pelo homem, a quem só coube a sabedoria de não derrubá-lo e incluí-lo em seus cálculos. O lago recebeu seu formato tal como é simplesmente porque, com o tempo, uma bela árvore cresceria e abriria os galhos sobre ele, como asas de um cisne sobre os filhotes. Alphand subiu no meu conceito: além de paisagista competente, não comungava do maior vício de seu tempo, que era a fé doentia na razão e no planejamento humanos. Essa presunção estúpida, que derrubou monumentos e matas, teria levado qualquer engenheiro da época a impor ao lago o traçado de seu esquadro. Mas Alphand considerou que dali a 150 anos um plátano valeria mais do que uma piscina, e cedeu. Com toda razão.

E não foi a última conclusão que tirei do passeio. Mais uma meia-dúzia de passos e fui surpreendido com a informação de que não havia um plátano, mas dois, como eu já disse. Esse segundo tinha o caule ainda mais largo, escuro e áspero. Um grande buraco, à altura de meus olhos, banhava em breu o coração da árvore e revelava o heroísmo com que ela se mantinha de pé. Aquela imagem de força e decrepitude tinha a singular qualidade de ser ao mesmo tempo bela e sublime, se é que os guardiães da Estética me permitem falar assim.

Em seguida, procurei conferir a idade. A placa me deu mais informações do que eu precisava. Seus poucos numerais explicavam que já crescia a árvore antes mesmo de a região entrar para Paris. Os vendedores que atiravam seu lixo sobre a grama o faziam nas redondezas de um jovem plátano. Enquanto Haussmann botava a capital abaixo, folhas nasciam e caíam dos mesmos galhos, em obediência às leis da primavera e do outono, da mesma maneira como as vejo agora.

A regularidade do ciclo biológico não foi alterada nem com as barricadas de 1848, nem com os alemães desfilando pelas Champs-Élysées em 1870, nem com a violência da Comuna, no ano seguinte, nem com a chegada dos nazistas. Tudo isso nada significou para nenhum dos plátanos. Se a Sorbonne parou em 68 e em 2006 (mal comparando), os plátanos nem ficaram sabendo.

De repente, surpreendi meu pensamento nas palmeiras imperiais do Jardim Botânico, enfeitando os caminhos desde que éramos colônia. Quietas, belas, soberanas, enquanto tivemos golpes, ditaduras, escravos e reis, miséria e milagre. Lembrei de D. João VI e do hábito que temos de retratá-lo como glutão e ligeiramente retardado. Que seja, mas então são as palmeiras de um retardado que nos ligam com maior clareza a nosso passado, leia-se nossa história.

De lá para cá, derrubamos o morro do Castelo, abrimos a avenida Rio Branco, demolimos os prédios elegantes que lhe enfeitavam o entorno. Mudamos de capital, de regime, várias vezes de vocação econômica, ao sabor de caprichos nacionais. E as palmeiras balançando ao sabor de ventanias e chuvaradas. Neutras enquanto nossos pais e avós as contemplavam e deixavam de contemplar, elas acompanharam nossos nascimentos e mortes. Exatamente como esses dois plátanos que uma dúzia de crianças agitadas, dois passos à minha frente, tenta desenhar para um trabalho de escola. Plantados no mesmo lugar desde Napoleão III, até Sarkozy e sabe Deus quem mais.

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