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O mito dos especuladores

No Olimpo, Hera andava enfezada com o comportamento exuberante de Poros. Ele saltitava, cantarolando, por entre as arcadas da morada dos deuses, como se fosse o dono do pedaço. Distribuía crédito a todos os mortais e todos os imortais, sem comprovação de renda, sem nada. A esposa de Zeus, sempre atenta, estava convencida de que aquele mito menor tinha planos secretos de subverter a boa ordem do universo, dando a entender a qualquer descendente de Cronos que bastaria especular um pouquinho com derivativos, que a dominação do Cosmos estaria ao alcance da mão. Como se não bastasse, o safado ainda estendia suas garras ao mundo dos mortais: manipulava, sempre para cima, os índices das Bolsas, os juros do Terceiro Mundo, o valor do metro quadrado e assim por diante.

Pouco adiantou reclamar com o marido. Zeus, conforme ela foi descobrir mais tarde, tinha uma carteira repleta de ações, participava de empreendimentos por toda a Hélade e, além de decidir, em grande medida, o destino dos mortais, ainda dera como garantia para seus investimentos na Terra, justamente, algumas terras em Atlântida cujas escrituras, tantos séculos passados, ainda estavam em seu nome. Assim, o maioral do Olimpo não deu ouvidos à esposa sempre atenta (mas sempre um poço de reclamações) e sugeriu que ela deixasse em paz o pequeno deus da abundância, esse simpático Poros que, com seus sorrisos e seus fundos de investimento, fazia a alegria de tantos deuses e tantos homens. A hybris se generalizava no Universo. A tragédia crescia em conflito dramático. Mas o Olimpo parecia não se importar.

Hera, como era de seu feitio, não se fez de rogada. Pediu a algum daimon que seguisse de perto o suspeito e não demorou a fazer uma descoberta assombrosa: o insidioso Poros andava na companhia da pequena Ate, personificação do espírito da loucura. A deusa matou a charada: desde o episódio em que, bêbado, se deixara seduzir por Pênia, a repugnante imagem da pobreza absoluta, Hera já sabia que o engraçadinho abundante não conseguia resistir a um rabo de saia. Certamente a Loucura havia levado a Abundância à loucura, só poderia ser. Mas o espião da grande deusa se apressou em desfazer o mal-entendido: não era ela que o controlava; antes, era o contrário. Mediante um pagamento exorbitante de néctar e ambrosia, ela se insinuava no inconsciente de todos os, na falta de palavra melhor, clientes do grande consultor econômico. Sob o efeito encantador de Ate, deuses e mortais investiam o que tinham e o que não tinham, endividavam-se, empenhavam até as calças, no caso dos homens, ou as auréolas, no caso dos deuses.

Terrível! Aquela era a maior afronta que Hera jamais constatara. Um imortalzinho qualquer, desses que até esquecemos quem tem por pais, que não entra na lista dos doze do Olimpo, que não é ninguém, que não é nada, conseguia engrupir reis e generais, presidentes de bancos centrais, consultores, analistas, todos os deuses do Olimpo e o próprio Zeus?! Onde já se viu! Aquilo tinha de acabar o quanto antes.

Ela sabia que não poderia esperar nada da maioria dos grandes imortais. Sobrava apenas uma amiga, com quem ela poderia contar sempre: a sábia Atena, que não era de se meter em tolices como essa; aliás, em tolice nenhuma. Hera foi, assim, a seu encontro, e ficou contente de saber que seus pensamentos recentes convergiam: aquela situação era ridícula e insustentável.

Juntas, matutaram por horas, deitadas nas nuvens, até que Atena encontrou a solução. Dois rapazotes, ela explicou, também estavam por conta com aquela euforia estúpida, aquela confiança desabrida, aquela falta de bom senso. Alegria, alegria demais. Eram eles Fobos e Deimos, os filhos gêmeos de Ares e Afrodite, o casal-problema.

Mandaram que o daimon os chamasse. Apareceram em poucos minutos, os olhos injetados de sangue, perguntando, em suas vozes ásperas de adolescentes rebeldes, “o que tá pegando”. As duas senhoras explicaram o que queriam deles: que acabassem com essa palhaçada de uma vez por todas. Que Fobos inspirasse o medo nas bolsas de todo o universo, que Deimos disseminasse o terror por todos os governos, instituições, empresas, lares, partidos. Só assim o equilíbrio poderia se restabelecer.

– Falou, tias! – E foram-se os garotos, ávidos para cumprir uma missão que parecia mais uma concessão para se divertir. Contentes, Hera e Atena, a primeira irrequieta, a segunda altiva, ficaram observando a partida de seus dois expedicionários, com seus bonés virados para trás e as calças com as cinturas no meio das coxas, deixando aparentes as cuecas samba-canção.

Não poderia ter sido melhor. O pânico se instalou como há muito não acontecia. As quedas nas cotações refletiam o absurdo que havia, no fundo, em seus índices: vinte por cento aqui, dezoito ali; em casos particulares, até oitenta, quase noventa. Bancos quebraram, Hefesto pensou em fechar sua oficina, Ades não conseguia equilibrar o orçamento de seus batalhões. Hera ria à toa, olhando de esguelha o ar enfurecido se seu marido, que, à beira da falência, descontava a ira na cabeça dos pobres mortais, com sua carga amedrontadora de relâmpagos (foi essa tempestade que salvou, afinal, os negócios de Hefesto).

Na Terra, as autoridades se reuniam e falavam línguas incompreensíveis, discutindo os bilhões, os trilhões, quanto seria necessário torrar para que as dívidas impagáveis fossem pagas ou, pelo menos, não colocassem em risco a solvência dos maiores donos do planeta. A dança das moedas virou um scherzo ensandecido. Quem deveria explicar estava pedindo explicações e ninguém queria mais emprestar, produzir, fazer nada. Bagunça absoluta. E como Poros não conseguia mais honrar seus compromissos, após o estouro de sua bolha olímpica, a própria Ate resolveu se vingar, levando o mundo inteiro à loucura. Hera ria à toa.

Mais alguns dias e o malfeitor veio, em toda humildade, pedir clemência à dupla de deusas que lhe passara uma rasteira. A esposa de Zeus, que já não agüentava mais aquela história, estava prestes a cometer a impostura de erguer a mão para lhe aplicar um sopapo, a seu ver, muito bem merecido. Mas o desejo de saborear o triunfo falou mais alto: ela resolveu criar um suspense, estendeu um pouco mais o silêncio que apertava a garganta do delinqüente humilhado.

Foi tempo demais. A seu lado, como se tivesse a intenção explícita de afligi-la, a impassível Atena se colocou de pé e, enquanto golpeava com o cabo da espada seu grande escudo trabalhado, proferiu a sentença:

– Não serás punido, nem o serão suas vítimas incontinentes, com a condição de que vós todos renuncieis à exuberância inconseqüente, à cegueira derivativa, à especulação fictícia, à manipulação de dados, ao consumo fútil e predador. Fazei isso e sereis anistiados.

Faltou tempo para protestar. Antes que Hera pudesse abrir a boca, Palas Atena fez entrar o daimon, que conduziu para fora do grande salão oval um Poros lívido, suando frio, todo mesuras de alívio e agradecimento. Depois de todo o mal que ele causou, por Cronos!, sairia impune.

Hera sacudia os ombros de Palas Atena:

– Como você foi anistiar esse criminoso?! Como a especulação sem limites ficará sem punição?! Isso é um absurdo! Você nem me deixou falar!

Mas a sábia deusa, a grande vencedora, a maioral, não fez mais do que puxar seu cachimbo. Hera não acreditava que, naquele momento de hostilidade tão patente, sua antagonista amassasse fumo, como se nada acontecesse. Na Terra e no Olimpo, os índices tinham uma reviravolta: oito, nove, quinze por cento de alta nas Bolsas, as moedas de volta à estabilidade, até mesmo algumas promessas de investimento, ainda tímidas, sendo aventadas cá e lá, operadores e corretores caindo na risada com o susto que passava. Em resumo, um desacato.

– Olha só o que você fez! Agora eles vão achar que agiram certo!

Atena, cruel: uma resposta monossilábica:

– Vão.

Hera arrancava os cabelos. Sabia que Zeus voltaria a rir à toa, de olho em seus títulos que se revalorizavam. A ciranda voltaria a rodopiar em velocidade máxima. Poros e Ate reatariam, e quem sabe que raio de pequeno deus nasceria dessa união diabólica. Ela tinha de admoestar a companheira mais uma vez, entender que tática velada poderia ser aquela, que abria mão de uma punição certa e justa, já em curso, em troca de nada. Mas não sabia o que dizer. Só encarava o rosto tranqüilo de Atena, soltando anéis de fumaça em ritmo espaçado. Afinal, foi a própria Palas que falou, com voz lenta e sem paixão, ciente do nervosismo da outra deusa.

– Vão achar que fizeram tudo certo. Vão se entregar de novo à orgia. Vão baixar a guarda. Vão queimar todas as fichas. Vão ficar indefesos.

Hera começava a se interessar pelo discurso. Atena prosseguiu, com mais um par de frases irresistíveis:

– Vão estar no ponto mais vulnerável a Fobos e Deimos. Mas, veja… Fobos e Deimos estão a postos, prontos para entrar em ação mais uma vez.

Hera assentiu:

– Para matar!

Para matar.

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